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Breve esboço do indigenismo no Brasil

O INDIGENISMO INTEGRACIONISTA: DO NACIONAL AO REGIONAL

1.4. Breve esboço do indigenismo no Brasil

No Brasil, o “indigenismo integracionista” tem uma história um pouco diferenciada. Ele se origina de uma outra “tradição de conhecimento”, a “tradição sertanista”, que vai se cruzar com o indigenismo mexicano já em acelerado processo de “regionalização” nos anos 1950. No caso brasileiro, Antonio

Carlos de Souza Lima defende que a abolição jurídica da escravidão em 1888, somados com a implementação de um regime republicano em 1889 e o fim da união entre Igreja e Estado são acontecimentos que fizeram surgir, como problema fundamental para os intelectuais e políticos da virada do século XIX, a gestão de uma população mestiça, composta por numerosas sociedades indígenas, alforriados, imigrantes de origem européia e redes sociais relativamente autônomas em relação às esferas de poder do Estado (Souza Lima 2002: 160-161). É nesse contexto que a antropologia brasileira vai se originar, sendo requisitada a pensar e a propor caminhos para a formação do “povo brasileiro”, com uma identidade própria, considerando a diversidade histórica e cultural dos grupos humanos que o integram.

No contexto do indigenismo à brasileiro, o “sertanista” torna-se o personagem chave, o especialista que domina as técnicas de atração e de pacificação dos indígenas “arredios”, que detém os conhecimentos necessários para “atraí-los”, “pacificá-los” e induzi-los a caminhar no sentido da “civilização” e do “interesse nacional”. A institucionalização do indigenismo à moda brasileira tem início com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 20 de junho de 1910, no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio - Decreto 8.072/1910. Sobre este período, ver Gagliardi (1989).

A criação do SPI significou, entre outras coisas, o início do projeto republicano de substituir a “catequese religiosa”, como forma de incorporar aos indígenas no “processo civilizatório” e engajá-los nas estratégias de promoção do “progresso nacional”, pela “proteção leiga do Estado”. Em janeiro de 1918, em meio à pressão política de setores anti-indígenas e da Igreja Católica que perdia espaço e poder na “administração dos índios”, o SPILTN foi dividido. O setor que cuidava da localização de trabalhadores nacionais foi deslocado para o Serviço de Povoamento do Solo, ficando constituído o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Não que o projeto de integração dos indígenas à sociedade nacional já não estivesse em curso, mas em abril de 1936, por ocasião da assinatura do Decreto no 736/36, esta perspectiva se explicita claramente. Este decreto estabelece o novo Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios que inclui “a nacionalização dos silvícolas, com o objetivo de sua incorporação à sociedade brasileira”. Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, o SPI passou

sucessivamente por três ministérios e teve sua legislação diversas vezes alterada. Ainda em novembro de 1939 foi criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), com a função de assessorar o SPI no exercício da sua função de “assistência e proteção aos índios”. No período de existência do SPI foram também estabelecidas parcerias e intercâmbios acadêmicos e profissionais com o Museu Nacional/RJ e a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Foram criados, em 1942, a Seção de Estudos do órgão e, em 1954, o Museu do Índio/RJ. Para custear as pesquisas de campo, nos anos 1950 o SPI estabeleceu convênios com a UNESCO. A contradição entre “pacificação” e “proteção” acompanhou praticamente toda a trajetória histórica do SPI, estendendo-se por pelo menos os primeiros vinte anos de existência da agência que o substituiria, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

No Brasil, o “protecionismo” e o “assistencialismo” foram seguidos de perto pelo “produtivismo”, configurando - como afirmaria Gagliardi (1989) e Souza Lima (1995) – a marca do sistema tutelar do indigenismo implementado sob a batuta do Estado nacional. Aos “postos indígenas” - dado o seu contato cotidiano com a população – coube o papel de unidade responsável localmente pela administração da população e pela gestão econômica do chamado “patrimônio indígena”. Envolver as famílias indígenas em atividades que proporcionassem algum tipo de “renda” – como a lavoura e a pecuária, entre outros – era visto como uma atividade “educativa”, bem como um meio para viabilizar a sustentabilidade econômica das unidades e do sistema político-administrativo de “proteção”. Roberto Cardoso de Oliveira, em depoimento registrado durante o processo de elaboração deste trabalho, que nos anos dos SPI chegou a haver o que foi chamado de “dízimo” , que denominava o percentual da produção indígena (e renda gerada) que ficava com a instituição.

Além de planos e estratégias conjuntas para “modernizar” a atuação e o aparato político- administrativo do indigenismo oficial brasileiro, os “etnólogos” e os “sertanistas” do CNPI mantinham, por intermédio do Instituto Indigenista Interamericano, contatos com o indigenismo interamericano então dominado pelos mexicanos. É a partir desses contatos que a categoria indigenismo efetivamente passaria a fazer sentido no Brasil. É a partir de então que começam a ser introduzidas no órgão tutelar brasileiro as teorias e as práticas elaboradas pelo indigenismo mexicano (Oliveira Filho & Souza Lima 1983).

