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1.4 Capitalismo e desigualdade econômica

1.4.1 Revisão da literatura teórica

1.4.1.7 Hayek e os limites cognitivos do Estado

Com Friedrich August von Hayek (1899-1992), o ideário liberal pró-mercado e de restrição do papel econômico do Estado se revigora na segunda metade do século XX e passa a disputar, sobretudo, a partir dos anos 1970, a posição de hegemonia das ideias econômicas com as proposições keynesianas de maior intervenção estatal e de planejamento burocrático centralizado. Num contexto de arrefecimento ou declínio do ciclo de expansão econômica (“post-war boom”) vivenciado nos “Trinta Gloriosos” (1945-1975), na chamada “Era Dourada” (“Golden Age”), as teses hayekianas influenciaram a agenda política de vários governos, com especial destaque para o pioneirismo de Margaret Thatcher (1979-1990), no Reino Unido, e de Ronald Reagan (1981-1989), nos Estados Unidos. Nesses países, foram introduzidos austeros pacotes de restruturação institucional do Estado (thatcherismo e reaganismo) à luz de uma matizada plataforma político-econômica genericamente denominada de “neoliberal” ou “liberal neoclássica”. Incorporada ao receituário prescrito por alguns organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial no chamado Consenso de Washington (1989), o ideário hayekiano se difundiu por vários países e reverbera efeitos concretos até os correntes dias (HEYWOOD, 2010, p. 63-64). Juntamente com Friedman, Hayek é, de fato, um dos maiores expoentes doutrinários do paradigma de pensamento econômico associado ao chamado neoliberalismo (CUMMINS, 2018, p. 7).

Hayek reconhecia a desigualdade econômica em sociedades capitalistas como um fenômeno inerente ao “processo impessoal do mercado” (“impersonal process of the market”), que não distribui, de fato, os recursos materiais numa “frente uniforme” (“uniform front”), e, sim, de “modo escalonado” (“echelon fashion”), razão pela qual alguns indivíduos são economicamente alocados bem adiante dos outros, “far ahead of the rest”. Numa sociedade de pessoas livres (“free society”), os indivíduos evidenciam “objetivos, habilidades e

conhecimentos” (“aims, skills and knowledge”) diferentes, empreendem de modo diversificado e obtêm resultados materiais de distinta sorte, conforme múltiplos fatores intercorrentes nos complexos e dinâmicos “processos do mercado” (VON HAYEK, 2011, p. 96).

Sob o postulado da supremacia do mercado (“supremacy of the market”), elemento central no pensamento neoliberal, Hayek nele reconhece o mais eficiente e benéfico mecanismo de coordenação dos esforços humanos no que tange à produção e à distribuição dos recursos econômicos (CUMMINS, 2018, p. 7). Nada obstante, rejeita a narrativa apologética de que a partilha do produto econômico afluente da “ordenação espontânea do mercado” (“spontaneous

ordering of the market”) se resume liminarmente a uma “questão de mérito” (“matter of merit”),

como simples desdobramento da “produtividade marginal” (“marginal productivity”). A seu ver, os resultados pessoais da atividade econômica são, em verdade, imprevisíveis (“unpredictable; not foreseeable”), decorrem de uma “multiplicidade de circunstâncias” (“multitude of circumstances”) não conhecidas e não controladas em sua totalidade por ninguém (“anybody”), bem como não pretendidas (“intended”) ou previstas (“foreseen”). Os resultados são determinados, em parte, pela iniciativa (“enterprise”), habilidade (“skill”), esforço sistemático (“systematic effort”), capacidade (“capacity”), escolhas (“choices”), e, em parte, pela boa ou má sorte (“good or ill luck”), pelo acaso (“chance”), por acidente (“accident”). Conquanto o mercado possibilite a “maior satisfação possível dos desejos humanos” (“greater

satisfation of human desires”), num patamar incomparavelmente mais eficiente do que qualquer

outro modelo de organização econômica possa porventura prover, inexistiria uma inclinação inexorável à “justiça de recompensas” (“justice of rewards”) e ocorreriam, de fato, algumas imperfeições promovidas por “circunstâncias imprevisíveis” (“unforeseaable circumstances”), de modo que há sempre o “risco de falha não merecida” (“risk of unmerited failure”), de “desapontamento imerecido” (“unmerited disappointment”), de infortúnios (“misfortunes”), com possibilidade de que o resultado relativo destoe negativamente das expectativas (“principle

