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BREVE INTRODUÇÃO HISTÓRICA, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS CONTEMPORÂNEOS

Em razão da relevância que os movimentos sociais vêm ganhando no período contemporâneo, é importante fazer-se uma dissertação, apresentando um breve painel histórico de como o pensamento social e político compreende esses “novos” movimentos sociais uma vez, que têm características distintas de outros espaços institucionalizados de ação social. Assim como no caso da sociedade civil, o conceito de movimento social também possui abordagens clássicas, embora não se utilizem dessa expressão adotando, em seu lugar, expressões como “comportamento coletivo” e “ação social”. Elas estão divididas em duas grandes correntes: uma que vê uma manifestação de irracionalidade nas motivações das erupções de massas, associando os comportamentos coletivos de massa ao risco à ordem social, e outra que vê os coletivos sociais como um mundo peculiar, construindo formas de solidariedade complexa, promovendo mudanças sociais ou iniciando um processo revolucionário.

As teorias clássicas8 predominaram até os anos de 1960, quando a maioria das correntes analíticas associava a ação dos movimentos sociais a processos mais amplos e a transformações sociais, ligados às rápidas mudanças da sociedade industrial. Nesse momento, a concepção de que o sistema democrático capitalista era aberto, fazia com que a ação coletiva extra-institucional fosse interpretada como antidemocrática e desestabilizadora. Essa leitura foi perdendo força na medida em que os movimentos sociais se proliferaram e ganharam maior complexidade e alcance com o surgimento de organizações que lutavam pelas causas mais diversas. São denominados de “novos movimentos sociais” 9,

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Os pensadores da escola de Chicago, os teóricos da sociedade de massas, os teóricos centrados no poder político e nas relações sociais de classe e produção e os pensadores da sociologia alemã são considerados representantes da escola clássica das teorias sobre os movimentos sociais (RAMOS, 2005).

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composto por pacifistas, feministas, ambientalistas, entre outros. Eram “novos” por estarem bastante afastados do caráter de classe dos movimentos sindical e camponês, atuando em cooperação – e não mais em oposição - com o sistema econômico e no escopo político das instituições vigentes.

Assim, com o fim da Guerra Fria e as mudanças sociais e políticas ocorridas a partir do final dos anos 1980, os movimentos sociais passaram gradualmente a serem considerados atores sociais importantes para a promoção de direitos civis e da cidadania. As iniciativas originadas fora do escopo político do Estado – e de seus mecanismos de controle – deixam de ter o caráter subversivo e revolucionário e passam a ser compreendidas como manifestações próprias e saudáveis de um ambiente político e social plural.

Estabelece-se a lógica de cooperação com a incorporação desses atores sociais na esfera pública, ampliando seu alcance no âmbito da governança democrática. Quando o governo e suas instituições assumem prática políticas cooperativas,

os movimentos adquirem maior legitimidade em suas ações reivindicatórias,

havendo maior “porosidade” em relação às demandas dos coletivos sociais. O passo seguinte foi o reconhecimento do status jurídico e político de tais formações sociais momento em que o Estado incorpora a ação das organizações originadas na sociedade civil, através de seus arranjos institucionais e políticos.

Em relação ao conceito e às características dos movimentos sociais, é preciso compreender que são mais do que o agrupamento espontâneo de uma massa de indivíduos. Têm natureza propositiva e são formas de organização e articulação relativamente estruturadas de comportamento coletivo, compostas por grupos de indivíduos reunidos por valores compartilhados e com um propósito comum de expressar publicamente um problema de natureza subjetiva, que pretendem seja percebido de forma distinta pela sociedade e pela política. Tais formas de ação coletiva objetivam, a partir de processos freqüentemente não-institucionais de pressão, mudar, total ou parcialmente, a

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ordem social existente. Também desejam influenciar os resultados de processos sociais e políticos referentes à definição de políticas públicas, que envolvem tanto valores ou comportamentos sociais como as decisões institucionais de governos e organismos.

Assim, o campo de ação dos movimentos sociais é um espaço da política não - institucional10, devendo ser percebidos como respostas a possibilidade de construir problemas em determinada esfera social, e de transmitir essa realidade ao conjunto da sociedade – que antes da formação do movimento sequer reconhecia a existência do problema colocado, e muito menos entendia ser possível encontrar soluções para ele. Os movimentos sociais não devem ser considerados resposta aos problemas existentes, posto que estes nem são reconhecidos pelo conjunto da sociedade e suas diferentes esferas.

Nessa tarefa de transferir os protestos gerados em um setor estrutural para a esfera da sociedade, os atores forjam vínculos através dos quais formam ideais reguladores, cuja existência demanda (de seus líderes e de seus componentes) a capacidade de traduzir experiências do particular para o geral, do institucional para o civil e vice-versa. Quando têm sucesso nesta tarefa, os movimentos passam a dialogar com a sociedade e atraem a atenção de seus membros para uma compreensão mais global da causa e, desta forma, o problema e o grupo que o aciona entram definitivamente para a vida pública (ALEXANDER, 1998).

