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CAPÍTULO II: UKKO E HORAGALLES, OS DEUSES FINO-ÚGRICOS DO

2.8 Ukko na Kalevala

Curiosamente, o deus do trovão não possui papel de protagonista ao longo do material disposto na Kalevala. Ukko se manifesta em pontuais aparições, atuando de maneira breve, porém sempre eficaz: na poesia kalevalaica, ele basicamente surge apenas se tiver sido chamado por alguém - geralmente por um herói em situação crítica -, de modo que sua presença se dá basicamente por meio de uma espécie de invocação ou conjuração. Parece justo dizer que, de maneira geral, Ukko tende a não ser um personagem de forte presença narrativa ao longo da epopeia finlandesa154.

140 Conforme aponta Frog (2014, p. 388), uma significativa parte das atuações de Ukko na Kalevala está relacionada ao herói Lemminkäinen. Nesses contextos, o dito herói está frequentemente cumprindo algum tipo de desafio para que possa finalmente conseguir uma esposa. Assim, nota-se uma mistura de temas oriundos do material mitológico pré-cristão ainda reminiscente no folclore e na poesia oral tardios da Finlândia – que, conforme vimos, embasaram a Kalevala -, juntamente com um filtro já cristão. A incessante busca pelo casamento, as provações necessárias para que se obtenha a permissão da sogra para casar-se; as perigosas idas à Terra do Norte e à Lapônia são todos temas conhecidos da poesia oral finlandesa, somados, na epopeia, à influência cristã: em momentos de desespero, nada mais resta ao herói senão apelar para uma divindade suprema, invocando-a e pedindo por intervenção e ajuda. Esse papel é cumprido justamente por Ukko, que não só atende à invocação do herói, como de fato o ajuda por meio de intervenção direta.

Elencamos algumas dessas intervenções de Ukko que configuram momentos desse apelo do herói Lemminkäinen. Ao partir para as Terras do Norte (Northland) objetivando o cumprimento de um perigoso desafio, o herói sabe que suas próprias habilidades podem não ser o bastante, mas que nesse caso sabe a quem recorrer:

“Caso isso não seja o bastante/eu me lembro de outra maneira:/alto eu suspirarei/para que o Homem Velho dos céus/ele que rege as nuvens e governa os vapores./Óh Homem Velho, deus chefe/velho pai do céu/que fala por meio das nuvens/e declara quando o ar deve descer/me traga uma espada de fogo/numa bainha de fogo/com a qual irei despedaçar barreiras” (LÖNNROT, Canto XII, Estrofe 280, p. 139-140, tradução nossa)155.

Em outro desafio, que termina por se mostrar talvez o mais dificultoso e complexo pelo qual Lemminkäinen passa, é necessário que ele vá até os confins do mundo, às “terras do Demônio”, e de lá traga o alce que o pertence. Enquanto planeja seu transporte, que, por razões óbvias, deveria ser veloz e deslizar com facilidade pelo gelo, pede: “Óh, Homem Velho, deus chefe - / ou seja, pai celeste/faça para mim esquis estreitos/leves, esquerdos e direitos/com os quais eu possa esquiar/através de pântanos e travessias/esquiar através das

Lemmink ainen e Ilmarinen (FROG, 2014, p.383).

155 “Should not enough come of that/I recall another way:/higher I will sigh/to that Old Man of the sky/him who keeps the clouds/governs the vapours./O Old Man, chief god/old father in heaven/who speak through the clouds/declare down the air:/bring for me a fiery sword/in a fiery sheath/with which I will shatter bars” (LÖNNROT, Canto XII, Estrofe 280, p. 139-140).

141 terras do Demônio” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofe 1, p. 155, tradução nossa)156

. Apesar de conseguir cumprir o desafio com sucesso, Lemminkäinen ainda não obtém a permissão para casar-se e Louhi157, senhora das terras do Norte, propõe ainda outro desafio antes que o herói pudesse casar com sua filha: ele deveria domar o cavalo do Demônio até que conseguisse montá-lo. Depois de partir em busca do cavalo e aventurar-se por três dias, ele finalmente o avista em uma colina e, antes de qualquer coisa, pede a Ukko:

“Óh Homem Velho, deus chefe/Homem Velho, regente das nuvens/governante do vapor:/abra os céus/ponha janelas por todo o céu;/faça chover granizos de ferro/derrube baldes de gelo/nas crinas do bom cavalo/nos flancos da testa incendiada do Demônio!”, “Aquele Homem Velho, supremo criador/deus acima das nuvens/colocou os céus em fúria/o teto do céu se partiu em dois/ele choveu neve, choveu gelo/choveu granizo de ferro/menor que a cabeça de um cavalo/porém maior que a cabeça de um homem/nas crinas do bom cavalo/nos flancos da testa incendiada do Demônio” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofes 11-12, p.163)158.

