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CAPÍTULO IV OLHARES PARA AS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS

4.2 PROJETOS RELACIONADOS À CULTURA E À LÍNGUA POLONESA

4.3.4 A QUESTÃO DA LÍNGUA ÚNICA

Para iniciarmos nossa discussão e compreendermos o porquê de afirmarmos que a ideia de que a língua deve ser única é algo a ser superado, vejamos o seguinte registro o diário de campo:

Em conversa informal, um dos alunos me explicou que começaram com muitos alunos, em torno de 40, mas que muitos foram desistindo justamente pelo confronto entre o polonês que sabem, chamado de arcaico, e o polonês ensinado. Contou-me que na aula aprendeu que determinada palavra significa ameixa, mas, para ela, sempre significou pêssego. Quando chegou a sua casa, contou para sua mãe, a qual disse: Essa professora não sabe Polonês! (Diário de campo, 8 de março de 2014).

Essa pequena história elucida algo que foi muito recorrente nas observações: a diferença entre o polonês que aprenderam em casa e o ensinado pela professora, que é nativa da Polônia. Pela fala dessa mãe que afirmou que a professora, mesmo sendo fluente no polonês padrão, não sabia polonês, já podemos perceber que a ideia de que a língua é vista como única é bastante presente nesse contexto. Além disso, conforme discutimos em nossa fundamentação teórica, a identidade depende da diferença, não sendo o oposto da diferença (WOODWARD, 2000). Por isso, vemos que, nesse embate entre esses “dois poloneses”, há o confronto da língua relacionada à identidade da comunidade com a língua também chamada de polonês, mas que representa a diferença, da qual alguns buscam marcar um posicionamento contrário, de modo a reafirmar sua identidade vinculada a língua que aprenderam desde pequenos, aquela que seria a verdadeira língua polonesa.

Essa questão de haver verdades relacionadas à língua, como o que é certo e o que é errado, como veremos, é algo que recorrentemente pode ser percebido nas aulas, de modo que essa diferenciação era sempre salientada pelos alunos. Isso pode ser percebido pela seguinte anotação no diário de campo:

O que mais me chamou a atenção foi que, durante vários momentos da aula, os alunos falavam da diferença entre o polonês que sabem, que aprenderam aqui, e o polonês que a professora ensina. Isso fica mais claro em frases como: ‘Mas, às vezes, na conversa, a gente ouve...’ - para dizer que ouvem algo que foi ensinado como errado, ‘Em casa, se o pai falasse isso era palavrão, mas não é, né?’ ou ‘Mas eu sempre bato na mesma tecla, para mim, x é lenha, não árvore’. (Diário de campo, 8 de março de 2014).

Diante disso, a postura da professora é essencial para que não haja a divisão entre esses “dois poloneses”, a variedade de polonês falada pela professora e a falada pelos alunos. Para refletimos sobre o encaminhamento que a professora dá a essa questão, vejamos o que ela respondeu aos seguintes questionamentos: “Em sua opinião, qual a visão que os descendentes de poloneses têm em relação à língua polonesa e à cultura polonesa? E qual a visão que você acredita que as demais pessoas têm em relação a isso? De que forma você percebe isso e avalia essa postura?”

Em suas palavras,

Os descendentes compreendem a língua polonesa como uma língua da bisavó, hoje em dia misturam no dia a dia palavras polonesas do sec. XIX com o português. Não sabem que o polonês dá acesso a cultura, ou seja, a uma civilização muito rica que pode fazer a diferença na vida deles. Meu objetivo nesse curso foi mostrar aos alunos como podem enriquecer intelectualmente estudando polonês, lendo livros, artigos, escutando e entendendo a música etc. (P1. Entrevista realizada em maio de 2014).

Com isso, podemos perceber que ela não considera como válidos os usos que os alunos fazem tendo em vista a chamada “língua dos bisavós”, pois, para ela, o polonês é um só, o polonês que ela fala como nativa da Polônia, aquele que dá acesso à cultura valorizada, em muito vinculada à língua escrita, considerando que ela afirma que eles podem se enriquecer intelectualmente tendo acesso a livros e artigos. Obviamente, não discordamos

de que esse domínio seja bastante importante, mas, quando se parte dessa hegemonia entre línguas e variedades, se deixa práticas linguísticas que são importantes para os falantes fora do que se compreende por língua. Nesse ponto, podemos ver que a professora busca ensinar uma outra língua para os alunos, a qual, muitas vezes, distancia-se daquela que os alunos falam e com que convivem. É importante deixar claro que, durante muitos momentos da aula, a professora explicava que a língua evoluiu porque é um organismo vivo, que não fica parada no tempo, buscando mostrar que eles também precisam dominar a língua polonesa falada na Polônia atualmente, porém não podemos desconsiderar o fato de que a variedade falada pela comunidade também evoluiu. Além disso, em alguns momentos, a professora acabava assumindo a postura do certo versus errado, baseada na concepção de que há apenas uma norma, como quando afirmou “Um pouquinho já mudou aqui, mas o correto é....” (Diário de campo, 22 de março de 2014).