No caso dos países altamente industrializados - ao contrário do que propugnavam as teorias sobre comportamentos políticos não convencionais ou não-institucionais até os anos de 1960 - tais movimentos não são frutos da resposta de parte da população pelas perdas infringidas pela modernização econômica, política e cultural. Nesses países, os membros e os atores que mais apóiam tais movimentos gozam de uma segurança econômica e estão

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A política não institucional deve ser entendida como um modo de agir de um ator com vistas a obter o reconhecimento explícito da legitimidade do seu meio de ação e de seus objetivos pela comunidade política.

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integrados em atividades e instituições sociais “ortodoxos”, realizando um movimento paralelo e dual frente à atividade política. Já no caso dos países emergentes, pode-se afirmar que esta análise se aplica a parcela da população e dependendo da temática adotada pelo movimento.

Entretanto, como se verá posteriormente, a história dos movimentos sociais na América Latina está fortemente influenciada pelas características sociais, políticas, econômicas e ambientais do continente, num cenário pautado pela exclusão social e pobreza que atinge grandes parcelas da população, pela existência de alta biodiversidade em grande parte de seu território, pela existência de regimes autoritários em vários momentos da sua história política, e pelas relações com outros atores sociais, entre outros fatores – sendo bastante diversas das características existentes nos países industrializados (FERREIRA, Leila, 1997, 2003 e 2006; LANDIN, 1993; OFFE, 1994; FERREIRA, Lúcia, 1996; IDS Report 1998a, 1998b, 1999).

Em relação aos valores defendidos pelos movimentos sociais contemporâneos, não se deve afirmar que advoguem esquemas pré-modernos ou pré-científicos, desejosos de um retorno a um passado idílico e romântico do Ser humano. É a realização mais plena de valores eminentemente Modernos, como a liberdade individual e os princípios humanistas e universalistas, que pauta sua agenda. Trata-se, na verdade, de uma provocação em relação às contradições e as inconsistências dentro dos valores de uma sociedade em transição da industrialização para a pós - industrialização, e não de um choque ou conflito entre os valores “dominantes” e os “novos” valores. O caráter moderno dos movimentos sociais se manifesta porque assumiram que o curso da história e da sociedade pode ser criado e modificado pelas pessoas e pelas forças sociais – mais do que pelos princípios “metasociais” de ordem divina ou natural (OFFE, 1994).

Classificar esses movimentos em favor ou contrários à Modernidade e às suas conquistas e aos seus avanços técnicos, econômicos, políticos, seria simplificar

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de modo leviano suas agendas e discurso, e as posturas que assumem em relação às questões problematizadas pela sociedade atual. A heterogeneidade de agendas e posturas em relação aos temas e demandas problematizados pelas diferentes esferas sociais e que alçaram a esfera pública da sociedade são extremamente diversas no contexto atual, como demonstram diversos estudos comparativos internacionais, regionais e nacionais, inclusive no continente Latino Americano (CHESTERS, 2005; CIVICUS, 1994; FALCONER, 1998, LESTER, 1995 e 1998; MALABED, 2000; RUGGIE, 2004). O reconhecimento dessa diversidade, além de evitar equivocadas generalizações ou banalizações, é um fator que joga importante papel para o surgimento da abordagem socioambiental, como se verá posteriormente nesse trabalho

Assim, os movimentos sociais são uma das esferas diferenciadas da sociedade, com valores particulares que se relacionam com domínios institucionais. Estão separados desses domínios e, de modo abrangente, têm como função precípua criar deveres coletivos, assegurando e protegendo os direitos individuais, e permitindo aos seus membros participar e atuar politicamente na sociedade. Procuram adotar certa estruturação e uma postura propositiva de modo a expressar publicamente um problema de natureza subjetiva, para que seja percebido de forma diferente pela sociedade e pela política.

Apesar de assumirem formas de atuar não-convencional e não-institucional, vêm sendo gradativamente reconhecidos por parcelas da comunidade política quanto aos seus objetivos e quanto à legitimidade dos seus meios de ação. Tal reconhecimento teve como conseqüência a possibilidade de manifestação e participação dentro de algumas esferas institucionais do governo e de espaços de participação democrática (comitês, conselhos, fóruns), a formulação de novos instrumentos jurídicos voltados à regulação dos movimentos e organizações sociais, ao estabelecimento de parcerias, à cessão de atividades por parte dos governos, ao surgimento de campanhas e protestos, apenas para enumerar algumas delas. Considerações sobre as dificuldades, os avanços e os resultados

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dessas formas de participação demandam estudo que não é o foco da presente tese.

Também no caso da América Latina, os movimentos sociais estão permeados pelas características acima mencionadas, mas incorporam outras em decorrência da realidade existente e das demandas geradas na região, permeadas pela exclusão social e pobreza, pela alternância entre a democracia e o autoritarismo, por uma sociedade patriarcal e patrimonial, pela debilidade das instituições, pela ausência de recursos humanos e financeiros pouco capazes de responder aos anseios da sociedade. Como bem salienta Ruth Cardoso (1987), a compreensão e o estudo dos movimentos sociais na América Latina são frutos de uma conjuntura intelectual e política bastante específica, que foi forjada por cada um dos processos vividos no continente, como por exemplo, o processo de industrialização dos anos 1950 e 1960, a participação popular e ascensão de novos processos sociais nos anos de 1970, a urbanização crescente nos anos 1980, entre outros.

