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CAPÍTULO II NOSSAS BASES TEÓRICAS

2.1 BRASIL: UM PAÍS MULTILÍNGUE

Escolhemos iniciar nossa fundamentação por esse tópico que trata do reconhecimento de que nosso país é multilíngue, uma vez que, como discutiremos a seguir, o mito do monolinguismo ainda é muito forte. Além disso, para que entendamos a necessidade de se pensar em políticas linguísticas que considerem a gestão in vivo - que será explicada no próximo tópico - é fundamental partir de um olhar que considere as várias línguas faladas dentro do território brasileiro.

Dessa forma, é importante que partamos de alguns levantamentos em relação ao número de línguas faladas no Brasil. Antes disso, ressaltamos que, por apresentarmos números trazidos por diferentes autores, apesar de, muitas vezes, serem próximos, há algumas diferenças, considerando, nesse sentido, que são diferentes formas de levantamento de dados.

Algo comum em todos eles é a afirmação de que sempre existiram mais línguas do que Estados constituídos. Segundo Oliveira, G. (2009), há aproximadamente 6.800 línguas no mundo, porém essas são distribuídas de forma assimétrica, pois, mesmo 94% dos países apresentando o uso de mais de uma língua em seu território, “oito países concentram mais da metade das línguas do globo: Papua Nova-Guiné, Indonésia, Nigéria, Índia, México, Camarões, Austrália e Brasil”. (OLIVEIRA, G., 2009, p. 1, grifos nossos).

Trazendo dados semelhantes, Maher (2013) explica que são hoje 193 Países-Membros declarados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), são mais de 6.000 línguas faladas no planeta. A partir da comparação entre esses dados, a conclusão a que a autora chega, obviamente, é que “o multilinguismo mundial é um estado de normalidade, enquanto que o monolinguismo é um absoluto estado de exceção no mundo. O Brasil [...] aqui está para confirmar a regra”. (MAHER, 2013, p. 118).

Nesse mesmo sentido, em um texto mais antigo, de 1999, Cavalcanti traz informações e reflexões que também nos levam a entender o monolinguismo como exceção, quando afirma que

Mesmo se tendo a informação de que o bilinguismo22 está presente em praticamente cada país do mundo [...], segundo Romaine (1995:9), é o monolinguismo que representa a norma, é o monolinguismo que é a base para os estudos linguísticos. De fato, para a autora, o monolinguismo deveria ser tratado como caso especial, como desvio da norma, e o bilinguismo deveria representar a norma. Diz ainda a autora (Romaine, 1995:8): Há cerca de trinta vezes mais línguas do que há países. Isso implica a presença do bilinguismo em praticamente todos os países do mundo. (CAVALCANTI, 1999, p. 388).

A escolha dos autores que tratam de políticas linguísticas, de multilinguismo e de comunidades de minorias linguísticas por apresentarem esses dados, e até mesmo a nossa opção por iniciar essa fundamentação com essa discussão mostram o quanto o mito do monolinguimo, no Brasil, ainda é presente, fazendo-nos com que sempre tenhamos que justificar a necessidade

22 Romaine (1995), apesar de trazer a palavra “bilinguismo”, a qual não adotamos neste

trabalho, não desconsidera a questão do multilinguismo em suas discussões. Por isso, por ter essa visão mais aberta de bilinguismo, não vai de encontro às perspectivas adotadas neste trabalho.

de estudos como o que estamos realizando nesta dissertação, pois, como explica Cavalcanti (1999), em muitos, causa estranheza o fato de haver estudos com minorias linguísticas – não entendidas como minorias em termos quantitativos, mas em termos de status.

Após trazermos os dados de um contexto mais amplo, passemos a ver quais são as línguas faladas no Brasil de que se tem registro. De acordo com Oliveira, G. (2009),

No Brasil são faladas cerca de 210 línguas por cerca de um milhão de cidadãos brasileiros que não têm o português como língua materna, e que nem por isso são menos brasileiros. Cerca de 190 línguas são autóctones, isto é, línguas indígenas de vários troncos linguísticos, como o Apurinã, o Xokléng, o Iatê, e cerca de 20 são línguas alóctones, isto é, de imigração, que compartilham nosso devir nacional ao lado das línguas indígenas e da língua oficial há 200 anos, como é o caso do alemão, do italiano, do japonês. (OLIVEIRA, G., 2009, p.1).

Pelos números trazidos por Oliveira, G. (2009) já é possível que coloquemos muitas dúvidas sobre a afirmação presente no senso comum de que somos um país de tamanho continental na qual se faz uso de uma língua, garantindo que todos se entendam. Auxiliando-nos a questionar esse ideal de monolinguismo, Maher (2013), em um texto mais recente do que o de Oliveira, G. (2009), traz dados que divergem um pouco dos dados deste, mas que também nos mostram o quanto o Brasil é multilíngue. Segundo ela, são faladas em nosso país 222 línguas, das quais pelo menos 180 são indígenas - dado próximo ao de Oliveira, G. (2009), mas, para ela, seriam cerca de 40 línguas de imigração, além de esta autora também afirmar que são faladas duas línguas de sinais23. Devemos levar em conta que essa divergência também se deve ao que o falante define como língua quando responde a pesquisas sobre esse tema, como a diferença entre o que entende por variedade, dialeto e língua, de modo que pode haver divergências nessas definições.

