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1.2 Desigualdade econômica no séc XXI

1.2.2 Brasil: terra de contrastes extremos

Nos anos 1970, Fausto Cupertino publicou um livro intitulado “A concentração da renda no Brasil: o bolo está mal dividido”, em que analisou a questão não só da distribuição de renda, como também da acumulação de riqueza privada no País, com base em dados estatísticos divulgados pelo Censo Demográfico de 1970. A sua conclusão foi a de que a face oculta do milagre econômico revelou dados estarrecedores no tocante aos padrões distributivos brasileiros e que os níveis de desigualdade haviam aumentado relativamente ao apurado pelo Censo Demográfico de 1960. Quase metade da população trabalhadora ganhava menos de um salário mínimo e quase metade da renda estava concentrada nas mãos dos 10% mais afluentes, enquanto o 1% mais rico concentrava uma fatia do bolo correspondente aos 50% mais pobres (CUPERTINO, 1977, p. 3).

Conforme Cupertino (1977, p. 1-2 e 34-36), havia, entre proeminentes lideranças políticas e elites econômicas da época, um forte engajamento ideológico em torno da “teoria do bolo”, resumida num pensamento externado pelo Ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen ao assinalar, em artigo, que “não adianta distribuir miséria antes de criar a riqueza” e que é preciso “esperar o bolo crescer”, ao invés de se investir nas “soluções fáceis e simpáticas do distributivismo prematuro”, que representariam “verdadeira agiotagem contra o desenvolvimento futuro”.

Inversamente, ao discorrer sobre as estratégias de desenvolvimento social, o II Plano Nacional de Desenvolvimento externava que seria inconcebível o postulado de que o crescimento econômico por si resolveria o problema da distribuição econômica como defendido por “teóricos do bolo”. Seria imprescindível que se mantivesse acelerado o crescimento econômico, mas que também fossem implementadas política redistributivas enquanto o bolo cresce. O crescimento não resolveria o problema da adequada distribuição econômica se deixado à simples evolução dos fatores de mercado. A solução distributiva através do crescimento demoraria muito mais do que a consciência social admite em face da urgente necessidade de melhoria do nível de bem-estar de amplas camadas marginalizadas da população (CUPERTINO, 1977, p. 2).

Ainda na década de 1970, Celso Furtado identificara que “a característica mais significativa do modelo brasileiro é a tendência estrutural para excluir a massa da população dos benefícios da acumulação e do processo técnico” e que “a durabilidade do sistema baseia- se grandemente na capacidade dos grupos dirigentes em suprimir todas as formas de oposição que seu caráter antissocial tende a estimular” (FURTADO, 1974, p. 111-112).

Na década de 1980, na qual a Constituição atual foi promulgada, Luiz Bresser Pereira assinalara que o desenvolvimento brasileiro tem sido comprometido por conta, entre outros fatores, de uma extremamente desigual distribuição dos frutos econômicos. Segmentos sociais restritos, sobretudo, compostos por proprietários do capital, concentram a maior parte dos dividendos do crescimento e desfrutam de padrões de vida incrivelmente altos, enquanto uma imensa massa de trabalhadores urbanos e rurais vive em condições estritamente insatisfatórias, senão subumanas (PEREIRA, 1988, p. 19).

Passadas algumas décadas de vigência da Constituição de 1988, a Oxfam divulgou, em 2017, o relatório “A Distância que nos Une: Um Retrato das Desigualdades Brasileiras”, em que firma a conclusão de que, no País, o 1% mais rico detém, em média, mais de 25% de toda a renda nacional e os 5% mais ricos percebem a mesma fatia de renda que os demais 95%. Nesse quadro, uma pessoa que ganha um salário mínimo precisaria trabalhar 4 anos para ganhar o mesmo que o 1% mais rico ganha em um mês e 19 anos para ganhar o mesmo que uma pessoa do grupo do 0,1% mais rico ganha mensalmente (OXFAM, 2017, p. 21-23).

Essa desigualdade de renda extremada se revela claramente nos resultados fiscais relativos ao Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF. Com efeito, embora a população brasileira evidencie cerca de mais de 209 milhões de pessoas (IBGE, 2019), só aproximadamente 28 milhões figuraram como declarantes do imposto em 2016 (RECEITA FEDERAL, 2017, p. 5).

