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O capital social e o empoderamento dos excluídos

DO ETNODESENVOLVIMENTO AO CAPITAL SOCIAL

3.2. O capital social e o empoderamento dos excluídos

O significado do termo “capital social” é variado e sua aplicação no mundo social é subordinada à disputas num “campo de forças” ocupado por diferentes “usuários” – os teóricos e analistas de políticas e processos de desenvolvimento, as agências governamentais, as agências internacionais de cooperação, as organizações não-governamentais ou da “sociedade civil”, as organizações indígenas de base ou “de segundo grau” (OSG), as comunidades locais, entre outros. A discussão sobre capital social, segundo Diaz-Albertini (2003:249-250), tem duas histórias: uma bastante antiga, ligada às diversas áreas das ciências sociais, onde se desenvolve o debate sobre a importância das redes sociais, da cultura, das normas, da confiança e do empoderamento no “funcionamento de uma sociedade”; outra mais recente, estreitamente ligada aos resultados gerados pelas políticas de mercado e de ajuste estrutural implementadas na América Latina e outras regiões. 41 Na Sociologia, destacam-se as contribuições de Bourdieu (2003) e de Coleman (1988); na Ciência Política, sobressai o trabalho pioneiro de Putnam (1993), considerado um continuador da tradição do “Pacific functionalism” americano das décadas de 1950 e 1960, com suas concepções sobre “integração social”.

O antropólogo John Durston, da División de Desarrollo Social da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), tem se destacado recentemente pela utilização do conceito de “capital social” aplicado ao desenvolvimento de comunidades campesinas e indígenas na América Latina, particularmente no Chile. Durston (2003) define “capital social” como sendo o conteúdo de certas relações sociais, que combinam atitudes de confiança com condutas de reciprocidade e cooperação, ao qual atribui fundamental importância nas estratégias de superação da pobreza. Para ele,

“existe um amplo reconhecimento de que os indivíduos e as coletividades manejam recursos intangíveis, que são ‘capitais’, no sentido geral de ativos, cuja mobilização permite lograr melhores resultados em empreendimentos e estratégias, comparativamente com o que havia sido possível na sua ausência” (2003: 149).

Ao seu modo, Durston busca escapar da visão simplista do determinismo cultural, que descuida da variabilidade e volatilidade dos sistemas normativos, isto é, “da facilidade com que são reelaborados

[pelos atores sociais] em reação às mudanças nas estruturas sociais e em reposta a outras mudanças no entorno” (2003: 154). Para ele, devemos distinguir “capital social” (situado no plano da conduta das relações e sistemas sociais) de “capital cultural” (situado num plano mais abstrato e simbólico juntamente com o “capital humano”). Do contrário, corre-se o risco de ficarmos presos e emaranhados na polêmica entre “culturalistas” e “sociologisantes”. Para Durston, os subsistemas cultural e social estão em constante interação, nenhum deles é determinante, e eles não se reproduzem sem sofrer modificações ao longo do tempo e no espaço.

Outro aspecto importante destacado por Durston, que foi originalmente identificado por Woolcock (1998), são as diferentes formas em que se manifesta o capital social, cada uma com características e dinâmicas próprias: o bonding social capital ou capital social de vinculação, que inclui o capital social individual, o grupal e o comunitário; o bridging social capital, ou o capital social gerado/gerador de alianças entre grupos no mesmo nível horizontal; e o linking social capital, ou capital social de escada, criado/criador de vínculos e reciprocidades entre grupos em posições assimétricas. Para Durston (2003: 161),

“estas diversas formas de capital social em combinação podem contribuir para superar a pobreza e para melhorar a qualidade de vida em sentido amplo. Mas para que isto resulte, é necessário que o capital social se combine com outros ativos de forma complementar e sinergética, em uma estratégia coerente e compartilhada, dentro de um contexto de oportunidades para mudar as relações de controle na sociedade”.