Em relação à comunidade de surdos, Cavalcanti (1999) afirma que no Brasil seriam 350 mil pessoas totalmente surdas. Entretanto, há um

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São elas: A Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a Línguas de Sinais Kaapor Brasileira, utilizada pelo povo indígena Urubu-Kaapor, que habita o sul do estado do Maranhão. (MAHER, 2013).

apagamento delas, o que promove a invisibilidade desse contexto, gerando preconceito.

Essa mesma autora também apresenta outros contextos em que o multilinguismo é bastante presente. Um deles seria o contexto indígena, que, segundo ela, é bastante invisibilizado, considerando, nesse sentido, que “somente em 1991 a educação indígena foi introduzida na Constituição brasileira como sendo responsabilidade do governo".24 (CAVALCANTI, 1996a apud CAVALCANTI, 1999, p. 395).

Outro contexto seria o de imigração - foco deste trabalho. Segundo Cavalcanti (1999),

O contingente imigratório europeu integrado na população brasileira é avaliado em 5 milhões de pessoas, quatro quintas partes iguais entraram no país no último século. (...) [Esse contingente] é composto, principalmente, por 1,7 milhão de imigrantes portugueses, que se vieram juntar aos povoadores dos primeiros séculos, tornados dominantes pela multiplicação operada através do caldeamento com índios e negros. Seguem-se os italianos, com 1,6 milhão; os espanhóis, com 700 mil; os alemães, com mais de 250 mil; os japoneses, com cerca de 230 mil e outros contingentes menores, principalmente eslavos, introduzidos no Brasil sobretudo entre 1886 e 1930. (RIBEIRO, 1995, p. 241 apud CAVALCANTI, 1999, p. 390).

Com esses dados, podemos ver que realmente os números da imigração são bastante expressivos. Ressaltamos que os poloneses se inserem no grupo de eslavos, que, segundo a autora, vieram em menor número.

Considerando esses contextos e o número de línguas faladas em nosso território, adiantamos que

O fato de termos aprendido que a situação ‘normal’ no mundo é a situação de monolinguismo e de termos aprendido a ver o plurilinguismo como uma anomalia é mais um produto da história da criação do Estado-Nação nos últimos 300 anos, quando se

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Na Constituição Federal de 1988, no artigo 210, já havia sido assegurado às comunidades indígenas a utilização de suas próprias línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Porém, apenas em 1991, pelo Decreto Presidencial n. 26, ficou atribuída ao Ministério da Educação a competência para coordenar ações referentes à educação indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino. Apesar de não adentrarmos nessa discussão, entendemos que não podemos apressadamente supor que o fato de haver leis nesse sentido garante uma educação indígena de qualidade e adequada ao que as comunidades indígenas esperam e necessitam, considerando que os desejos e necessidades divergem.

estabeleceu o desiderato de ‘um Estado, um Povo, uma Língua’, tão prejudicial à construção da cidadania. (OLIVEIRA, G., 2009, p.1).

A fala desse autor nos remete a uma de nossas principais discussões, que é a criação do mito do monolinguismo. De acordo com Oliveira G, essa associação direta que muitos fazem entre um Estado e apenas uma língua é uma criação de uma concepção de Estado por meio de repetidas políticas linguísticas a favor da manutenção dessa situação considerada “normal”, mas que é imposta a muitos grupos linguísticos que não fazem uso da língua oficial, aquela que garante um maior status.

Por outro lado, Altenhofen (2013) afirma que “Ninguém, de bom juízo, e principalmente com conexão à internet, nega a relevância da diversidade linguística, reconhecida pela ampla maioria dos seres humanos, no mundo moderno”. (ALTENHOFEN, 2013, p. 97). Assim, restam-nos os questionamentos sobre de que forma, apesar de ser inegável a presença de várias línguas em um mesmo território, foi criada essa ideologia de língua única que se mantém até hoje.

Em relação à fala de Altenhofen (2013) de que é muito difícil negar a relevância da diversidade linguística hoje, ressaltamos que, de acordo com Makoni e Meinhof (2006), não podemos associar imediatamente todo contexto de multilinguismo como sendo uma vantagem, um recurso e um trunfo para o falante, pois essa posição “não é sensível à condição de pessoas multilíngues pobres. Saber que o multilinguismo constitui uma forma de riqueza cultural não oferece nenhum benefício a tais pessoas” (MAKONI; MEINHOF, 2006, p. 192). Nesse sentido, é que entendemos a questão do status ligada à língua como fundamental, pois contextos multilíngues formados por línguas com status podem ser até vistos por muitos como um trunfo, porém, quando se faz uso de diferentes línguas desprestigiadas, a visão já não é mais a mesma.

Lembramos que, segundo Mattos e Silva (2004), apesar de o multilinguismo ficar escamoteado em nossa legislação máxima - a Constituição -, essa apresenta um avanço político e linguístico, uma vez que o português não é mais rotulado como língua nacional, mas, sim, como língua oficial, “mesmo que fique dissimulado nas práticas sociais institucionalizadas”. (MATTOS E SILVA, 2004, p. 13). Porém, essa mudança de nomenclatura não apresenta uma mudança visível em termos práticos, além disso, a opinião da

autora pode ser questionada quando pensamos que, quando a língua portuguesa passa ser rotulada de língua oficial, as demais passam a ter um caráter não oficial, o que é um predicado bastante negativo.

Nos próximos tópicos, abordaremos mais detidamente de que forma ocorreu a criação do mito do monolinguismo em nosso país. Para isso, iniciaremos nossa discussão com a problematização do que são políticas linguísticas, para, então, apresentar a trajetória das políticas linguísticas no Brasil.