Segundo a Oxfam, no mundo, quanto à riqueza (bens materiais como imóveis e ativos financeiros como aplicações e ações), 8 pessoas detêm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre da população e o 1% mais rico da população mundial possui a mesma riqueza que os outros 99%, nos quais 700 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1,90 por dia. No Brasil, a situação seria comparativamente ainda pior, visto que apenas 6 pessoas acumulam riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres. A desigualdade de riqueza seria ainda maior que a desigualdade de renda. O 1% mais rico concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74%. Por outro lado, 50% da população brasileira possui cerca de 3% da riqueza total do País (OXFAM, 2017, p. 6, 11 e 30-32). Em

proporção do patrimônio nacional, a distribuição de riqueza no Brasil referente ao ano de 2016 teria se dado, conforme a Oxfam, como ilustra o gráfico seguinte:

Gráfico 1.2.2-1 - Distribuição da riqueza - Brasil - 2016

Fonte: OXFAM, 2017, p. 32.

Constatou-se, outrossim, que, de 1988 a 2015, houve uma redução de 37% para menos de 10% no tocante à parcela da população brasileira abaixo da linha da pobreza, com a retirada da pobreza de mais de 28 milhões de pessoas nos últimos 15 anos, embora a grande concentração de renda no topo tenha se mantido estável. Houve, ademais, no Brasil, uma queda do coeficiente de Gini de cerca de 16%, que declinou de 0,623, em 1976, para 0,616, em 1988, e para 0,515, em 2015 (OXFAM, 2017, p. 18-20).

A despeito desses bons resultados14, o Brasil ainda permanece com um dos mais

elevados índices do mundo em matéria de desigualdade de renda e abriga mais de 16 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. A tendência recente seria ainda mais preocupante, com projeções do Banco Mundial de até 3,6 milhões a mais de pobres até o final de 2017, o que evidenciaria que as conquistas brasileiras nesse campo não estão consolidadas. Para a Oxfam, se for mantido o ritmo médio de redução anual de desigualdades de renda observado desde 1988, o Brasil necessitaria de 35 anos para alcançar o nível que Uruguai evidencia hoje e seriam necessários 75 anos para chegar ao patamar atual do Reino Unido (OXFAM, 2017, p. 18-20).

Entre os achados da pesquisa, apurou-se que, entre 2001 e 2015, os 10% mais ricos se apropriaram de 61% do crescimento econômico, enquanto a fatia dos 50% mais pobres foi de

14 No livro “Trajetórias da Desigualdade: Como o Brasil Mudou nos Últimos Cinquenta Anos”, organizado por Marta Arretche e publicado em 2015, há evidências de melhorias importantes no País nas últimas décadas em termos de redução das desigualdades quanto à participação política, ao acesso à serviços sociais básicos como educação e saúde, à mobilidade urbana etc (ARRETCHE, 2015).

18%. Neste mesmo período, a concentração de renda no 1% se manteve estável, no patamar de 22 a 25% (OXFAM, 2017, p. 18-20).

O Brasil é o que mais concentra renda no 1% mais rico e evidencia o 3º pior índice de Gini na América Latina e no Caribe (atrás somente da Colômbia e de Honduras). Num ranking de mais de 140 países ordenado no Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, o Brasil é o 10º país mais desigual do mundo, o que indica uma condição de desigualdade extrema (OXFAM, 2017, p. 21).

Pesquisas domiciliares nacionais, sobretudo, por meio da PNAD, da POF e do Censo, retratam, de fato, um movimento declinante da desigualdade econômica nas últimas décadas que teria se iniciado um pouco antes em relação aos fenômenos similares vivenciados em outros países latino-americanos, por volta de 1998, e teria se intensificado a partir de 2001/2002, tendo o coeficiente de Gini evoluído de 0,592, em 1998, para 0,537, em 2009 (BARROS, 2006, 2007, 2009, 2010; LUSTIG et al., 2012; BARRIENTOS, 2014; ATKINSON, 2015, p. 108-111; CEPAL, 2013, 2017; AFONSO et al., 2017, p. 47-48; VALENCIA, 2017)15. Essa quebra da tendência de longo prazo e a redução sensível da desigualdade seria, aliás, um dos fatos macroeconômicos mais importantes dos últimos anos (SOARES et al., 2009, p. 7).

