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1.5 Desigualdade econômica e Estado Social

1.5.1 Do Estado Liberal ao Estado Social

A instituição e o desenvolvimento do Estado de Direito, do Estado Liberal ao Estado Social, transcorreram no contexto do “constitucionalismo moderno” (“modern

constitutionalism”), ciclo de evolução institucional que se protraiu das Revoluções Liberais do

final do séc. XVIII até o final da 2ª Guerra Mundial, em meados do séc. XX (GARCÍA- PELAYO, 2005; MCIIWAIN, 2007; JULIOS-CAMPUZANO, 2009; BONAVIDES, 2009).

O racionalismo iluminista investido na filosofia política dos séculos XVII e XVIII recuperou para os modernos os ideais de limitação do poder e de garantia de valores, aspirados materialmente em diversas experiências históricas do “constitucionalismo antigo” (“ancient

constitucionalism”). A recepção desse ideário se deu, por sua vez, sob um sofisticado arranjo

de técnicas constitucionalistas, que se consolidaram, pouco a pouco, no imaginário político ocidental ao longo do século XIX e redefiniram radicalmente o modo de contenção do poder com fins garantísticos (CANOTILHO, 2011, p. 51). Foi, de fato, na modernidade constitucional que se institucionalizaram as fórmulas constitucionalistas do Estado de Direito (“Rule of Law”), da separação de Poderes, do federalismo, além da Constituição formal, da supremacia constitucional, da rigidez constitucional, do controle de constitucionalidade (“judicial review”) e da técnica da proteção constitucional de valores socialmente compartilhados por meio da categoria jurídica dos direitos fundamentais (BARROSO, 2010).

Em linhas gerais, o constitucionalismo liberal clássico foi idealizado pelo pensamento moderno antiabsolutista em termos de limitação dos poderes públicos, de moderação da política, de contenção das intervenções verticais do Estado, tido como um “mal necessário” (“necessary evil”)44. Ao delimitar a esfera de ação política do Leviathan, visava-se, por seu

turno, a maximizar o raio de proteção da autodeterminação individual, bem como dos valores pessoais reconhecidos pelo jusnaturalismo racionalista, filosofia do direito por excelência da modernidade pré-revolucionária, como imanentes à natureza humana e, portanto, como “direitos naturais” (“droits naturels”, “natural rights”), a exemplo da vida, da liberdade, da igualdade, da segurança e da propriedade.

Foi no contexto das revoluções liberais que se afirmou historicamente a categoria constitucional dos direitos fundamentais de primeira dimensão, materializados nas clássicas

44 Essa expressão foi celebrizada por Thomas Paine no panfleto “Common Sense” (Senso Comum), de 1776, ao afirmar: “[...] government, even in its best state, is but a necessary evil; in its worst state an intolerable one” (PAINE, 1856, p. 19). Tradução livre: “[...] mesmo em seu melhor estado, o governo não é mais do que um mal necessário; em seu pior estado, é um mal intolerável”. Segundo Heywood, para Thomas Paine, o Estado é necessário, pois, pelo menos, “estabelece as condições para uma existência ordenada”; e é um mal, porque impõe aos indivíduos uma “vontade coletiva”, de modo que limita, assim, a sua liberdade (HEYWOOD, 2010, p. 56).

liberdades civis e políticas, proclamadas na Declaração do Bom Povo da Virgínia (1776), na Declaração de Independência das Treze Colônias (1776), na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e na Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), e que findaram por serem positivados nas Constituições liberais pós-revolucionárias do final do séc. XVIII e do séc. XIX. Trata-se, portanto, da experiência constitucionalista inaugural no sentido da institucionalização de direitos fundamentais em Constituições formais, técnica profundamente influenciada pela tradição constitucionalista inglesa, de raízes medievais, de tutelar liberties por meio de written documents, de instrumentos oficiais escritos (COMPARATO, 2010, p. 86-87).

Do ponto de vista dogmático, a matriz filosófica que inspirou a concepção dos direitos fundamentais de primeira dimensão foi a doutrina liberal clássica, desenvolvida, nos domínios político e econômico, sobretudo, por pensadores ingleses e franceses, tais como John Locke, Montesquieu, Adam Smith, David Ricardo, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Alexis de Tocqueville etc, além do prussiano Immanuel Kant (BONAVIDES, 2009, p. 39-163).