Há ainda diversos outros momentos críticos em que Lemminkäinen pede por ajuda de

Ukko159, seja por abrigo enquanto aventura-se nas Terras do Norte, seja na resolução de outros desafios. Além disso, outros personagens como o ferreiro cósmico Ilmarinen e o grande protagonista Väinamöinen também invocam Ukko pedindo por ajuda, embora com muito menos frequência do que Lemminkäinen o faz. Esses exemplos nos fazem concordar com Frog (2014, p. 388) ao defender a existência de um filtro cristão no tipo de relação que Ukko mantém com esses personagens, configurando um modelo cristão intervencionista cuja influência, considerando a datação tardia do surgimento da Kalevala, não é difícil cogitar.

Contudo, certamente o cristianismo não é o único impacto “estrangeiro” que pode ser notado na figura de Ukko conforme presente nesse material tido frequentemente por uma elegia a tudo o que era “Finlandês”. Em outro estudo, Frog (2017b, p.98) explicita as

156 “O Old Man, chief god -/that is, heavenly father:/make me now straight skis/light ones, left and right/on which I may ski along/ across swamps and across lands/ ski towards the Demon’s lands” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofe 1, p. 155).

157 Muitas vezes descrita ao longo da Kalevala como uma versada feiticeira, Louhi é a senhora das terras e do povo de Pohjola.

158 “O Old Man, chief god/Old Man, keeper of the clouds/governor of the vapours:/open heaven up/the sky all into windows;/rain iron hailstones/drop icy coolers/on the mane of the good horse/on the Demon’s bla ze-brow’s flanks!” (…), “That Old Man, high creator/god above the clouds/rent the sky into a rage/heaven’s lid in half/he rained slush, rained ice/he rained iron hail/smaller than a horse’s head/but bigger than a man’s head/on the mane of the good horse/on the Demon’s blaze brow’s flanks.” (LÖNNROT, Canto XIV, Estrofes 11-12, p.163).

159 Posteriormente, ao abordamos outros aspectos de Ukko na Kalevala, traremos mais exemplos que acabarão pos ilustrar também essa questão da intervenção divina.

142 influências escandinavas na tradição finlandesa, da qual Ukko não escapa. Para o autor, as línguas e tradições religiosas da Carélia, Ingria e Finlândia passaram por radicais mudanças ao assimilarem aspectos ritualísticos da Escandinávia que não chegaram, por exemplo, à Estônia. Com a chegada de tais mudanças, o deus do trovão comumente conhecido nessas tradições religiosas por Ukko, o “Homem Velho”, passou a assumir as funções de uma divindade central dos céus e da atmosfera, de maneira semelhante ao Thor nórdico; enquanto que Väinamöinen deixou de ser uma divindade celestial para tornar-se o deus de traços xamânicos especialista na magia, no conhecimento, nas práticas ritualísticas e nos encantamentos, como Odin.

Por fim, Ilmarinen, do Proto-Fínico Ilmari, foi dissociado da cosmologia e da esfera celestial para ter sua identidade restrita à de um ferreiro cósmico responsável pela criação do céu, sem maiores intervenções. De suas associações com os ventos e o clima, que existiam na tradição oral, nada restou a não ser escassas e pontuais referências. Essa miscinegação religiosa escandinava teria ocorrido no sudoeste finlandês em algum período entre a transição do Proto-Fínico Tardio (200 d.C) e as migrações para o leste (750 d.C). Inclusive, aspectos folclóricos e religiosos observados nas tradições finlandesa, careliana e ingriana dos séculos XIX e XX apontam que, mesmo apresentando suas variações e regionalismos nesse período, elas provavelmente evoluíram a partir sistema religioso relativamente uniforme, que além da mesma origem também sofreram, todos, com as influências escandinavas do período mencionado (FROG, 2017b, p.98).