Essas narrativas benignas chanceladas pelas pesquisas domiciliares têm sido, contudo, confrontadas recentemente com achados empíricos de estudos mais fidedignos e precisos que, influenciados pela sistemática investigativa difundida por Thomas Piketty, adotam estratégias metodológicas diferenciadas por meio do emprego de informações tributárias isoladamente ou de modo integrado aos microdados domiciliares. Os levantamentos domiciliares evidenciam, de fato, importantes limitações em sua base informacional, visto que são muito expostos a subdeclarações de rendas e de riquezas mais altas, de forma que findam por subestimarem a concentração no topo da distribuição. Isso decorre seja por restrições inerentes à amostragem e aos desenhos dos questionários, seja por omissão de respostas ou desconhecimento, por parte dos respondentes, dos valores exatos dos seus rendimentos (PIKETTY, 2014; CASTRO, 2014, p. 18-19; AFONSO, 2014, p. 1-2 e 38-41; MEDEIROS; SOUZA; CASTRO, 2015a, p. 7; ATKINSON, 2015; AFONSO et al., 2017, p. 354; LETTIERI, 2017, p. 109-110).

No País, por conta de restrições jurídicas fundadas, sobretudo, na proteção constitucional ao sigilo de dados individuais, direito fundamental tutelado pelo art. 5º, X e XII,

15 Conforme dados divulgados pelo Banco Mundial, na relação entre a renda dos 10% mais ricos da população e a renda dos 10% mais pobres, o Brasil ocupa a 131ª posição entre 136 países. Os 10% situados no topo da escala auferem 41,8% da renda nacional enquanto os 10% posicionados na base da escala detêm 0,97% da renda total, de forma que a relação de ambos é de 43,1. É, nesses termos, 9 vezes maior do que os índices de países onde a distribuição de renda é mais equilibrada (ZOCKUN et al., 2017, p. 19 e 30-34).

da CF/1988, o acesso a informações tributárias para fins de pesquisas censitárias encontrou algumas resistências administrativas por parte dos órgãos fazendários do Estado (AFONSO, 2014). Nada obstante, em função dos princípios do acesso à informação e da publicidade, igualmente garantidos pelos arts. 5º, XIV e XXXIII, e 37, caput e § 3º, II, da CF/1988, regulamentados pela Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18/11/2011), a própria Receita Federal passou a divulgar periodicamente dados tributários agregados que permitem a realização de estudos empíricos acerca da desigualdade de renda e de riqueza, a exemplo dos relatórios intitulados “Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas” e “Carga Tributária Brasileira: Análise por Tributos e Bases de Incidência”, em função do que muito já foi revelado, embora muito ainda se esteja por revelar acerca da iníqua distribuição brasileira (AFONSO, 2014, p. 5 e 43; LETTIERI, 2017, p. 114)16. Na atualidade, o Brasil ainda não possui a noção real da dimensão da desigualdade que abriga (PITMAN; KOURY, 2018, p. 55). A abertura dos dados fiscais à pesquisa censitária é, sem dúvida, um desenvolvimento institucional importante no sentido da concepção pikettyana de que “a tributação não é somente uma maneira de fazer com que os indivíduos contribuam para o financiamento dos gastos públicos e de dividir o ônus disso da forma mais justa possível; ela é útil, também, para identificar categorias e promover o conhecimento e a transparência democrática” (PIKETTY, 2014, p. 19).

Estudos pioneiros concluídos por Castro (2014), Afonso (2014) e, sobretudo, por Medeiros, Souza e Castro (2015a) com base em dados fiscais referentes ao IRPF sugerem que as pesquisas por amostragem subestimam, de fato, os abismos de desigualdade brasileiros em matéria de distribuição de renda e de riqueza. Em outros termos, revelam níveis de concentração econômica substancialmente mais elevados em relação às análises usuais com dados de pesquisas domiciliares, que já reproduziam um quadro de iniquidades extremas (GOBETTI; ORAIR, 2016, p. 24 e 32-33; GOBETTI; ORAIR, 2017, p. 183; GOBETTI, 2017, p. 705; GOBETTI, 2018, p. 7; CARVALHO JR; PASSOS, 2017, p. 579).