Radicada, pois, no liberalismo clássico, a “ideia de justiça” subjacente a esses direitos gravita essencialmente em torno do valor inalienável da liberdade, daí as designações “direitos de liberdade”, “liberdades clássicas”, “liberdades públicas” ou “liberdades negativas”. Com efeito, no ideário liberal, a liberdade é reconhecida dogmaticamente como valor individual supremo e fundamento axial de uma ordem político-jurídica justa, tanto que a “liberte” é evocada em primeiro lugar no brado revolucionário francês45. O sistema de direitos de liberdade filiado ao paradigma liberal de justiça não envolvia, de todo modo, somente a tutela específica da liberdade em si, em suas múltiplas expressões (liberdade econômica, religiosa, de ir e vir, de expressão, de imprensa, de reunião, de associação etc), como também alcançava a proteção de outros valores correlatos, tais como a vida e a integridade física e psíquica (pressupostos fáticos da liberdade), a propriedade privada (projeção da liberdade aplicada às coisas, extensão da liberdade econômico-patrimonial) e a segurança, pessoal e patrimonial (condição para o exercício da liberdade no espaço social e garantia da liberdade).

Como elemento dogmático característico do liberalismo clássico, o individualismo se traduzira metodologicamente no imaginário político dos modernos como postulado da primazia ou importância suprema do indivíduo, unidade básica ou átomo elementar da coletividade que

45 “Para a construção de uma ordem jurídica adequada, deve-se prestigiar, em primeiro lugar, a liberdade. Não porque seja essa a vontade de Deus ou decorrência da natureza das coisas. Não por conta do lema da Revolução Francesa ou por ser a base dos direitos fundamentais ditos de primeira dimensão. A liberdade deve ser prestigiada por uma simples razão, que subjaz às duas últimas que foram apontadas: é o que caracteriza o homem enquanto tal, viabilizando a própria existência do direito, que sem ela seria impensável.” (MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 125).

compõe (HEYWOOD, 2010, p. 37 e 40-42). Sob o prisma do individualismo metodológico, o indivíduo, ser guiado pela razão e medida de todas as coisas, evidencia, de fato, absoluta centralidade epistêmica e valor social e político incomparável, de forma que, para além da própria sociedade (HEYWOOD, 2010, p. 41-42)46, o Estado é também concebido em função dele, uti singuli, e dos valores individuais afetos à sua liberdade (MASCARO, 2008, p. 35-38). Stuart Mill assinala, por sinal, que “o valor de um Estado” é, afinal de contas, “o valor dos indivíduos que o constituem” (MILL, 1991, p. 158).

Na epistemologia liberal, a fé iluminista nas virtudes e vicissitudes incomensuráveis da razão humana projetou um conceito abstrato de indivíduo, categoria representativa dos homens, em termos de “homo rationalis”, isto é, como ser racional e dotado de extraordinária capacidade de autodeterminação, de escolha ponderativa entre várias possibilidades disponíveis e de alterar construtivamente a realidade que o circunda. Nesse itinerário espiritual, o indivíduo se define como entidade subjetiva pensante e autossuficiente cuja emancipação pessoal depende essencialmente do espaço de liberdade que lhe envolve a existência, da propriedade da energia racional que reside em si mesmo, da ausência de restrições ou limitações externas injustificadas ao emprego útil das faculdades da razão que lhe são inerentes. O desenvolvimento individual seria, assim, condicionado à maximização da liberdade e ao exercício autônomo da razão, forças construtivas que confeririam ao indivíduo a possibilidade de assumir o controle de sua própria vida, de ascender o espírito com o amadurecimento de talentos e vocações e de alcançar a realização pessoal, fonte do bem-estar individual e do progresso geral47. Para tanto, no empreendimento racional de seus interesses, os indivíduos viver, na máxima escala possível, livres de interferências, ingerências ou obstáculos ilegítimos por parte da coletividade e do Estado, postura invasiva típica das sociedades estamentais e dos governos absolutistas do

Ancien Régime (MILL, 1991, p. 49, 56, 57, 100, 101 e 117). Adotou-se, sob esse esquadro, um

conceito de liberdade em termos de “liberdade negativa”, o que Benjamin Constant denominou de “liberdade dos modernos” (“liberté des modernes”), entendida como independência pessoal para se promover ações livres de amarras, injunções ou coerções exógenas indevidas do poder social ou político, como autonomia para se conduzir nos negócios privados, nas relações civis,

46 Como desdobramento do individualismo, teóricos liberais defendem a tese, dita atomística, de que a sociedade em si não existe enquanto categoria autônoma em relação aos indivíduos, de forma que o seu conceito não encontraria referência em grupos sociais parciais. A sociedade seria, nesses termos, um conjunto de indivíduos autossuficientes (HEYWOOD, 2010, p. 41-42).