of negative feedback”), e, como num jogo de competição (“game of competition”), regularmente

haverá ganhadores e perdedores (“winners and losers”) entre os players do mercado. O “retorno do esforço das pessoas” (“return of people´s efforts”) não corresponde impreterivelmente a nenhum “mérito reconhecível” (“recognizable merit”), “sacrifício” (“sacrifice”) ou “necessidade” (“need”), visto que é afetado por “circunstâncias além do controle e conhecimento delas” (VON HAYEK, 1998, p. 63, 70-74 e 76; VON HAYEK, 2006, p. 106- 105).

Hayek entende, outrossim, que o mérito moral atribuído ao desempenho das pessoas no mercado é “incomensurável” (“incommensurable”), pois reflete valorações pessoais ou grupais

subjetivamente muito assimétricas, concorrentes e até incomunicáveis entre si, de modo que inexistiria um padrão referencial de perseverança pessoal, uma escala mecânica de valores ou critério absoluto e universal de justiça que sirva de ponto cardeal objetivo, de standard, à luz do qual se possa, numa perspectiva geral, aquilatar o merecimento relativo associado ao papel de cada indivíduo para o conjunto global da sociedade e o valor justo da pertinente retribuição econômica. No modelo de Hayek, mercado e mérito não seriam, portanto, conceitos conaturais, de forma que a economia de mercado não seria propriamente definida em termos meritocráticos (VON HAYEK, 1998, p. 63, 70-74 e 76; VON HAYEK, 2006, p. 106-105).

Embora, na compreensão hayekiana, não se possa comensurar o mérito pessoal, sendo, portanto, inviável vincular o retorno do mercado à ideologia mítica da recompensa meritocrática ou de uma justa compensação (CATARINO, 2008, p. 354), Hayek entende que o resultado distributivo desigual da ordem econômica reflete, em grande medida, a disposição difusa dos consumidores em usufruir das utilidades colocadas em perspectiva pelos empreendedores por meio do praceamento de bens e serviços, sendo, portanto, nessa perspectiva, também fundada nessa força discriminatória espontânea imanente ao livre jogo dos agentes do mercado.

Para Hayek, a inegável desigualdade de renda e de riqueza produzida pelas forças impessoais (“impersonal forces”) operantes no sistema capitalista sob a institucionalidade de um Estado de Direito (“Rule of Law”) fundado no princípio da igualdade formal (“formal

equality before the law”) não seria gerada nem com fundamento num determinado conceito de

mérito ou demérito (“somebody´s views about the merits or demerits of different people”), nem numa consciente e deliberada intenção de afetar negativamente ou discriminar categorias de indivíduos em particular em detrimento dos demais (“designed to affect particular people in a

particular way”). A desigualdade econômica em sociedades capitalista não se trata, portanto,

de desigualdade “conscientemente dirigida” (“consciously directed”), de “discriminação deliberada” (“deliberate discrimination”), e, sim, de um fenômeno difuso que emanaria de “baixo para cima” (“bottom-up”), de modo não planejado, através de um processo social de seleção concorrencial “cega” (“blind”), atributo que, para os antigos (“ancients”), era, aliás, assimilado à virtude moral da imparcialidade da deusa da justiça (VON HAYEK, 2006, p. 82, 105 e 110). Toda e qualquer desigualdade econômica gerada pela ordem cataláxica espontânea, dinâmica e policêntrica do mercado seria não só legítima, como justa, por dimanar de um “mecanismo distributivo cego” e que “maximiza a igualdade”, ao operar, à luz de regras uniformes para todos, de modo indiferente em relação à identidade dos agentes econômicos e com base em critérios de repartição impessoais (CATARINO, 2008, p. 342, 349 e 353), e não

de acordo com “social designs” empreendidos por meio de engenharias burocráticas estatais, como se daria, v.g., nos macroplanejamentos centrais de sociedades socialistas (VON HAYEK, 2011, p. 99). Diferenças de afetação do retorno econômico em sociedades competitivas (“competitive societies”) deveriam, dessarte, ser interpretadas como consequências normais do livre concerto das forças impessoais do mercado, onde cada indivíduo evidenciaria a aberta possibilidade de exercer e afirmar suas distintas energias subjetivas visando a adquirir mais expressivos “slices of the pie” sob a dinâmica da oferta e da procura instruída pelas informações do sistema de preços (CATARINO, 2008, p. 343, 349 e 351).