Demais disso, verificou-se que, no tocante ao período de 2006 a 2012, ao contrário do que denotam as estatísticas domiciliares, que apontam uma queda da desigualdade de renda nesse interstício, a disparidade teria, em verdade, na melhor das hipóteses, permanecido estável

16 Apesar da importância dos registros fiscais como fontes de dados empíricos para fins de pesquisa, Atkinson (2015, p. 78-79) destaca algumas limitações: “[...] ao usar dados de registros do imposto de renda, devemos ter em mente que eles não foram criados para isso; os dados são um subproduto de um processo administrativo. A forma e o conteúdo dos dados refletem a legislação tributária. [...] A definição de renda para fins tributários pode se afastar significativamente da definição abrangente descrita no capítulo anterior. [...] Em todos os casos, a cobertura dos dados de imposto de renda é potencialmente afetada com seriedade pelas ‘não respostas’ dos contribuintes na forma de elisão e evasão fiscais.”

e não haveria evidências empíricas suficientes que justificassem o reconhecimento de uma eventual tendência de declínio nos últimos anos. Concluiu-se, outrossim, que houve crescimento da renda, mas os ricos se apropriaram da maior parte desse crescimento (CASTRO, 2014; MEDEIROS; SOUZA; CASTRO, 2015a, 2015b; CARVALHO JR; PASSOS, 2017, p. 579)17.

Ao ajustar microdados populacionais da PNAD mediante o cruzamento com informações tabuladas do IRPF referentes às mais altas rendas, estudo realizado por Hecksher, Silva e Corseuil refuta, à luz do índice J-divergência, os resultados das análises convencionais e indica que a desigualdade brasileira crescera no período de 2007 a 2015, visto que a expansão mais forte da renda do decil mais rico da população teria compensado e anulado os efeitos redistributivos da evolução econômica do quantil relativo aos 90% remanescentes. Nesses termos, embora a PNAD indique uma diminuição da desigualdade em 13,7%, a base integrada PNAD-IRPF aponta um aumento de 8%. Entre os achados, consta ainda que, em 2015, o 0,01%, o 0,1% e o 1% mais ricos acumulavam sozinhos, respectivamente, 16,5%, 30% e mais de 50% da renda nacional (HECKSHER; SILVA; CORSEUIL, 2017, p. 339-366).

Em tese de doutoramento desenvolvida com lastro em dados fiscais, Souza promoveu a análise da mais longa série histórica acerca da desigualdade de renda no Brasil, num recorte que se estendeu de 1926 a 2013, e constatou níveis de desigualdade diversos dos apurados nas amostragens domiciliares, com achados, inclusive, superiores em alguns casos e períodos. A seu ver, os níveis de desigualdade teriam permanecido estáveis entre 2006 e 2013, sem nenhuma tendência aparente de aumento ou de redução nos últimos anos (SOUZA, 2016), conforme ilustrado pelos gráficos seguintes, que descrevem a parcela da renda percebida, respectivamente, pelo 1% e pelos 10% mais afluentes de 1960 a 2010:

17 Desenvolvido por Medeiros, Souza e Ávila de Castro, o estudo revelara, no tocante ao período de 2006 a 2012, que a concentração de renda individual no Brasil nos níveis do 0,1%, 1% e 5% mais ricos da população é maior do que tradicionalmente retratavam as pesquisas domiciliares amostrais realizadas por via das PNADs (de 2006 a 2012), da POF 2008/2009 e do Censo 2010, em que as rendas no topo extremo da distribuição estavam subestimadas, o que fornecia, portanto, uma visão incompleta da desigualdade brasileira. Nesse período, em média, o 0,1% mais rico recebeu quase 11% da renda total, o que implica que a sua renda média foi quase 110 vezes maior do que a média nacional; o 1% mais rico, que inclui esse 0,1%, apropriou-se de 25%; e os 5% mais ricos receberam cerca de 44%, quase a metade da renda total. Esses números se mostraram bem maiores do que o que se dá em países europeus, nos Estados Unidos e na Colômbia e denotam que “a concentração de renda no topo é impressionante” e, “não importa como a medida seja construída, a desigualdade que ela expressa é extremamente alta e não dá sinais claros de mudança”. O Brasil possui, aliás, 43 bilionários, maior número da América Latina (AFONSO et al., 2017, p. 55). Constatou-se, outrossim, que “há muita desigualdade mesmo entre os mais ricos, com enorme concentração justamente entre os mais ricos dentre os mais ricos”. Em média, entre 2006 e 2012, o 0,1% mais rico se apropriou de 43% da renda total do 1% mais rico e de quase 25% da renda total dos 5% mais ricos. À semelhança dos levantamentos domiciliares, o estudo indica que os ricos são mais resistentes à queda da desigualdade que o restante da população. Como essa elite se mantém estável no tempo, a maior parte da mudança na desigualdade tem ocorrido entre os estratos que estão mais na base e no centro da distribuição (MEDEIROS; SOUZA; ÁVILA DE CASTRO, 2015).

