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PARTE II O CONTEXTO LATINO AMERICANO

CAPÍTULO 3 AS RELAÇÕES ENTRE OS CAMPOS PÚBLICOS E PRIVADOS NA AMÉRICA LATINA

3.1. DEMOCRACIA E AUTORITARISMO

A história da América Latina está marcada pela existência de regimes autoritários alternados por períodos de redemocratização. As razões e os motivos para o surgimento dos regimes autoritários, tanto na forma de ditaduras militares quanto “de facto”, são extremamente diversificadas em cada um dos países do continente, e um estudo aprofundado desse contexto não é o objetivo desse trabalho. Mais do que ressaltar as diferenças, o que se almeja é identificar os aspectos comuns para a América Latina de um processo histórico caracterizado por essa alternância, centrando o campo de análise nas suas implicações para a sociedade civil da região.

O conceito de autoridade e demais conceitos a ela associados, como poder, influência, liderança têm diferentes significados nos campos da filosofia, da política e das ciências sociais, ainda que a origem seja a mesma: “auctoritas”, palavra latina aplicada como sinônimo de poder legítimo e não de força coativa - relação atualmente estabelecida e que lhe confere um caráter pejorativo e ideológico. Em relação aos regimes políticos, o autoritarismo tem dois significados: o primeiro se refere aos sistemas não democráticos (incluindo os regimes totalitários), e o segundo abarca os sistemas não democráticos, caracterizados por um baixo grau de mobilização e de penetração na sociedade, sendo, portanto, um conceito mais específico e se diferenciando do totalitarismo.

Assim, como definido por Juan Linz (DAVID SÁNCHEZ, 2007), os regimes autoritários são sistemas políticos com um pluralismo limitado; sem uma ideologia elaborada e propositiva; sem uma mobilização intensa ou ampla nos quais um chefe ou grupo de pessoas exerce o poder dentro de limites que formalmente estão mal definidos, mas que de fato são facilmente previsíveis, estabelecendo uma marca bastante forte entre os limites do Estado e os da sociedade civil. Deste modo, o autoritarismo está associado a uma concentração

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e centralização de poder e ao controle social, pois, através da centralização se reprimem as formas organizativas independentes e se estabelece um desequilíbrio entre poderes com predominância do Poder Executivo (GUIMARÃES, 1991).

Ao longo da história latino-americana, a capacidade de exercer pressão sobre diversos setores da sociedade, a escassez relativa de recursos e os parcos critérios de legitimidade em relação à forma de distribuição dos ganhos, formaram uma combinação explosiva que levou diferentes países a uma situação de ingovernabilidade e ao aumento das tendências autoritárias que são um reflexo do contexto histórico, marcado pela existência de coronéis ou “caudillos” regionais, de governos militares, e por uma economia latifundiária agrária ou mineira voltada para a exportação e controlada pelas elites econômicas e políticas de seus países.

Já no que se refere ao conceito de democracia amplamente debatido no âmbito das ciências políticas e possuidor de diversas definições, se refere a um sistema político que, para existir, deve possuir algumas condições: existência de um espaço político reconhecido, a separação entre a sociedade civil (espaço de pluralismo e diversidade de interesses) e o Estado (uno por definição), a presença de principio da igualdade e a existência de grupos de interesse reconhecidos e organizados, de modo que as instituições correspondam aos interesses previamente organizados e “representáveis”. Na América Latina, essas condições assumiram características particulares, fruto dos elementos históricos, culturais, sociais e econômicos já anteriormente mencionados.