Conforme Hayek, conquanto, no regime de livre concorrência, as oportunidades ao alcance dos pobres (“poor”) sejam realmente mais restritas (“restricted”) do que as acessíveis aos ricos (“rich”), mesmo os mais pobres teriam muito mais liberdade econômica do que indivíduos com maior conforto material em sociedades de outro gênero, a exemplo das socialistas. No capitalismo, os mais pobres evidenciariam, portanto, maior probabilidade de conquistar grande fortuna (“great wealth”), já que, além de ninguém (“nobody”) poder impedi- los ou selar, por ato de autoridade, o seu destino econômico, o enriquecimento dependeria precipuamente deles próprios (“solely on him”), de seu trabalho pesado (“hard work”), e não dos favores de poderosos (VON HAYEK, 2006, p. 106). A emancipação econômica dos indivíduos evidenciaria, nesses termos, maior grau de realidade em sociedades capitalistas, sobretudo, em contextos em que a liberdade, em face do Estado e de outras interferências, se afirmasse como valor social e político supremo (CUMMINS, 2018, p. 7).

Segundo Hayek, a desigualdade econômica seria não só resultado típico da economia de mercado, como também um dos principais motores do que qualifica como “rápido progresso material” (“rapid material progress”) evidenciado na civilização capitalista nos últimos séculos, sem a qual isso seria absolutamente impossível. Na perspectiva hayekiana, a desigualdade econômica figura, pois, como valor positivo imprescindível das sociedades capitalistas livres, competitivas e progressistas, um dos seus fundamentos axiais, na medida em que instiga os indivíduos a investirem seus potenciais e forças pessoais na melhoria de seu padrão material de vida. A desigualdade econômica cumpre, nesses termos, uma função inestimável em prol do todo social, que inconscientemente promove, num efeito cumulativo, a evolução substancial das condições gerais de bem-estar da comunidade, inclusive, em prol das classes menos favorecidas (VON HAYEK, 2011, p. 96, 103 e 105).

Para Hayek, numa “sociedade progressista” (“progressive society”), a distribuição desigual dos recursos econômicos pode, num primeiro momento, realmente concentrar as utilidades materiais produzidas no sistema capitalista, os novos serviços e comodidades

disponibilizados no mercado, numa minoria limitada de indivíduos, de modo que não se difundem inicialmente como bem comum da sociedade. A despeito disso, as vantagens materiais tendem a adquirir gradativamente maior escala produtiva e a se tornarem mais e mais disponíveis para as massas sociais algum tempo depois, o que permite uma espiral virtuosa de crescimento econômico e de melhoria substantiva do nível geral de vida da sociedade. Esse processo contínuo de expansão quantitativa e qualitativa do bem-estar social decorreria não só da acumulação do capital e da poupança necessários ao incremento da produção, como também da maturação e propagação de novos conhecimentos quanto aos meios e técnicas produtivas mais eficientes e menos onerosos, aperfeiçoamento cognitivo que se traduz em benefícios para o maior número possível de pessoas, fato que poderia ser evidenciado, a título ilustrativo, quando se compara o padrão médio de conforto material dos pobres de hoje em relação aos do passado. O progresso geral seria possível justamente porque a realização de pioneiros de ontem permitiria o avanço dos que vêm atrás, viabilizaria que os menos afortunados ou menos dinâmicos pudessem percorrer novos caminhos, abertos, embora não intencionalmente, pelos gastos e informações dos mais ricos, que contribuíram para colocar ao alcance dos relativamente mais pobres as vantagens concretas da evolução capitalista (transportes, comunicação, lazer, utensílios domésticos etc). O caminho do avanço (“path of advance”) seria bastante facilitado pelo fato de já ter sido trilhado por outros. Os mais pobres de hoje devem seu relativo bem-estar material aos resultados das desigualdades do passado. Na mesma sintonia, o luxo (“luxury”), capricho (“caprice”) ou extravagância (“extravagance”) experimentada, com exclusividade, por alguns poucos ricos atualmente (“few”) tornar-se-á, de modo gradativo, disponível (“available”) à grande maioria (“great majority”) no amanhã, aos mais pobres (“poorest”), aos menos afortunados ou energéticos (“less lucky or less energetic”). Alguns devem liderar e o resto deve seguir (“some must lead, and the rest must follow”). Em sociedades desse tipo, o lucro privado e os ricos desempenham uma função necessária (“necessary service”) para o avanço geral (“general advance”), sem a qual o desenvolvimento dos mais pobres poderia se dar de modo bem mais lento (“slower”). No longo prazo, a existência da desigualdade econômica é, portanto, vantajosa não só para os mais afluentes, como também para aqueles que se encontram atrás (“behind”), de forma que, em sociedades capitalistas, evidencia uma justificativa funcional, já que o progresso material dependeria, pois, da diversidade material de resultados (VON HAYEK, 2006, p. 17; VON HAYEK, 2011, p. 96- 100 e 104).