47 Segundo a crítica de Marx, o conceito liberal do indivíduo constitui, em verdade, uma representação idealizada do “homem burguês”, ou melhor, do “proprietário burguês” (LASKI, 1978, p. 108).

sem entraves ou turbações heterônomas ilegítimas em desfavor do livre-arbítrio ou livre escolha dos indivíduos no exercício da razão (BONAVIDES, 2009, p. 139-164; CONSTANT, 2016)48.

No campo dos “direitos do homem”, o paradigma individualista resultou, por sua vez, na constitucionalização de um sistema de garantias da autonomia privada frente ao Poder Público, institucionalizado mediante a demarcação jurídico-constitucional de uma zona de não- intervenção estatal, de uma esfera de liberdade individual imune ao jus imperii do Estado. Em linha com esse propósito, no que tange às liberdades civis, os direitos fundamentais de primeira dimensão são denominados de “direitos de defesa” (“Abwehrrechte”) e se caracterizam por evidenciarem um sentido predominantemente “negativo” ou, como assinalado pelo publicista alemão Georg Jellinek, por investirem o indivíduo num “status negativus”, associado à condição de homem livre (daí a sinonímia com a locução “status libertatis”). Impõem, nesses termos, ao Estado um dever de respeito e de abstenção, um “non facere”, em prol do círculo individual de liberdade das pessoas. Referidos direitos revelam, dessarte, uma inequívoca postura de desconfiança (“distrust”) em relação ao poder, reconhecido, em termos, como ameaça leviatânica à emancipação humana. “Eternal vigilance is the price of liberty”49

(PHILLIPS, 1894, p. 52).

É nesse sentido que as Constituições liberais são qualificadas como Constituições- garantias ou Constituições negativas, visto que detinham a função essencial de declarar direitos de liberdade e de garanti-los, sobretudo, através da prefixação dos limites circunscritivos do poder estatal em face dos indivíduos.

Para além do princípio da liberdade, a igualdade também se afirmara, nesse contexto, como um dos conteúdos axiológicos mais caros no paradigma liberal de justiça, em que os indivíduos são concebidos dogmaticamente como iguais não só em natureza e em direitos naturais (LOCKE, 2005, p. 382-383 e 431-432), como também em capacidades individuais (“homo aequalis”). Não foi por acaso, por uma casual coincidência cronológica, que a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, assinalara, logo no início, que “all men are by

nature equally free and independent” e que a Declaração de Independência, também de 1776,

proclamara como “self-evident truth” o princípio de que “all men are created equal”, bem como que a “egalité” figurou no lema revolucionário francês, tendo a Declaração de Direitos do

48 Em comentário a respeito da Constituição de 1891, a mais liberal das Constituições brasileiras, Carlos Maximiliano se reporta a uma definição de liberdade nos seguintes termos: “Liberdade é o direito que tem o homem de usar das suas faculdades naturaes ou adquiridas pelo modo que melhor convenha ao mais amplo desenvolvimento da personalidade propria, sem outro limite senão o respeito ao direito identico attribuido aos seus semelhantes.” (PEREIRA DOS SANTOS, 2005, p. 691).

Homem e do Cidadão, de 1789, preceituado, logo em seu primeiro artigo, que os homens nascem e são livres e iguais em direitos (“libres et égaux en droits”).