A formação da cidadania e dos cidadãos pressupõe a existência de um sistema político autônomo, encarregado de elaborar decisões consideradas como legitimas em uma coletividade concreta. Na América Latina, o processo de formação do espaço público está marcado por uma cultura personalista - originária do esforço em manter os benefícios e privilégios do patriarcado e da “honra aristocrática”, que gera resistência à sua massificação e onde a

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representatividade política coloca o indivíduo como um intermediário entre os indivíduos não-sociais e não-políticos e o mundo do poder e do privilégio. O espaço político democrático também é obstaculizado pelo entendimento de que uma mudança social não controlada é vista como ameaça, provocando uma reação defensiva que expressa e reforça a exterioridade com relação ao sistema político, e reflete uma desconfiança em relação ao jogo político. Com isso, o indivíduo é definido como membro de um grupo local, nacional ou étnico – e não como cidadão participante de um sistema de formação de decisões legítimas (TOURAINE, 1988).

No tocante à separação entre o Estado e o sistema político, a América Latina também apresenta características próprias. Por definição, o Estado é um princípio de unidade, sendo este o representante e o mantenedor da coletividade nacional, capaz de atuar tanto no âmbito externo como no interno. Por essa razão, não deve ser identificado com os poderes políticos, com as instituições ou com o governo. O sistema político no continente mescla categorias sociais, políticas e estatais, gerando uma confusão constante nos três níveis de organização da vida social (sistema socioeconômico, sistema político e Estado), limitando dessa forma a capacidade de ação autônoma dos atores sociais, a existência da democracia como um espaço político e perpetuando uma forte tendência para o corporativismo, havendo a integração direta de interesses sociais dentro do Estado, sem que se dê a passagem pelo sistema político.

As características da democracia, da participação, dos governos e do Estado na América - Latina são reflexos da estrutura familiar patriarcal paternalista e personalista, da formação de feudos e clãs parentais, governados por senhores (“coronéis” e “terra tenientes”) ou seus descendentes – tanto na sociedade rural como na urbana. Tais lideranças, por sua despreocupação com os interesses coletivos, contribuem para a ausência de espírito público e de solidariedade comunal e para a carência de instituições corporativas, permitindo o surgimento do “coronelismo” ou “caudilhismo” em diferentes regiões da América Latina,

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expressões sociopolíticas de Estados marcados por uma visão personalista, oligárquica e patrimonial.

A existência desses elementos patrimoniais nos sistemas políticos latino- americanos se faz presente em diversos períodos históricos do século XX e caracterizam-se por formas de dominação política, onde não existem divisões nítidas entre as esferas de atividade pública e privada. A autoridade política e o corpo burocrático compartilham formas de dominação; as elites patriarcais e o corpo burocrático encontram apoio interno dos demais membros da sociedade, garantindo assim a sobrevivência das estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas e constituindo-se um meio atual de dominação política por um estrato social, pela burocracia e pela classe política (FAORO, 1979).

As sociedades latino-americanas contemporâneas caracterizam-se por uma civilização eminentemente urbana, onde as necessidades das massas devem ser satisfeitas, e onde há uma tensão entre o governante e seus prepostos - fruto da relação entre a delegação de poderes e a autonomia15,que cresce na mesma medida em que cresce o domínio patrimonial e, paradoxalmente, reduz a capacidade de controle central (United Nations, 2007). Essa tensão se transfere para a arena política, onde há constante tentativa de alternância das relações de poder e de abertura ou fechamento desse espaço político. Grupos cuja participação política é ausente ou reduzida buscam ampliar o escopo do conflito político e incorporar novos atores nesse espaço e, por sua vez, os detentores do poder tratam de garantir o monopólio do poder, restringindo a participação e as regras do jogo político aos já participantes do poder. Esse é o pano de fundo que marca substancialmente a relação entre o Estado e a sociedade civil da América Latina (HOLANDA, 1993 e VIANA, 1974).

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A delegação de poder e de autonomia é recebida como prebenda política e é utilizada pelo seu depositário como uma propriedade particular constituindo um fator de tensão entre governante e preposto.

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Por sua vez o corpo técnico-burocrático do Estado em vários países latino- americanos está estruturado em uma perspectiva voltada para sua ação no campo social e político, possuindo uma visão funcional e racional, buscando o cumprimento dos objetivos estabelecidos, e pautada pela hierarquia onde os papéis e as relações são rigidamente estabelecidos. A noção patrimonialista e “privada” subverte o uso dos recursos e promove sua exploração, a partir de uma visão permeada pela ideologia corporativista e não-coletiva do seu uso.