Para Hayek, políticas redistributivas e igualitaristas que, por meio de programas de bem- estar social, extraiam riquezas dos mais afluentes e as reafetem aos mais pobres com o propósito

de diminuir a desigualdade econômica e abolir a pobreza podem até melhorar, no curto prazo, o hiato entre classes, mas também tendem, no longo prazo, a reduzir ou inverter o movimento ascendente da sociedade no sentido do progresso, o crescimento futuro, com propensão para conduzir a estados estacionários e a ciclos de retrocesso, com reflexos negativos sobre a comunidade como um todo. Medidas dessa natureza predam a capacidade produtiva dos mais ricos e os estoques de capital, constrangem as iniciativas competitivas e distorcem as posições patrimoniais relativas ao redirecionarem os recursos de modo tredestinado em relação às afetações preferenciais do mercado, que alocaria as fatias da riqueza por meio de fluxos distributivos social e economicamente mais eficientes e impessoais (CATARINO, 2008, p. 343). Movidos por paixões momentâneas, obstáculos ao crescimento de poucos defendidas por teses coletivistas se traduzem, no longo prazo, no obstáculo ao crescimento de todos e no risco, pela espiral de controles políticos da economia que se tece, de abertura do caminho para a servidão dos indivíduos (“road to serfdom of the individuals”). Nesses termos, somente a desobstruída dinâmica do livre mercado e o rápido progresso material poderiam efetivamente assegurar a linearidade do desenvolvimento e a melhoria das condições globais de bem-estar social (VON HAYEK, 2011, p. 100 e 104-105). O mercado seria, portanto, um mecanismo autoevolutivo (SOLIMANO, 2017, p. 24). Demais disso, a pretensão de igualar ou nivelar as faixas patrimoniais por via de intervenções políticas, de “government managment”, seria não só ineficaz, como ilegítima e injusta (CATARINO, 2008, p. 343), pois desvirtuaria os processos impessoais do mercado e desconsideraria a utilidade social da existência das diferenciações econômicas entre os indivíduos.

No esquema de Hayek, a viabilidade da economia de livre mercado pressupõe certas atividades por parte do Estado relativamente aos assuntos econômicos, de sorte que a defesa fundamentalista ou dogmática do ambíguo (“ambiguous”) e enganoso (“misleading”) princípio do “laissez-faire” seria primitiva e prejudicial à própria causa liberal, pois desconsidera a importância da estrutura jurídico-institucional do Poder Público na tutela dos seus fundamentos básicos (liberdade individual, propriedade privada, igualdade formal, concorrência, respeito aos contratos etc). Com efeito, conquanto, em princípio, devesse se abster de intervir na economia por meio da exploração direta de empreendimentos econômicos (VON HAYEK, 2011, p. 191 e 332-333)43 ou da imposição de limitações ilegítimas à liberdade econômica dos indivíduos

43 Hayek reconhece, de todo modo, que o desempenho de certos serviços em determinados contextos pode não ser devidamente assegurado pelo mercado, como quando não há lucratividade suficiente que atraia empreendedores, algumas obras públicas ou em atividades militares reservadas. Nessas situações específicas de limitações do mercado (limitations of the market), seria legítimo algum tipo de intervenção pública supletiva, embora isso não