A análise e as proposições de Durston, que acumula uma vasta experiência de reflexão sobre processos de desenvolvimento comunitário rural, incluindo aí comunidades indígenas em diferentes países latino-americanos de fala hispânica, dão uma atenção especial às potencialidades que a idéia de capital social traz para a superação dos inúmeros quadros de pobreza e debilidade organizacional e política encontrados. Dentre os inúmeros obstáculos a serem enfrentados nesta superação estariam o “clientelismo”, relação social-política amplamente disseminada na América Latina, e as situações de heterogeneidade, desigualdade e imposição de projetos pessoais existente nas relações informais que permeiam as instituições comunitárias - que em muitos casos estão articuladas e são potencializadas

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Woolcock (1998) identifica Lyda Judson Hanifan (1920) e Jane Jacobs (1961) como os primeiros proponentes do moderno conceito de capital social. Ver também Portes (1998).

pelo estabelecimento de relações assimétricas de dependência com atores e agências externas. Durston, seguindo a tradição Bourdieu/Coleman, resgata a noção de “conflito” e o papel das “relações de poder” e “dependências assimétricas” como aspectos que não podem ser deixados à margem, seja no estudo seja na implementação de processos de constituição de “capital social” (Ver Durston 2000)..

A introdução do conceito de “capital social” no debate sobre “pobreza” e sobre “modernização e desenvolvimento” de comunidades campesinas e indígenas na América Latina, nos anos 1990, provocou intensa agitação no meio acadêmico e entre as agências bilaterais e multilaterais de cooperação. Conferências, seminários, simpósios e oficinas de trabalho foram organizados com a finalidade de esmiuçar seus múltiplos significados e aplicações nas diferentes áreas de produção de conhecimento e intervenção social. A região andina, e particularmente o Equador, o Peru e a Bolívia, formaram um gigantesco laboratório in situ de experimentação e avaliação do “capital social” como meio para promover a inclusão social, o combate à pobreza rural e o auto-desenvolvimento indígena e campesino. Gerou-se uma vasta bibliografia acadêmica e nas agências internacionais de desenvolvimento. 42

Na região andina, desde meados da década dos noventa, agências multilaterais como o Banco Mundial (BIRD), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), as duas últimas em menor proporção, esforçaram-se em abrir e desenvolver linhas de trabalho baseadas na noção de “capital social”, como meio de garantir o êxito dos programas de “desenvolvimento rural”. Passaram a investir no fortalecimento institucional dos indígenas e campesinos, e no desenvolvimento de ferramentas conceituais e metodológicas para induzir a formação de líderes locais e a ampliação da participação social da população nos projetos de desenvolvimento econômico. Privilegiaram o investimento no apoio técnico e financeiro às organizações indígenas de segundo grau (OSG) e na atuação das ONGs, caracterizando o que vem sendo chamado de “contrapartida neoliberal” nas políticas sociais. No caso equatoriano, onde a presença de ONGs não é nova, as mais importantes remontam aos tempos das lutas pela terra (anos 1960-1970), houve uma proliferação e entrada massiva deste tipo de organização. Segundo levantamento realizado por Jorge

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Ver Atria & Siles (2003); Baquero (2001); Bebbington (2003a, 2003b); Bebbington & Torres (2001); Carroll (2002); Durston (2002); Kliksberg & Tomassini (2000).

León e publicado em 1998 (citado por Bretón 2002: 44), quase três quartos (72,5%) das ONGs surgidas no Equador ao longo do século XX (até 1995) apareceram entre 1981 e 1994.

O Banco Mundial é um dos principais promotores da idéia de capital social no contexto das chamadas políticas de etnodesenvolvimento ou desenvolvimento com identidade na América Latina. 43 No início dos anos 1990, o Banco deslanchou seu Indigenous Peoples Development Initiative in Latin America, dando início a uma intensa agenda de atividades de treinamento e capacitação de pessoal indígena, complementada por “pré-investimentos operacionais” destinados a gerar as condições para elaboração, pelos próprios indígenas (comunidades locais e organizações), de projetos de desenvolvimento adequados às suas capacidades e interesses. Segundo o sociólogo e cientista político equatoriano Jorge Uquillas, que juntamente com Shelton Davis e William Partridge foram personagens da linha de frente do Banco Mundial no fomento e apoio ao “etnodesenvolvimento indígena” na América Latina, o programa tinha por objetivo fortalecer as organizações indígenas e apoiar o incremento das suas opções de mudança socioeconômica, de forma a que respondam ao seu desejo de autodeterminação e sejam compatíveis com os seus valores culturais específicos. Esta atividade foi levada a cabo em coordenação com o Fondo Indígena Latinoamericano, cuja secretaria executiva está em La Paz (Bolívia), contando para isso com o apoio financeiro do Fundo de Desenvolvimento Institucional do Banco e do Fundo Especial da Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional (ASDI).

