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1.4 Capitalismo e desigualdade econômica

1.4.1 Revisão da literatura teórica

1.4.1.8 Friedman e a minarquia monetarista

Para o economista estadunidense Milton Friedman (1912-2006), da Universidade de Chicago, a distribuição dos resultados econômicos no sistema capitalista é, na prática, tipicamente caracterizada por “considerável desigualdade de renda e de riqueza” (FRIEDMAN, 1988, p. 151).

Do ponto de vista ético, a desigualdade econômica inerente ao livre mercado seria, por sua vez, interpretada por críticos do capitalismo como prova empírica de sua maior iniquidade no que concerne ao problema distributivo comparativamente a modelos coletivistas alternativos, como o socialista, o comunista ou o do bem-estar social do tipo keynesiano. Para Friedman, essa valoração negativa seria errônea e enganadora, uma má interpretação (“misinterpretation”), visto que não colocaria em perspectiva não só as virtudes da livre empresa e os riscos do coletivismo, como também a dinâmica capitalista da desigualdade econômica no longo prazo (FRIEDMAN, 1988, p. 151-154).

Uma das vozes mais influentes de matriz neoliberal, com fortes identificações com o pensamento hayekiano, Friedman reconhecia que a perfeição não é coisa deste mundo e que o mercado não é, portanto, perfeito, evidencia falhas. Só haveria, por sua vez, dois meios de coordenar economicamente as atividades de milhões de indivíduos numa ordem coesa: um seria a direção central, com emprego da coerção – a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno; o outro, a cooperação voluntária dos indivíduos – a técnica de mercado (FRIEDMAN, 1980, p. 220; FRIEDMAN, 1988, p. 21). Com mercados livres e competitivos e governos não intrusivos e com funções mínimas, o capitalismo seria o sistema produtivo mais sofisticado, dinâmico e eficaz possível não só no tocante à redução da extensão da desigualdade, no que critica Stuart Mill, como em termos de crescimento econômico, de mobilidade e progresso social e de liberdade (FRIEDMAN, 1988, p. 152-154).

Segundo Friedman, um dos principais fundamentos desse fenômeno distributivo imanente ao capitalismo, da “desigualdade de retorno” (“inequality of return”), está associado ao “mérito relativo” (“relativ merit”), de forma que esforços diferentes são compensados de modo desigual. Isso assegura, proporcionalmente, “igualdade de tratamento” (“equality of

treatment”) aos indivíduos que empreendem de maneira diferente no mercado. Essas

desigualdades econômicas constituiriam, assim, “diferenciações reguladoras” (“equalizing

diferences”), destinadas a partilhar, em termos proporcionais, o total das “vantagens líquidas”

(“net advantages”) segundo o princípio ético da filosofia liberal de que a distribuição da renda numa sociedade de livre mercado há de operar conforme o que cada indivíduo e seus

instrumentos produzem. Sob esse viés, em sua forma mais pura, o capitalismo proporcionaria, sem coerção e planejamento central, o maior e mais justo grau de igualdade possível (NUNES, 2003, p. 423-462), conquanto coexista com certo nível de desigualdade estrutural. Essa desigualdade fomentaria, de todo modo, o esforço pessoal e a competitividade entre os indivíduos, com ganhos gerais para o conjunto global da sociedade.

Friedman ainda identifica que, no capitalismo, a desigualdade econômica pode também decorrer de fatores de sorte na loteria da vida que provocariam diferenças iniciais nas condições competitivas quanto à capacidade humana, à dotação pessoal, e à riqueza adquirida ou herdada, aspecto da problemática que suscitaria maiores questionamentos éticos. Sem embargo, entende que essa realidade não justificaria o emprego da coerção pelos outros, afinal de contas, a deusa da sorte seria tão cega como a da justiça (FRIEDMAN, 1988, p. 145-149).

Friedman defende, outrossim, a tese de que a economia de livre empresa é a face econômica da democracia, em que indivíduos cooperam voluntariamente entre si num autêntico governo democrático da economia. Nesse sistema, a orientação difusa da vida econômica opera sem intervenção do poder político. O livre mercado seria, ademais, pautado pela soberania do consumidor (NUNES, 2003, p. 443-444), que, por meio de trocas voluntárias num ambiente de concorrência aberta, evidencia a “liberdade de escolher” (“freedom to choose”) como pretende gastar seus rendimentos e com quais fornecedores, no que tende a sufragar os mais eficientes na provisão de bens e serviços melhores e de menor custo. Essa dinâmica espontânea otimizaria, sem compulsão e direção burocrática, a alocação e a partilha dos ativos econômicos.

Filiado ao ideário liberal, Friedman reconhecia na liberdade o objetivo último e no indivíduo a entidade principal da sociedade, em razão do que se opunha veementemente a modelos de organização social fundados em projetos igualitaristas e coletivistas. Nessa compreensão neoclássica, a sociedade nada mais seria do que o conjunto dos indivíduos que a compõem (atomismo), e não algo acima e além deles, e os objetivos sociais residiriam no somatório dos propósitos individuais pelos quais seus membros lutam separadamente (FRIEDMAN, 1988, p. 11 e 14).