Desse modo, não há como não perceber que a professora acaba por vezes partindo de uma visão de língua como algo único - a variedade dela - lembrando-nos das hegemonias de que falamos em capítulos anteriores a partir de Pinto (2012). Assim, podemos perceber que é por meio de atos de fala como esse, em que há a diferenciação entre o que é certo e errado na língua, que vamos construindo consensos e coerções sobre língua que têm suas raízes no modelo de romântico alemão de língua - uma língua, uma cultura, um povo - e que vão cada vez mais cristalizando essas visões sobre língua e também sobre ensino de línguas.

Sobre essa questão, Rajagopalan (2014) explica que o ensino de línguas é uma atividade imbuída de conotações políticas, pois “Não há como lidar com ele sem assumir uma postura política perante o mundo, a pátria e o papel que cabe a todos nós exercer. A sala de aula é um lugar onde, queiramos ou não, a política linguística desabrocha de forma sutil ou, às vezes, explícita”. (RAJAGOPALAN, 2014, p. 83).

Nesse sentido, entendemos que a noção da língua que embasa em muito as práticas de ensino de língua de forma geral é fruto de hegemonias relacionadas às políticas de monolinguismo, nesse caso, relacionadas ao polonês, pois, por meio dessas, não se buscava que apenas se falasse determinada língua como símbolo de identidade nacional, mas sim que essa

língua tivesse um grau de unidade em todo o território. De acordo com Maher (2013),

O mito de que o monolinguismo corresponde a algo desejável, a uma benesse, tem, historicamente, suas origens em fatos que antecederam ao ‘descobrimento’ do nosso país. No Antigo Testamento (GÊNESIS, 11), ao narrar a construção da Torre de Babel - o nosso grande castigo histórico – já é possível encontrar indícios de que a existência de muitas línguas implicaria caos, confusão. Instaurada a crença de que o plurilinguismo é contraproducente, na Revolução Francesa, ela vai ser re-asseverada com a emergência do conceito de Estado-Nação. Para que esse conceito pudesse ganhar legitimidade, era preciso assegurar que cada estado nacional se configurasse como uma ‘unidade’ discreta, o que só seria possível se ele se apresentasse como ‘uniforme’. Era preciso, portanto, recorrer à criação, à invenção de símbolos que reafirmassem essa unidade/uniformidade: bandeira, hino, língua nacional... (MAHER, 2013, p.118-119).

Desse modo, baseados em Pinto (2014), compreendemos que essa hegemonia da língua nacional é fruto de políticas linguísticas, tanto explícitas quanto implícitas, que foram executadas desde a chegada dos portugueses que “procuraram regularizar usos linguísticos e promover ou reprimir acesso a recursos linguísticos na busca pelo controle do território nacional e das relações socioeconômicas e simbólicas que aqui se construíram e se constroem” (PINTO, 2014, p. 65). A história das políticas linguísticas, a qual já discutimos no capítulo em que tratamos das nossas bases teóricas, continua a deixar resquícios e a ser reafirmada nas práticas de sala de aula, mesmo naquelas que, como esse projeto do curso de língua polonesa, pretensamente buscam a manutenção de uma língua, como a língua polonesa, que não é a que garante a identidade nacional entendida por meio do lema “Um povo, uma língua, uma nação” (RAJAGOPALAN, 2003), segundo o qual, no território brasileiro, a língua a ser falada de modo a garantir a identidade nacional deveria ser a língua portuguesa.

Por isso, a mesma autora vai afirmar que é um desafio para pesquisadores, professores e meios de comunicação se aproximar da “polifonia recombinante” a que está exposta a nossa “língua nacional”, a “língua portuguesa”. Contudo, para ela, “Esse desafio [...] é o único jeito de enfrentar a permanência das ideologias coloniais e o paradoxo da centralidade dos

modelos interpretativos modernos - nacionalista, filológico e evolucionista”. (PINTO, 2014, p. 72).

Considerando a construção da visão de que no Brasil só se fala uma língua, a língua portuguesa regida por um padrão, o que garante a unidade nacional, também vemos que essa noção pode ser estendida para a compreensão de que a língua polonesa também é vista como única no contexto de pesquisa, tanto pela professora, que, por alguns momentos, parece sugerir que o modo como é falado pelos participantes é errado, quanto por alunos que têm dificuldades e até resistência em aprender outras formas que não aquelas que aprenderam com a família. Devemos levar em conta que, muito provavelmente, os alunos não imaginassem que haveria esse choque entre as variedades de polonês ao se inscreverem no curso.