O Instituto (ou III) atua como agência de articulação, intercâmbio e fomento das agências indigenistas nacionais, promovendo, além de congressos, a realização de cursos de formação e capacitação, a publicação de estudos e trabalhos de pesquisa, especialmente da produção gerada pela antropologia aplicada, a organização de reuniões e oficinas de avaliação de projetos e programas específicos, a articulação com outras agências dos sistemas OEA e ONU, entre outras atividades.

O golpe militar de 1964 no Brasil transforma este cenário, sem, no entanto, perder de vista a perspectiva integracionista no desenho e relacionamento do aparato político-institucional do Estado nacional responsável pela administração dos assuntos indígenas. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) tinha chegado aos anos 1960 imerso numa crise derivada de problemas de má gestão, corrupção, etc. Em 5 de dezembro de 1967, por meio da Lei 5.371, o governo militar extinguiu esse órgão e criou, no seu lugar, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A constituição do novo órgão significou também a criação da chamada “renda anual do patrimônio indígena”, onde a dimensão econômico-política da ação indigenista ganhou maior visibilidade e se institucionalizava que a manutenção do aparato burocrático de “pacificação” e “proteção” dos indígenas deveria ser, parcialmente, custeada pela exploração e comercialização das terras e dos recursos naturais dos territórios indígenas.

A partir dos anos 1970, o “saber indigenista” é um campo em disputa entre os que ficaram no “órgão indigenista oficial”, e aqueles que seguiram ou surgiram de outros espaços de ação e formação: de instituições de ensino e pesquisa; de instituições ligadas à Igreja Católica; de organizações não governamentais (ONGs) nacionais e internacionais; de agências multilaterais e bilaterais de cooperação técnica e financeira no Brasil, entre outras (ver Cardoso de Oliveira 1988; Matos 1997). Nesse momento o indigenismo interamericano fundado na tradição mexicana, assim como a chamada antropologia aplicada a ele associada, estão em crise, particularmente pelo seu envolvimento com processos de “colonialismo interno”.

A Constituição Federal de 1988 trouxe novos ares ao indigenismo brasileiro. Reafirma os direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam; a competência da União de demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens; o dever do Estado e o direito dos indígenas de serem

consultados quando da execução de atividades de exploração de recursos naturais com impacto nas terras e na população indígenas; e a competência civil dos índios, suas comunidades e organizações para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Ao processo constitucional - que envolveu as chamadas “entidades ou organizações de apoio”, um conjunto de indígenas alçados à cena nacional na qualidade de representantes da indianidade genérica e grupos indígenas específicos, como os Kayapó -, segue um período de efervescência organizativa no meio indígena, no mais das vezes contando com a ajuda financeira e assessoria das entidades de apoio, tanto nacionais quanto internacionais (Albert 1997, 1998, 2001; Athias 2002; Ricardo 1996b).

A hegemonia política, ideológica e administrativa da FUNAI sobre a gestão oficial da população e dos territórios e recursos naturais indígenas estende-se até 1991, quando algumas das suas funções passam a ser compartilhadas ou mesmo repassadas para outros órgão da administração pública federal. Até o final dos anos 1980, a FUNAI era o espaço privilegiado da disputa sobre a administração dos “assuntos” e “problemas” indígenas; foi ali onde se julgou por um período que residiria a solução dos “problemas dos índios”. A FUNAI era uma espaço de poder a ser tomado, ocupado e transformado. Os últimos quinze anos têm revelado que os processos são mais complexos e os resultados inseguros. Com a publicação dos Decretos no 23, 24, 25 e 26, de 4 de fevereiro de 1991, são repassadas respectivamente para os Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, da Agricultura e da Educação ações da “política de assistência ao índio” que estavam até então sob a alçada da FUNAI executar e conceder à terceiros a co-responsabilidade pela implementação (Barroso-Hoffman et al. 2004; Ricardo 1996a, 2000; Souza Lima & Barroso-Hoffman 2002; Verdum 2003, 2005a, 2005b).

Esta é, em linhas bastante gerais, a narrativa que prevalece sobre o indigenismo no Brasil. Como no México, o indigenismo brasileiro surge ligado ao projeto de modernização e integração do meio rural. Nasce e se desenvolve como um corpo de idéias, práticas e instituições voltadas para a incorporação econômica, política e cultural das sociedades indígenas aos projetos de “desenvolvimento nacional”. As relações entre o indigenismo brasileiro e as agências multilaterais e bilaterais de cooperação ainda é um campo de pesquisa praticamente por desbravar, com a possível exceção dos trabalhos de Lima (2000, 2002), Oliveira Filho (2002), Salviani (2002) e Stibich (2005). Isso tanto em

relação ao indigenismo oficial quanto ao do chamado “campo da sociedade civil”. Como veremos mais à frente, as agências desempenharam um importante papel na formulação, disseminação e implementação deste tipo de política no século XX. O mesmo vazio de conhecimento pode ser assinalado em relação à importância e influência que teve ou possa ter tido o indigenismo à moda brasileira no cenário internacional. A dimensão internacional ainda é um campo aberto para pesquisa. No final deste trabalho incluímos uma cronologia incompleta de eventos internacionais que julgamos importante pontuar, considerando possíveis estudos por esta via.