A liberdade econômica seria, ademais, condição indispensável, embora não suficiente, para a consecução da liberdade política, concebida como ausência de coerção de um homem pelo seu compatriota. A ameaça fundamental à liberdade residiria no poder de coagir, esteja ele nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea. A preservação da liberdade reclamaria, assim, a maior eliminação possível da concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que não possa ser eliminado, um sistema de controle e equilíbrio. Ao remover a organização da atividade econômica do controle da

autoridade política, o mercado eliminaria essa fonte de poder coercitivo e permitiria que a força econômica se constituísse num contrapeso a qualquer concentração de poder político que porventura venha a surgir. A combinação de poder político e econômico nas mesmas mãos constituiria a receita certa da tirania (FRIEDMAN, 1980, p. 16-17; FRIEDMAN, 1988, p. 13, 17-19 e 220).

A seu ver, uma sociedade que coloque a igualdade econômica à frente da liberdade individual terminará sem nenhuma delas (“neither equality nor freedom”). A força pública destinada a implantar coercitivamente a igualdade material destruiria a liberdade e findaria inarredavelmente nas mãos de pessoas que a empregariam para promover seus próprios interesses, com desvio em relação aos propósitos programaticamente perseguidos, ainda que porventura bem-intencionados. Nesse ponto, enfatiza que o interesse próprio (“self-interest”), que não se confundiria com egoísmo míope (“myopic selfishness”), não se materializa apenas no setor privado, como teorizado por Adam Smith, mas também na burocracia da esfera pública, que pode degenerar o “government of the people, by the people, for the people”, idealizado por Abraham Lincoln, em “government of the people, by the bureaucrats, for the bureaucrats”. O poder burocrático para fazer coisas certas é também poder para fazer coisas erradas; os que controlam o poder hoje podem não ser os mesmos de amanhã e, ainda mais importante, o que um indivíduo considera bom pode ser considerado mau por outro. Nesse cenário, haveria uma inversão do postulado smithiano de que, ao perseguirem seus interesses próprios no mercado, os indivíduos são levados a servir, como que por uma mão invisível, a um interesse público que não integrava suas intenções pessoais, pois, no setor público, as pessoas destinadas a servir apenas ao interesse público são conduzidas, como que por uma mão invisível, a servir a interesses privados que não faziam parte de suas intenções (FRIEDMAN, 1980, p. 37-40 e 152; FRIEDMAN, 1988, p. 12-14; FRIEDMAN, 1993, p. 11).

Por outro lado, uma sociedade livre, que coloca a liberdade em primeiro lugar, acaba por assegurar condições concretas para a consecução do máximo grau possível de ambas, ao liberar as energias e capacidades necessárias para que pessoas livres persigam e assumam a responsabilidade por seus próprios destinos e possam ascender economicamente em meio à fecundidade do mercado. O capitalismo competitivo seria, nesse cenário, o tipo de organização econômica que promoveria diretamente não só a liberdade econômica, como também a liberdade política, ao cindir o poder econômico do poder político e, desse modo, permitir que um controle o outro. Capitalismo e liberdade (“capitalism and freedom”) são concebidas, portanto, como noções complementares na teorização de Friedman, que assinala que a maioria

dos argumentos contra o livre mercado decorreriam, em verdade, da ausência da crença na liberdade como tal (FRIEDMAN, 1980, p. 152; FRIEDMAN, 1988, p. 13, 18 e 23).

Na perspectiva de Friedman, o liberal diferencia igualdade de direitos e igualdade de oportunidades, de um lado, e igualdade material ou igualdade de rendas, de outro, e pode até considerar conveniente que uma sociedade livre tenda, de fato, para uma igualdade material cada vez maior, mas esse fato será tido como produto secundário desejável de uma sociedade livre, e não como sua justificativa principal. Posições igualitaristas que evocam a noção de justiça para justificar o direito de se tirar de alguns para dar a outros antagonizam a igualdade e a liberdade, o que demanda, por conseguinte, a escolha de um desses valores e inviabiliza, assim, a possibilidade de um indivíduo ser, ao mesmo tempo, igualitário, nesse sentido, e liberal (FRIEDMAN, 1988, p. 175).

Para Friedman, a maior ameaça à liberdade, e à prosperidade, adviria da concentração do poder político e da ingerência governamental, no que sustenta as máximas de que “government is the problem”; de que o Estado não deve, em princípio, intervir na ordem econômica; e de que se deve conter o Leviatã por meio da limitação do poder que é passível de exercer. Sob o pressuposto de que sempre afeta a liberdade individual e a ameaça potencialmente, toda ação estatal deve ser encarada com vigilante desconfiança, mormente, quando tenta, por meio da coerção, obrigar as pessoas a agir contra seus interesses imediatos a fim de se promover um suposto interesse geral. O liberal teme fundamentalmente a concentração do poder, que não se torna inofensiva ou é anulada pelas boas intenções de quem a estabelece. Seu objetivo é o de preservar o grau máximo de liberdade para cada indivíduo em separado, compatível com a não interferência na liberdade de outro indivíduo. Acredita que esse objetivo exige que o poder seja dispersado. Não vê com bons olhos entregar ao governo qualquer operação que possa ser executada por meio do mercado, pois, primeiro, substituiria a cooperação voluntária pela coerção na área em questão e, segundo, ao dar ao governo um poder maior, ameaça a liberdade em outras áreas (FRIEDMAN, 1988, p. 42 e 180-181).