No plano teórico, o constitucionalismo liberal evidenciara característica propensão no sentido da proteção do valor da igualdade, no que se contrapusera às desigualdades hereditárias e estamentais marcadamente presentes nas sociedades europeias pré-revolucionárias, que privilegiavam a nobreza e o clero em detrimento dos demais segmentos sociais, inclusive, da ascendente burguesia. Nesses termos, a geração liberal dos direitos fundamentais envolve, de fato, certo conteúdo equalizador de disparidades sociais, ao vincular a liberdade de todos os indivíduos às prescrições gerais e abstratas do mesmo direito. Por não mais encontrar justificação no berço e na tradição, o problema das desigualdades socioeconômicas passou, por sua vez, a ser definido à luz da narrativa ideológica do mérito e do demérito pessoal, da mitologia do “self made man”, como simples produto da competição entre indivíduos iguais no livre espaço comum do mercado.50

Na tradição liberal clássica, a defesa da igualdade imanente aos indivíduos como valor a ser tutelado pela ordem político-jurídica se funda, de todo modo, na preocupação com a interferência de uns sobre a liberdade dos outros e na compreensão dogmática de que a igualdade figura como conditio sine qua non para a coexistência possível das liberdades individuais.

O exercício arbitrário da liberdade por um indivíduo pode ser prejudical à liberdade dos outros, visto que pode resultar na supressão ou restrição desmesurada da liberdade de outrem (MILL, 1991)51. Como preceitua Locke, “a liberdade consiste em estar livre de restrições e de violência por parte de outros”, o que não significa, contudo, “liberdade para que cada um faça o que bem quiser, pois quem poderia ser livre quando o capricho de qualquer outro homem pode dominá-lo?” (LOCKE, 2005, p. 433-434). No mesmo sentido, Popper (2001, p. 123)

50 Apesar do reconhecimento teórico, no plano abstrato do discurso filosófico liberal clássico, dos postulados da liberdade individual negativa e da igualdade formal, as experiências liberais concretamente vivenciadas ao longo, sobretudo, do séc. XIX, “o século do liberalismo”, evidenciaram que a “igualdade burguesa” adotada como fundamento constitucional do Estado Liberal de Direito coexistiu, na prática, com significativas discriminações formais em matéria de liberdades civis e políticas. Com efeito, ordens político-jurídicas liberais chancelaram, por exemplo: i) a prática da escravidão, tida, inclusive, como um “bem positivo” (Calhoun), em que se reconhecia no escravo a figura de um ente diferente dos seres humanos, de uma coisa, a ser tratada, portanto, sob a categoria jurídica do objeto de direito; ii) a opressão colonial; iii) a subcidadania das mulheres; e iv) as profundas restrições censitárias de sufrágio, que desqualificaram o sufrágio universal como abertura democrática legítima e credenciaram, de facto e de iure, apenas os estratos sociais mais afortunados a participarem da dinâmica política do Estado (BOBBIO, 1990; LOSURDO, 2006).

51 “Tudo o que faz a existência valiosa a alguém está na dependência da força das restrições à atividade alheia. Algumas regras de conduta, pois, devem ser impostas, pela lei em primeiro plano [...] a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. A liberdade do indivíduo deve ser, assim, em grande parte, limitada – ele não deve tornar-se prejudicial aos outros.” (MILL, 1991, p. 49, 53 e 97-98).

assinala que, “se eu for livre para fazer tudo o que quiser, então também sou livre para privar os outros da liberdade”. Conforme ainda Arnaldo Vasconcelos, “a liberdade absoluta é também a absoluta impossibilidade de seu exercício” (VASCONCELOS, 2001, p. 54).

Em razão disso, um sistema social do tipo liberal clássico rejeita a ideia de liberdade total ou absoluta e demanda não só a limitação do poder político passível de ser exercido pelo Estado relativamente às pessoas, como a restrição do grau de interferência dos outros na esfera de liberdade dos indivíduos, o que envolve a definição de medidas de liberdade, vale dizer, de limites ao emprego externo da liberdade como pressuposto do convivium civile das liberdades individuais. Esse aspecto da cultura liberal em que limitação da liberdade é uma condição necessária para a proteção da liberdade dos outros configura o que Popper denomina de “paradoxo da liberdade”. Conforme Popper, “A liberdade sem limites [...] é autodestrutiva. Liberdade ilimitada significa que o homem forte fica livre para intimidar o fraco e roubar-lhe a liberdade”. Popper assinala ainda que o Estado deve limitar “a liberdade numa certa medida, a fim de que a lei proteja a liberdade de todos. Ninguém deve ficar à mercê de terceiros, e todos devem ter o direito de ser protegidos pelo Estado” (POPPER, 2010, p. 321).