Gráfico 1.2.2-2 - Fração da renda recebida, respectivamente, pelo 1% e pelos 10% mais afluentes nos dados tributários, PNADs e Censos Demográficos - Brasil - 1960-2013

Fonte: SOUZA, 2016, p. 235-236.

Lettieri (2017, p. 107-157) realizou, ademais, estudo com base em dados fiscais do IRPF relativos ao ano-calendário de 2014 e concluiu que, no Brasil, há níveis muito elevados de desigualdade de renda entre capitalistas e assalariados e entre os próprios “donos do capital”, isto é, entre sócios/acionistas e proprietários de empresas, o que seria congruente com os resultados apurados por Piketty em relação aos países examinados no “O Capital no Séc. XXI”. Constatou, outrossim, que a desigualdade de riqueza chega a ser bem maior do que a desigualdade de renda. Nos achados, verificou-se que quem recebe uma renda mensal em média 80 vezes superior à de outro indivíduo, tendo como referências comparativas as faixas superiores a 320 salários mínimos mensais e de 3 a 5 salários mínimos mensais, consegue acumular uma riqueza que é 623 vezes maior (LETTIERI, 2017, p. 138). Entre os proprietários do capital, também há evidências que indicam que a desigualdade de riqueza chega a ser bem maior do que a desigualdade de renda, de forma que, entre os que ganham mais de 320 salários mínimos mensais e os que auferem de 10 a 15 salários mínimos mensais, entre os quais há uma relação de rendas de 25 vezes, constatou-se que aqueles conseguem acumular uma riqueza 125 vezes superior à destes (LETTIERI, 2017, p. 144-155).

Com base em dados fiscais, Gobetti e Orair estimaram, em estudo divulgado em 2017 (p. 183 e 187), que o décimo mais rico concentra cerca de metade da renda nacional (50,8%), o centésimo mais rico detém algo próximo a um quarto (21,9%), o milésimo mais rico chega a um décimo (10,2%) e o meio milésimo mais rico se apropriou de 8,5% de toda a renda, o que dificilmente encontra paralelos no mundo.

A despeito de essas pesquisas adotarem diferenciadas metodologias e fontes de dados e de evidenciarem distintos graus de realismo e resultados divergentes, a literatura empírica é absolutamente categórica em assinalar que o Brasil continua, de fato, como um dos ambientes sociais mais desiguais da desigual região e do desigual mundo, com índices extraordinariamente

desproporcionais de concentração de renda e de riqueza nos estratos mais afluentes, o que lhe confere uma posição de saliente proeminência na “iniquosfera”18 (AFONSO, 2014, p. 41). Entre

as “veias abertas da América Latina” (GALEANO, 2010), o Brasil é, pois, “notoriamente marcado pela desigualdade” (FERNANDES; CAMPOLINA; SILVEIRA, 2017, p. 293), de renda, de riqueza e de oportunidades, um “país de desiguais” (POCHMANN, 2014), uma vasta “terra de contrastes” (BASTIDE, 1964), em que coexistem “dois Brasis” (LAMBERT, 1967), como metaforicamente descrito na fábula da “Belíndia”, neologismo resultante da junção de Bélgica com Índia e que retrata as suas graves clivagens sociais (BACHA, 2015).

Inversamente, o Brasil figura entre as dez maiores economias mundiais, com o PIB nominal, em 2018, superior ao de países como o do Canadá, da Rússia e da Austrália (IMF, 2019), que evidenciam níveis de desenvolvimento e de bem-estar social bem superiores, o que denota que o bolo cresceu significativamente, mas, como assinalado por Cupertino na década de 1970, continua mal dividido. O desafio real é combinar o crescimento econômico com processos mais inclusivos de prosperidade.

O véu da ignorância acerca das disparidades abissais dessa incômoda realidade nacional já havia sido retirado pelas tradicionais análises distributivas domiciliares (ROCHA, 2002, p. 98 e 101). A história recentemente contada pelos registros fiscais ratifica, por sua vez, a evidência de que a sociedade brasileira tem diante de si um horizonte de imensos desafios em relação à desigualdade econômica no séc. XXI, prospecto preocupante que denota que os padrões institucionais de distribuição primária do mercado e de redistribuição pelo Estado, através da tributação e do gasto público, são insatisfatórios e precisam ser seriamente repensados e reestruturados.