Tal como ocorre em outras regiões, os movimentos sócias na América Latina pautaram-se – e ainda o fazem – pela realização de valores e direitos e também acreditam que a história e a sociedade podem ser alteradas a partir da ação das pessoas e através das forças sociais. A heterogeneidade de agendas e posturas em relação aos temas e demandas problematizados pelas diferentes esferas sociais, e que alçaram a esfera pública da sociedade, são extremamente diversas e refletem o cenário social, político, econômico, ambiental latino- americano, expondo os conflitos, os interesses, os choques, as soluções e propostas produzidas na região, e que ganham uma vertente eminentemente socioambiental em razão do quadro de pobreza e exclusão social e da existência de uma rica e diversa biodiversidade.

Tais conflitos, como se verá ao longo dessa exposição, têm características próprias e são um fator importante para medir o avanço das questões relacionadas à sustentabilidade, ao desenvolvimento e ao ambiente na América

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Latina – e, conseqüentemente, também demandam a construção de outros paradigmas e soluções que devem se afastar de visões fragmentadas e pontuais e caminhar para uma postura mais transversal e integrativa, capaz de reconhecer e efetivamente enfrentar as complexidades do cenário contemporâneo.

Finalmente é importante afirmar-se aqui que os movimentos sociais não significam uma forma menos “evoluída” em relação às formas mais estruturadas e institucionalizadas existentes na sociedade – como podem acreditar alguns desatentos estudiosos sobre o tema. Não há que criar-se uma linha evolutiva ou mesmo uma falsa idéia de que haja uma passagem para um nível superior de consciência entre um e outro processo social. Como bem colocou Cardoso:

“Entre os estudos conhecidos não há nenhum que mostre, através de dados históricos, que no curso normal de desenvolvimento das formas de participação política vai do local para o geral, das formas mais ‘espontâneas’ para as mais organizadas, das manifestações na espera de reprodução para aquelas na esfera da produção, dos movimentos reivindicativos para os partidos.

“Não há também, estudos que demonstrem que todos os processos de ‘desenvolvimento’ dos movimentos sociais seguem a mesma direção e reproduzem resultados semelhantes.” (Cardoso, 1987; p.06)

Como se verá mais detalhadamente no decorrer do presente trabalho, a revitalização do debate em torno do conceito da sociedade civil se dá a partir dos anos de 1970, quando a efervescência das atuações dos indivíduos associados de forma voluntária propiciou novas formas de sociabilidade. As dinâmicas da vida social, política, econômica e cultural, assistidas na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina são apontadas como as origens dos processos que desencadearam a redefinição política e cultural nessas regiões (COHEN E ARATO, 1993)

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Enquanto na Europa e nos Estados Unidos esse processo está associado à emergência de novos movimentos sociais em reação a uma série de fatores que atestavam a incapacidade do Estado de Bem-Estar Social em encontrar respostas as demandas e problemas ali vividos, na América Latina o processo esteve intimamente ligado a retomada dos regimes democráticos e ao aparecimento de novas formas de fazer política e de se exigir direitos, possibilitando a entrada de setores sociais tradicionalmente excluídos do cenário político, que fora dos sistemas tradicionais representativos, lutavam pelo atendimento de carências básicas e pela ampliação de seu espaço público (CARDOSO, 1984 e 1987) e cujas características já foram anteriormente apresentadas nesse capítulo.

Parte integrante desse processo é o ambientalismo, cujas manifestações já foram objeto de estudo e classificação por diversos autores11, num grande leque de possibilidades de categorização, indo da atribuição de uma característica inovadora (quando passaram a protestar em razão das ameaças surgidas no século XX, capazes de afetar várias dimensões da vida humana e o próprio padrão de vida das sociedades industriais), até o apontamento de uma dimensão política no ambientalismo (onde correntes radicais buscavam tanto uma redistribuição do poder e a disseminação intensa de valores ecológicos, como a interiorização da sustentabilidade social e ambiental desencadeado pelas correntes reformistas). No âmbito dessa tese, como se verá posteriormente, a escolha pautou-se pela proposta formulada por Eckersley (1995), em razão do objeto de estudo aqui abrangido e pelo fato da autora pautar-se por uma perspectiva histórica, que também é a perspectiva adotada no que diz respeito à apresentação dos encontros e conferências internacionais e da sociedade civil ao longo das quase cinco décadas aqui abrangidas.

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As análises e contribuições da supracitada autora são apresentadas no bojo da discussão acerca da reflexão e da compreensão que se faz da relação entre o ser humano e a natureza, posto ter conexão direta com o aparecimento da abordagem socioambiental na arena internacional e no contexto latino- americano, conteúdos apresentados no Capítulo 6 dessa tese. Mas antes é importante compreender de que forma o contexto da América Latina influenciou a sociedade civil ali existente e formou a amálgama da abordagem socioambiental.

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