(não intervencionismo, abstencionismo), caberia ao Estado o papel de assegurar condições estabilizadoras gerais para que o regime de “free market” opere plenamente, à própria sorte de suas forças espontâneas, como quando define pesos e medidas, organiza o sistema monetário, estabelece restrições sanitárias, proíbe o uso de substâncias tóxicas, define normas de segurança predial e previne fraudes ou o emprego da violência (VON HAYEK, 2006, p. 18, 37, 79 e 84; VON HAYEK, 2011, p. 330-341; CUMMINS, 2018, p. 7).

Embora, para Hayek, a proteção das instituições fundamentais da economia de mercado dependa do reforço garantístico de um Estado de Direito (“Rule of Law”), de tipo liberal, politicamente estável e economicamente neutro, a ordem capitalista espontânea e descentralizada não deve se sujeitar ao construtivismo público ou suportar perturbações exógenas (“disruptions”) por parte de intervenções estatais, mormente quando relativas a políticas coletivistas pretensamente fundadas em princípios de justiça social, categoria que reputava absolutamente destituída de sentido moral e atentatória do valor da liberdade (“unfreedom”), uma miragem (“mirage”) ou manto (“cloak”) para a coerção autoritária.

Hayek era um crítico intransigente das múltiplas formas de coletivismo (em especial do fascismo, nazismo, socialismo e comunismo), de sobreposição do coletivo ao indivíduo, de sucumbência das individualidades a planejamentos coletivos, por compreender que tendem não só a distorcer o mercado, como a suprimir gradativamente as liberdades e a abrir o caminho para a tirania e a servidão totalitária, ao prestigiarem o poder estatal sobre o indivíduo. Defensor do individualismo liberal, rejeitava, portanto, o “big government”, o modelo de Estado sobrecarregado de atribuições (“overloaded State”) e com um exacerbado estatismo de bem- estar (“welfare statism”). A seu ver, uma economia saudável de livre mercado demandaria um Estado menor, visto que, quanto mais o Estado planeja, mais difícil se torna para o indivíduo traçar seus próprios planos (CUMMINS, 2018, p. 15). Quanto menor a intervenção estatal e maior a liberdade de escolha dos indivíduos, maiores as possibilidades de crescimento econômico, de progresso material da sociedade e de melhoria das condições gerais de bem- estar social (CONSTANTINO, 2009, p. 61). Nessa perspectiva, o Estado deveria precipuamente se ater ou se confinar a estabelecer regras gerais, isonômicas e transparentes de convivência social e de tutela da liberdade individual e da propriedade, além de gerir os elementos da vida social que não seriam propriamente passíveis de tratamento satisfatório pelo setor privado, a exemplo da defesa nacional (VON HAYEK, 2006, p. 79; WAPSHOTT, 2017, p. 346). O caminho da riqueza nacional, da prosperidade e do pleno emprego não se daria,

justifique o argumento do monopólio, da exclusividade, de que só o Estado seria apto a prover esses serviços (VON HAYEK, 2011, p. 191 e 332-333).

portanto, por meio da tributação progressiva e do gasto público, como preconizado por Keynes, e, sim, pelo investimento privado e pela ordem espontânea e pacífica do mercado capitalista (MACNALL, 2015, p. 99).

Nada obstante, Hayek reconhecia que não colidiria necessariamente com os fundamentos da economia concorrencial de livre mercado a adoção pelo Estado de uma agenda básica de políticas sociais, de um rede pública de proteção social mínima (“minimal social

protetion”), destinada a garantir um padrão essencial de condições materiais de vida a todos no