O corpo técnico-burocrático abrange um grupo para além dos servidores e funcionários públicos, incorporando também outras categorias de atores que, em um dado momento, compartilhem de suas orientações sociais e políticas. Assim, há uma constante migração de atores que ora assumem funções dentro do aparato do Estado, atuando em seu nome e de acordo com suas políticas, ora atuam na sociedade civil e segundo sua agenda. Tal característica tem aspectos positivos e negativos para o campo de relações estabelecido entre o governo (público) e a sociedade civil (privado) (GUIMARÃES, 1991).

Os aspectos positivos se referem à possibilidade de que, nesse processo de migração, haja uma interface entre as agendas da sociedade civil e a do Estado, ou seja, que um e outro se apropriem de temas que não seriam incorporados se inexistente esse contato. Essa interface ocorre em maior ou menor grau, dependendo de como se caracterizam as relações entre os atores, e sofre bastante alternância e oscilação, dependendo do país ou região analisado, bem como do período histórico vivido no continente latino-americano, como se verá no capítulo seguinte.

Além disso, esse processo migratório entre o Estado e a sociedade civil pode ser uma oportunidade utilizada estrategicamente pela sociedade civil para obter maior poder e influência em determinados temas da agenda de políticas públicas, nos quais estejam envolvidos os atores sociais, e conseqüentemente, pressionar para a implantação de suas concepções e ações naquela esfera.

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Por outro lado, a relação entre a sociedade civil e o Estado pode ser utilizada como um meio de cooptação16 das organizações e dos movimentos sociais, principalmente quando assumem posturas oposicionistas ou quando ganham relevância pública. Como a predominância do papel do Estado no desenvolvimento de políticas públicas e a elevada importância do Poder Executivo na implantação de políticas públicas são características históricas do sistema político na América Latina, mantidas mesmo após a democratização, o processo de cooptação é por eles capitaneado, e são eles que tendem a ofertar um prêmio ou recompensa aos atores (com maior legitimidade e independência de representação) para os que adotem um papel de participação e cooperação na discussão e implantação de políticas públicas dentro das esferas e fóruns onde predominam as agendas governamentais. Diante de tais processos, é a manutenção da legitimidade e da agenda dos movimentos e organizações sociais que pode evitar que, ao longo do processo de cooptação, haja o comprometimento e a alteração das suas demandas, em troca da consecução de alguns de seus objetivos políticos.

Também há fatores negativos a se considerar quando, ao realizar essa migração e estabelecer essa interface, tanto o governo como as organizações e movimentos da sociedade civil perdem de vista sua agenda própria e seu papel dentro do campo político, ou seja, quando gradativamente haja falta de clareza quanto aos limites entre a agenda e a ação do Estado e as agendas da sociedade civil. Esse aspecto pode ser mais intenso, dependendo da concepção de Estado que um determinado governo tenha e da natureza das suas relações com a sociedade civil, uma vez que as relações e as interfaces numa concepção de um Estado de Bem-Estar Social17, de um Estado pautado por políticas de

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Cooptação, entendida como o processo de absorver novos elementos na estrutura de uma organização, ocupando postos de liderança e com poder decisório, como um meio de neutralizar ou minimizar as ameaças à existência ou a estabilidade daquela organização (SCHWARTZMAN, 1988 e MACDONALD, NEILSON e STERN, 1997)

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Já o Estado de Bem-estar Social é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país. Cabe ao Estado do bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população (BRIGGS, 1961).

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cunho neoliberal (Estado mínimo18) e de um Estado Populista19 são bastante distintas.

É nesse cenário e sob essas condições e características que serão construídas as relações do Estado com a sociedade civil, tanto no período dos regimes autoritários, como no período democrático atual.

3.2. A RELAÇÃO ENTRE A SOCIEDADE CIVIL E O ESTADO: REGIMES