Nada obstante, Friedman não é, de modo algum, um anarquista. Sustenta a necessidade da existência do Estado, que decorreria, por sua vez, do fato de que a liberdade absoluta é impossível e de que, por mais atraente que seja, o anarquismo seria impraticável num mundo de homens imperfeitos, em que a liberdade dos indivíduos pode entrar em conflito e a liberdade de uns deve ser limitada em prol da liberdade dos outros. Friedman reconhece, portanto, que cabe ao Estado a função institucional primária de proteger a liberdade dos indivíduos, fim em si mesma, em face da coerção dos outros indivíduos, no plano interno ou externo, para além de prover marcos regulatórios claros dos intercâmbios pessoais, preservar a lei e a ordem, reforçar

contratos voluntariamente pactuados, promover mercados competitivos, estruturar o sistema monetário, coibir monopólios e arbitrar disputas de interesses. Embora o livre mercado pressuponha a redução sensível do espaço de intervenção e deliberação política nas questões privadas, não eliminaria, dessarte, a necessidade do Estado, cuja institucionalidade pode ser justificada em termos liberais, já que, entre outros papeis, seria essencial na determinação das “regras do jogo”, na definição dos direitos de propriedade e na arbitragem de conflitos por meio da interpretação e aplicação de normas preestabelecidas, condições indispensáveis ao pleno exercício da liberdade econômica (FRIEDMAN, 1980, p. 21; FRIEDMAN, 1988, p. 5, 11-13, 23, 29-40 e 145; FRIEDMAN, 1993, p. 6).

Entre as funções básicas imputáveis à minarquia estatal, Friedman reconhecia, de todo modo, especial papel no domínio econômico no desempenho da atribuição de autoridade monetária (monetarismo). Nesses termos, por via da oferta da quantidade ótima de moeda (teoria quantitativa da moeda), o Estado deteria a possibilidade de contribuir para o controle inflacionário. Através de flutuações controladas no montante de moeda disponível, seria possível ao Estado evitar que a eficiência econômica seja perturbada por instabilidades decorrentes da inflação. Consoante a receita de Friedman, o Estado deveria modular as condições monetárias da economia com muita cautela e rigidez, com metas de crescimento do estoque de moeda a taxas modestas e constantes e sem pretensão de manipular os mercados, ante os riscos de má interpretação da conjuntura e de colapsos econômicos. Erros na condução da política monetária podem induzir crises, a exemplo do que se dera na Grande Depressão (1929-33); causada, segundo sua interpretação, não por imperfeições do mercado, falhas da iniciativa privada, e, sim, por incompetência governamental, inépcia na gestão pública, mais precisamente, por culpa do Federal Reserve System, que promovera, em contexto cíclico, demasiada constrição da liquidez dos bancos, com severa restrição no volume circulante de dinheiro (FRIEDMAN, 1980, p. 245-276; FRIEDMAN, 1988, p. 41-55; FRIEDMAN, 1993, p. 15-16).

Em franca oposição às ideias intervencionistas e fiscalistas de Keynes, Friedman defendia que o mercado privado não é intrinsecamente instável e que o foco da política macroeconômica do Estado não seria o combate ao desemprego e à retração produtiva, ou mesmo a redução de desigualdades, e, sim, o controle da inflação, fenômeno desestabilizador do nível geral de preços, do consumo e da produção e corrosivo do poder aquisitivo dos indivíduos, como se fosse tributação sem legislação. O primeiro e único papel do Estado nesse tocante se resumiria basicamente a assegurar o equilíbrio monetário necessário para que o mercado funcione por si mesmo e sem restrições, ou seja, proporcionar, além de marcos legais

claros, uma estrutura monetária estável em favor da economia livre; de modo que o crescimento econômico, o bem-estar e o progresso social deveriam ficar essencialmente a cargo do laissez-

faire, e não da benevolência de governos intrusivos, paternalistas e mais e mais expansivos

(FRIEDMAN, 1988, p. 14-15).

Só excepcionalmente caberia ao Estado exorbitar dos limites desse círculo básico de atribuições e até intervir em assuntos econômicos, como no empreendimento de atividades cuja execução individual se mostrasse tecnicamente mais difícil ou dispendiosa; ou mesmo no suporte à educação, sobretudo, por meio de um sistema de vouchers; e, em reforço da caridade privada, na provisão de um patamar mínimo de renda aos menos afortunados, por meio, v.g., do imposto de renda negativo (“negative income tax”), mecanismo redistributivo integrado ao sistema fiscal (FRIEDMAN, 1988, p. 12, 81-98 e 171-175).