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Interdependências conflitantes e novos dilemas

DO ETNODESENVOLVIMENTO AO CAPITAL SOCIAL

3.4. Interdependências conflitantes e novos dilemas

Anthony Bebbington (2002: 97-98) observa que, de um modo geral, as pesquisas sobre as ONGs têm enviesado nosso conhecimento e entendimento sobre elas. No mais das vezes tem acontecido o seguinte: (1) elas têm sido categorizadas como atores do norte e atores do sul, em detrimento do fato de que elas estão, ao mesmo tempo, imersas em redes sociais que muitas vezes são transnacionais e não formais; (2) elas têm sido concebidas como organizações distintas e separadas dos Estados e de outras estruturas e organizações sociais, quando na prática elas estão conectadas a redes que cruzam essas fronteiras institucionais - pouco se sabe sobre essas redes, e menos ainda sobre suas implicações para o controle social e para o comportamento das instituições de uma sociedade; (3) elas têm sido conceituadas como atores “de desenvolvimento”, e menos como deveriam ser, isto é, como fenômenos sociais que devem ser entendidos em relação a um conjunto de outras relações sociais e interesses individuais, coletivos e institucionais.

No "campo" onde desenvolvemos nossa pesquisa, a relação de convergências e divergências entre interesses dos diferentes ministérios e órgãos governamentais, das agências bilaterais e multilaterais de cooperação internacional, das organizações indígenas e das ONGs indigenistas, desenvolve-se por meio de uma interdependência conflitante, que afeta a trajetória e as estratégias de ação de todos os atores coletivos envolvidos. A “lógica dual” da ação coletiva proposta por Wanderley Guilherme dos Santos (1989) se constituiu numa importante ferramenta teórica para perceber a multiplicidade de lógicas de ação e a multiplicidade de formas de cooperação que constituem propriamente a vida social. A novidade da lógica dual é introduzir o conflito como impulso para a ação conjunta. O conflito como fator que pode, sob determinadas circunstâncias políticas, econômicas e institucionais, levar à cooperação. Ela nos faz ver que não existe “a lógica”, mas uma multiplicidade de lógicas que sob determinadas condições gera interdependências que podem levar à cooperação.

A isso agregaríamos a idéia de “campo polinucleado de poder”, como desenvolvido por Flávia Barros (1996: 127), que chama a atenção para os processos de definição e concentração de poderes, onde determinados agentes tornar-se-iam cada vez mais estratégicos, como “agentes-núcleo”, matrizes

geradoras e difusoras de ideários; lógicas; modelos de intervenção; regras e normas que orientariam a criação de novos direitos e deveres; sistemáticas de financiamento; princípios, critérios e recomendações básicas para a formulação de políticas globais, nacionais e locais.

Ao que parece, emergiu com força nas duas últimas décadas, particularmente nas regiões andinas afetadas pelas políticas de desenvolvimento indígena implementadas nesse período, e em particularmente no Equador, a formação do que Castells (1999: 24-26) chamou de “identidades de projeto”. A identidade que se forma quando os atores sociais, utilizando-se do material cultural ao seu alcance, constróem uma nova identidade, capaz de redefinir sua posição na sociedade e, sob determinadas condições, provocar uma transformação de toda a estrutura social. Neste caso, o processo de construção de identidade produz inevitavelmente “sujeitos”. Sujeitos que constróem sua identidade associada a um projeto de vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida num primeiro momento, porém expandindo-se no sentido da transformação da sociedade, em decorrência ou como prolongamento desse projeto de identidade.

Viabilizar a constituição de mecanismos institucionais que propiciem a alocação, o acesso e o fluxo de recursos financeiros e técnicos para o “desenvolvimento comunitário” e o “fortalecimento institucional” indígena – como é o caso dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas, no Brasil, e do PRODEPINE, no Equador - é algo que passou a interessar não somente à população local beneficiada, mas também os agentes-núcleo como as entidades “federativas regionais” – como é o caso da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), por exemplo – e as “federativas nacionais” - como a Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE), por exemplo – que estão envolvidas em negociações com o Estado e com a cooperação internacional – com o Banco Mundial, por exemplo. Por outro lado, ao serem colocados na condição de ter que se viabilizar e legitimar como representação frente ao Estado e frente aos representados, de ter que lutar pela inserção de seus representantes institucionais nas estruturas de governo, para garantir que as demandas que os legitimam frente “às bases” sejam minimamente atendidas, os indígenas que atuam nesse meio convivem com o dilema e a tensão gerada pela situação híbrida que acaba sendo criada. Ao mesmo tempo em que discursivamente pleiteiam “autodeterminação” para seus representados desenvolverem

seus projetos próprios de desenvolvimento, por exemplo, se vêem enredados na “armadilha do Leviatã”. A mesma razão que os leva a recorrer ao Estado, passa a ser a razão pela qual não podem mais dispensá-lo, sob pena de inviabilizar as condições que eventualmente estejam garantindo a defesa dos interesses que querem representar frente ao Estado.

Às burocracias de Estado também lhes é conveniente constituir esta rede de interdependência conflituosa como meio de viabilizar o “mecanismo de repasse de recursos para a ponta”. Com ela criam- se as condições para amenizar as pressões advindas de setores indígenas mais organizados, que acabam, de certa forma, ficando menos aguerridos. Ao mesmo tempo em que se responsabilizam frente “às bases” por garantir o bom funcionamento do instrumento de “ajuda ao desenvolvimento indígena”, têm que agir de forma a serem vistos pelo governo “receptor” e pelos “doadores” como co-responsáveis pelo funcionamento e governabilidade da cadeia de ajuda, isto é, da extensa rede social que faz chegar idéias, informações, dinheiro, bens e serviços aos destinatários. Esta “parceria”, não isenta de instabilidade, pode ser, e geralmente é assim vista pelos funcionários do governo, um mal menor, necessário para demonstrar aos “doadores” os avanços obtidos na formação e no fortalecimento do capital social indígena.

Aos “doadores da ajuda”, que podem ser tanto instituições financeiras internacionais (IFIs) quanto agências bilaterais de cooperação, também lhes agrada ver tudo funcionando normalmente - o dinheiro fluindo até os destinatários, o registro da utilização do dinheiro sendo feito conforme as regras previamente estabelecidas, os relatórios e avaliações sobre o andamento dos trabalhos e sobre os resultados dos investimentos sendo elaborados e encaminhados na forma e nos tempos estabelecidos. A possibilidade de demonstrar isso pode significar a garantia de um bom relacionamento com os acionistas dos bancos, por exemplo, e uma maior chance de obter um novo aporte de dinheiro no ano seguinte.

Se quisermos compreender melhor a natureza, as causas, as dinâmicas e os processos de semantização e resemantização dos chamados “conflitos étnicos”, é na relação entre os povos indígenas e os Estados onde devemos buscar as primeiras pistas, as primeiras contribuições. Mas se nos

restringirmos a esta relação, sua validade será de limitada contribuição para o entendimento da complexidade de relações e conflitos sociais que ocorrem nos países e na América Latina, muito vinculados a interações com o ambiente “global” mais amplo – que conforma um complexo campo de interesses, tensões e disputas.

A seguir, iremos tratar do comportamento das agências de cooperação internacional bilateral e multilateral neste processo de transição para o “indigenismo etnodesenvolvimentista”.

CAPÍTULO 4