tocante, v.g., à renda (“income”), à alimentação (“food”), ao vestuário (“clothing”) e à habitação (“shelter”), no necessário à conservação da saúde (“preserve health”) e da capacidade de trabalho (“capacity to work”), bem como a prover segurança (“security”) em face de privações severas (“severe privation”) por meio de coberturas assistenciais (“assistence”) e previdenciárias (“insurance”). A compatibilidade da provisão estatal desses serviços sociais com a proposta liberal hayekiana demandaria, de todo modo, que não se traduzissem em restrições às liberdades individuais e pudessem ser prestados paralela e preferencialmente pelo mercado, de sorte que se franqueasse à iniciativa privada operar nesses segmentos de utilidade pública sem obstáculos e sob um regime de livre empreendedorismo e ampla concorrência (VON HAYEK, 2011, p. 39, 125 e 137). Essas políticas sociais seriam, de todo modo, afetadas à estrita consecução de um nível mínimo de subsistência e de segurança econômica, por via de um sistema minimalista e residual de proteção, de maneira que não caberia, em termos gerais, ao Estado encampar deliberada ou programaticamente a função redistributiva de remodelar a estrutura das desigualdades econômicas, que deveria ser definida ou reduzida pelos mecanismos autocorretivos do mercado.

Demais disso, na perspectiva hayekiana, a economia moderna se caracterizaria por um nível de complexidade (“complexity”) extremamente elevado no que concerne à divisão do trabalho, às flutuações do nível de atividade econômica, ao padrão de emprego, às transações comerciais nacionais e internacionais, às preferências e demandas dos consumidores, aos movimentos da oferta e da procura, às oscilações relativas de preços, aos fatores de risco, às circunstâncias produtivas etc. Em perene expansão e mutação, as informações dispersas na vasta e ramificada rede de relações econômicas evidencia um grau de diferenciação tão imensamente extenso, líquido e fugaz que resta absolutamente inviável uma “visão de conjunto” (“synoptic view”), uma “imagem coerente” (“coherent picture”), bem como um “controle consciente” (“conscious control”) de todo o processo econômico envolvido no imenso mundo empírico do mercado mediante planificação conglobante, precisa e estável por parte da tecnoburocracia do Estado (planejamento central), de cima para baixo (“from top to

bottom”). Ante a sua crescente e imensurável complexidade fenomênica, a subjetividade das

predileções individuais, a imprevisibilidade de resultados e a inexistência de um observador central onisciente, a realidade do mercado seria incognoscível em sua totalidade informacional. A capacidade humana de conhecimento (“knowlegde”), bem como processamento racional de seus dados econômicos relevantes seria, assim, bastante limitada. Qualquer tentativa de apreensão unitária do mundo econômico e de planificação intencional de suas inúmeras variáveis (dirigismo estatal), ainda que com o propósito de atingir objetivos sociais definidos, de empreender políticas públicas, estaria fadada a estar comprometida não só do ponto de vista da eficácia econômica, como no da moralidade individualista, por ser inexoravelmente parcial, restrita, insuficiente, e por se traduzir em imposição coletivista de valores em detrimento das liberdades individuais (VON HAYEK, 2011, p. 51).

Pela amplitude e dinamismo da matriz informacional do mercado, seria impossível ao Estado promover, de modo consistente e estável, o gerenciamento global da economia moderna, matizada por um número incalculável de linhas interrelacionadas de ação. Os riscos de intervenções estatais causarem graves distorções na base de dados e, consequentemente, no equilíbrio da ordem econômica seriam, por conseguinte, sensivelmente elevados, por mais engenhosas e benevolentes que porventura se proclamassem (VON HAYEK, 2011, p. 51). O mercado se comportaria de modo instável e imperfeito quando o Estado se intromete no sistema econômico e criam cenários artificiais em relação à economia real, como por meio de injeções monetárias massivas promovidas por bancos centrais, que reduzem taxas de juros, induzem pressões inflacionárias e distorcem estratégias de investimento e de alocação da poupança, provocando sobreinvestimento (“overinvestment”) e/ou má alocação de recursos (“misallocation”), bem como, no longo prazo, queda na formação de capital e desemprego (SOLIMANO, 2017, p. 25). Em razão desse entendimento, opunha-se veementemente às propostas interventivas keynesianas, para prevenir ou corrigir crises, pois, além de desperdiçarem elevadas cifras públicas custeadas pelo conjunto da sociedade e de distorcerem a matriz informacional da economia, desorientando os agentes econômicos, o mercado evidenciaria seus próprios mecanismos de recomposição do equilíbrio no tempo necessário.

À luz do argumento da complexidade econômica e da limitação cognitiva, Hayek reconhece na concorrência livre entre os agentes autônomos do mercado o único método (“only