Vale salientar que, pelo percebido nas observações, essa resistência não é unânime, uma vez que há alunos que buscam perceber as diferenças entre os “dois poloneses” e se dispõem a conciliá-las. Contudo, devemos lembrar que essa resistência tende a ser maior quando se trata daqueles que, quando pequenos, aprenderam a língua polonesa da comunidade, em comparação com aqueles alunos mais novos que, apesar de conviverem com o uso de polonês da e na comunidade, iniciaram seu aprendizado mais sistematicamente por meio do polonês que a professora ensina.

Em relação às diferenças, há momentos em que elas são sutis, como em relação à palavra em polonês que, para alguns alunos, designa o verbo “falar”, já, para a professora, é “bater papo”. Esses significados são do mesmo campo semântico, podendo não dar tanta margem para cair em distinções entre o que seria certo ou errado. Porém, há diferenças mais gritantes; segundo anotações do diário de campo: “Os alunos estavam rindo de uma confusão entre o modo como falam moça, que, na verdade, é prostituta em Polonês, pois mudaram a pronúncia de uma palavra que, no passado, significava moça. Muitos deles falavam dessa forma”. (Diário de campo, 23 de março de 2014).

Isso porque, segundo Kawka (1982 apud KOLLROSS, 2002), a língua polonesa falada no Brasil, devido ao contato com a língua portuguesa, assumiu características específicas, afastando-a sensivelmente do polonês tido como padrão, em grande parte por causa dos empréstimos lexicais do português, de

modo que podemos falar de um polonês português e de um português polonês, uma vez que as línguas se influenciam mutuamente, hibridizando-se. Contudo, apesar dessas diferenças, o autor supracitado afirma que não devemos encarar

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o polonês falado no Brasil como uma corrupção ou degenerescência do polonês padrão. [...] Ao contrário, entendemos que se trata de uma variante da língua polonesa, formada no Brasil de maneira natural ou inconsciente, diante das novas condições do meio ambiente e de cultura, para atender as necessidades de comunicação e expressão. (KAWKA, 1982 apud KOLLROSS, 2002, p. 98).

Apesar de o autor afirmar que é uma variedade da língua polonesa que atendeu e atende as necessidades dos falantes, não é essa a língua que é ensinada no projeto, pois esse parte de uma concepção de língua como única, conforme já discutimos. Dessa forma, trazemos uma metáfora de Pinto (2014) que nos parece bastante adequada para opormos ao consenso da unidade linguística. Essa diz respeito à metáfora da rede, assim

Somos nós mesmas(os) parte dessa rede, tecida coletivamente, que podemos ver em parte, e de cuja tessitura participamos como falantes e como pesquisadoras(es). Para se fazer entrar nessa rede, é hora de abrir mão dos entrelaçamentos e pontos de sempre do cientificismo; é hora de abrir mão da falácia da prefiguração identitária fincada nos suportes da escrita e da gramática. (PINTO, 2013, p. 143).

Por isso, para compreendermos melhor as práticas linguísticas em contextos como esses, sociolinguisticamente complexos, devemos abrir mão de modelos preconcebidos sobre língua, buscando, como orienta Pinto (2014), deixar esse modelo monolíngue de imposição de uma língua sobre as demais - de uma língua cuja unidade é buscada, e nos abrirmos para outras visões mais plurais sobre língua, de modo que possamos compreender o que significa, a partir de tudo que se costuma aprender sobre língua, ouvir que a sua língua relacionada a sua identidade é arcaica, ou seja, já está ultrapassada. Assim, não podemos deixar de considerar que não podemos cair em generalizações afirmando que a língua polonesa relaciona-se ao modo como os falantes percebem e negociam suas identidades, pois, como vimos, para muitos, é a língua polonesa falada na comunidade que desempenha esse papel. É essa a

língua que marca a identidade da comunidade, de modo que o conflito entre esses “dois poloneses” representa um conflito identitário.

Com isso, foi possível perceber que decidir ensinar língua polonesa nesse contexto é só o primeiro passo, há muito o que se decidir e sobre o que refletir antes de iniciar esse processo de ensino e aprendizagem da língua. O planejamento linguístico de uma política que busca a manutenção do uso da língua passa também por ampliar a concepção de língua única, a língua padronizada, e pela ampliação da “rede” tecida coletivamente.

Para finalizar, por ora, essa discussão, lembramos que, de acordo com Rajagopalan (2013),

No reino dos fatos, há certezas absolutas. No campo das políticas linguísticas nunca há certezas absolutas. O que impera nesse campo são expediências de ordem política. [...] No lugar de certezas absolutas, o que se têm na mente daqueles que são responsáveis são opiniões (que sempre comportam avaliações opostas). (RAJAGOPALAN, 2013, p. 38).