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Em setembro de 1993, o Indigenous Peoples Development Initiative promoveu um encontro de várias agências de cooperação em Washington, D.C., incluindo o Banco Interamericano (BID), o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (IFAD), o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina (Fundo Indígena), a Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO), e outras, visando avaliar a situação dos povos indígenas na região, em especial a questão da pobreza, e estabelecer uma estratégia de ação conjunta. Um dos resultados deste processo foi a criação do

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Em um artigo publicado em junho de 2004, Anthony Bebbington, Scott Guggenhein, Elizabeth Olson e Michael Woolcock relatam como foi introduzido e se desenrolou o debate sobre capital social no interior do Banco Mundial. O estopim foi o livro de Robert Putnam, Making Democracy Work, publicado originalmente em 1993. Sobre a simbiose entre capital social e desenvolvimento indígena no âmbito do Banco Mundial, ver Banco Mundial (2002); Davis & Patrinos (1996); Davis & Soeftestad (1995); Partridge & Uquillas (1996); Uquillas & Aparício Gabara (2000).

Institutional Development Fund, destinado a apoiar as iniciativas de fortalecimento institucional e do capital social dos movimentos e organizações indígenas, com vistas à elaboração e desenvolvimento de projetos envolvendo os movimento indígenas e os governos dos países.

Um dos princípios chave deste “modelo de desenvolvimento” é a idéia de que ele deve ser construído sobre as “qualidades positivas” das culturas e sociedades indígenas - o seu senso de identidade étnica, a estreita ligação com territórios ancestrais e a capacidade de mobilizar trabalho, capital, e outros recursos que viabilizem serem alcançados os objetivos estabelecidos. Ainda, tipicamente o projeto deveria ser elaborado com a participação efetiva dos indígenas, cabendo a eles também o papel central na gestão do processo de desenvolvimento desencadeado. Por meio de um autodiagnóstico participativo prévio, os responsáveis pela elaboração do projeto deveriam almejavar gerar nas organizações indígenas as capacidades necessárias para que elas identificassem coletivamente suas necessidades, estabelecendo daí linhas de ação, necessidades de recursos humanos, contratá-los, e transformar este conjunto de recursos em projetos de “auto-desenvolvimento”. Ou seja: o objetivo era “proporcionar” às organizações de segundo grau indígenas (OSG) as condições organizativas e os conhecimentos necessários para a incorporação na prática do “espírito do desenvolvimento” – em alusão ao clássico de Max Weber (2004).

Para Bretón (2001a) o Banco Mundial é a instituição que mais tem apostado no fortalecimento organizacional como prioridade de seus investimentos, recolhendo as esperanças depositadas nos últimos tempos no capital social como motor do “empoderamento dos excluídos”. No Informe sobre o Desenvolvimento Mundial de 2001, foi estabelecido que o “componente empoderamento” teria um papel de destaque nas estratégias da instituição de redução da pobreza. Definiu-se “empoderamento” como “um processo que incrementa os ativos e a capacidade dos pobres – tanto homens como mulheres – assim como os outros grupos excluídos, para participar, negociar, trocar e sustentar instituições responsáveis pelo seu bem estar” (Banco Mundial, 2002: 11).

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Na visão oficial do Banco, empoderamento implica incrementar o acesso e o controle dos recursos e das decisões por parte dos pobres, modificando a natureza das relações entre os “pobres” e os atores tanto estatais quanto não estatais. Implica mudanças nas regras, nas normas e nos comportamentos de forma que a “voz dos pobres” seja ouvida e representada nas interações com as instituições do estado e outras entidades não estatais que afetam suas vidas; que seja incrementado o acesso aos recursos e às decisões, assim como o controle sobre estes. Em sentido mais amplo, afirma- se, o empoderamento tem a ver com o aumento da liberdade de escolha e de ação. É um processo que pode se estender ao nível individual como também aplicar-se aos grupos sociais. Por fim, o empoderamento requer medidas de ordem doméstica, comunitária, nacional e mundial (Banco Mundial, 2002). Não é a toa que, com este discurso, o Banco seja visto como uma instituição “progressista”, particularmente em contextos socioeconômicos e políticos de constrangimento.

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Colocadas as principais formulações sobre etnodesenvolvimento e capital social, assim como as agentes e agências relacionadas a estas noções, passo a identificar outras transformações e convergências interculturais ocorridas nas últimas duas décadas que nos permitem vislumbrar por quais caminhos vieram se constituindo as condições para a viabilização nos anos 1990 de um neo- indigenismo.