Sendo a liberdade termo relacional, ninguém pode, contudo, ser livre sozinho (VASCONCELOS, 2001, p. 54), de sorte que só se pode falar de liberdade frente ao outro. Na compartição das liberdades, assegurar a uns indivíduos amplos círculos privilegiados de liberdade em detrimento dos demais membros da sociedade, de forma a tratá-los de modo desigual, pode se traduzir em risco de não-liberdade e, portanto, de danos em desfavor destes. Nesses termos, impõe-se o imperativo racional de que, no comércio intersubjetivo, todos devem evidenciar esferas não só delimitadas, como também iguais de liberdade. Nesse itinerário espiritual, como assinala Hugo Segundo, como a liberdade de um não tem mais valor do que a liberdade do outro, as limitações recíprocas, que os indivíduos sofrem para que possam conviver, devem ser equivalentes (MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 127)52. A liberdade de um demanda, portanto, reflexamente, simétrica liberdade do outro, de sorte que, consoante o postulado liberal da equal freedom, todos devem ser livres para agir autonomamente conforme a sua vontade, desde que igualmente envolvidos por limites delineados objetivamente em torno

52 A noção liberal de que a liberdade dos indivíduos deve ser limitada em prol da liberdade do outro é comumente associada à afirmação, atribuída à Herbert Spencer, de que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro” (DEMETRIUS, 2015, p. 287). Tendo em vista que, sob a perspectiva liberal, as esferas de liberdade devem ser formalmente iguais, talvez fosse mais adequada a expressão veiculada pelo filósofo Mario Sérgio Cortella (embora em outro sentido) de que “minha liberdade não acaba quando começa a do outro, ela acaba quando acaba a do outro” (CORTELLA, 2015, p. 11-13).

de qualquer dos indivíduos associados em sociedade53. Foi nesse sentido que o art. 4º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, enunciara que “a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo”; assim, “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”54. As relativizações à liberdade se legitimam, portanto,

desde que estatuídas de modo igualitário para todos, destinadas a assegurar proteção à liberdade dos demais e na proporção estritamente adequada e necessária à consecução desse fim55, de

sorte a minimizar os agravos às liberdades pessoais e maximizar o estoque geral de liberdade do conjunto dos indivíduos dos quais a sociedade civil deriva. Não seria, assim, satisfatória a conquista da liberdade sem uma preocupação constante com a suas condições igualitárias de efetiva realização (MILL, 1991, p. 18).

Dentro do quadro axiológico do liberalismo filosófico clássico, as aspirações igualitaristas do constitucionalismo liberal se consolidaram, no plano político-jurídico, na tutela constitucional da “isonomia” (do grego, “iso”, igual, e “nomos”, lei), vale dizer, da igualdade formal ou jurídica. Enunciada comumente nas Constituições liberais sob a chave da “igualdade perante a lei” (ou expressões similares), o princípio da igualdade promovera uma igualação jurídica dos indivíduos, um nivelamento formal, que incluíra burgueses e proletários, ao vincular o Estado no sentido de positivar um direito igual para todos e vedar que, no exercício do poder legiferante, imprima tratamento injustificadamente desigual em desfavor das pessoas e estabeleça, por conseguinte, esferas assimétricas de liberdade. No Novo Regime, aboliram- se, assim, os privilégios sectários artificiais característicos do ordenamento jurídico das sociedades estamentais do Antigo Regime em favor de um ambiente institucional de livre

53 Nas palavras de Thomas Jefferson, “Of Liberty then I would say that, in the whole plenitude of it’s extent, it is unobstructed action according to our will: but rightful liberty is unobstructed action according to our will, within the limits drawn around us by the equal rights of others.” (JEFFERSON, 1999, p. 224). Tradução livre: “Sobre a

liberdade, eu diria então que, em toda a plenitude da sua extensão, é uma ação desobstruída de acordo com a nossa vontade: mas a legítima liberdade é ação desobstruída de acordo com a nossa vontade, dentro dos limites delineados em torno de nós pelos direitos iguais de outros”.

54 No original: “Article 4 La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui: ainsi, l'exercice des droits naturels de chaque homme n'a de bornes que celles qui assurent aux autres membres de la société la jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuvent être déterminées que par la loi.” (CONSEIL

CONSTITUTIONNEL, 2019a). Tradução livre: “Artigo 4º A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique os outros: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem tem limites apenas aqueles que