As manifestações de Ukko na Kalevala, conforme apontamos, são poucas. Uma característica sem dúvidas marcante expressiva nessas aparições é o seu poder de controle dos fenômenos atmosféricos. Se por um lado é verdade que Ukko é invocado para prestar auxílio em situações críticas, por outro ele marcadamente o faz sempre por meio do controle do clima160. O próprio Ilmarinen, artesão primordial, precisa da intervenção de Ukko nesse aspecto, ajuda essa que o deus confere: “Ele, o ferreiro Ilmarinen/o eterno artesão/reza para o Homem Velho/e cultua o Trovoador:/ ‘Homem Velho, derrube neve fresca/lance nova neve abaixo-/neve para que o trenó deslize/neve fresca para que o trenó escorregue!’/E o Homem Velho derrubou neve fresca/lançou abaixo nova neve” (LÖNNROT, Canto XVIII, Estrofe 24, p. 228, tradução nossa)161.

160 Nos exemplos que já elencamos, tais manifestações se fazem presentes. Consultar nota 144, em que o trecho citado coloca Uk k o enquanto capaz de “abrir o céu ao meio”, além de fazer chover granizo e gelo; e a nota 147, em que o deus é chamado de “homem dos céus”, “governante do vapor” e “aquele que fala por meio das nuvens”, “aquele que ordena que o ar desça”.

143 Essa passagem é de nosso grande interesse por um motivo especial. Há registros em canções e outros materiais folclóricos da Finlândia nos quais Ilmarinen era tido como o deus dos ventos que, principalmente durante viagens, proporcionava um clima favorável para uma passagem tranquila e segura, ou trazia um mal tempo e seus consequentes infortúnios (HOLMBERG, 1964, p.232). Inclusive, também na lista disponibilizada por Mikael Agricola e por nós abordada, o deus Ilmarinen figura na lista das divindades de Häme enquanto “aquele que trazia a paz, bons tempos e protegia o viajante” (ANTTONEN, 2012, p. 186, tradução nossa)162. É no mínimo curioso, então, que nesse trecho da Kalevala, Ilmarinen não só pede o auxílio de Ukko para atuar dentro de uma manifestação climática, como o faz pedindo por ajuda para que seu trenó deslizasse, algo que poderia facilmente ser feito por meio do vento.

Por que haveria essa mudança de papéis na Kalevala? Segundo Frog (2012, p. 221), o próprio processo de coleta de Elias Lönnrot para o material de sua epopeia advinha, em grande parte, de encantamentos oriundos da tradição do tietäjä163. Grosso modo, foi a tradição da tietäjä que conferiu autoridade e autenticidade folclórica a todo o material kalevalaico. Dentre os conteúdos perceptíveis nesses encantamentos encontravam-se a comunicação do conhecimento mitológico, a transmissão de modelos conceituais de conduta e de representações identitárias. Nesses conteúdos, Väinämöinen aparece como modelo cultural para o próprio especialista do religioso, cujas jornadas – repletas de elementos xamânicos - eles devem repetir.

O papel de Väinämöinen nessas canções é o de demiurgo e fonte última de poder. Consequentemente, ele assume um papel principal dentro dessa tradição, que delegou a

Ilmarinen um papel secundário: a ele cabe, conforme dito anteriormente, o papel de ferreiro

mítico que, apesar de ter criado a abóbada celeste, não demonstra receber nenhuma outra ênfase atuando em papéis cosmológicos. E mesmo assim, são poucos e muito específicos os encantamentos de tietäjä que relegam a Ilmarinen o seu papel de artesão dos céus e, se considerarmos quantos desses lhe conferem as atriuições de um deus dos céus, são ainda Man, drop new snow/fling down fine fresh snow-/snow for the sleigh to slide on/fresh snow for the sledge to skim!’/And the Old Man dropped new snow/flung down fine fresh snow” (LÖNNROT, Canto XVIII, Estrofe 24, p. 228).

162 “Ilmarinen brought peace and good weather/and protected the traveller” (lista de Agricola, reproduzida em ANNTONEN, 212, p. 186).

163 Na tradição finlandesa, tietäjä (“aquele que vê”), era uma figura especialista no religioso. Ela se encarregava de rituais que visavam obtenção de respostas sobre questões importantes para a comunidade – como a sorte com caça e pesca -, além de atuar na cura de doenças, na comunicação com os deuses e na retenção do conhecimento mitológico. Muitas vezes os tietäjä faziam uso do transe para obter suas respostas em contextos específicos, o que ocorria juntamente com o entoar de encantamentos (SIIKALA, 1990, p.192-196).

144 menos vestígios. Portanto, dentro da tradição tietäja que desemboca na Kalevala, o papel central do saber e do poder cósmico fica nas mãos de Väinämöinen; Ukko, por sua vez, é quem herda o papel central de divindade dos céus e atua com o suporte do que é celestial. Possivelmente, o Ukko da Kalevala, com seu papel de regente dos céus, seja um testemunho vivo do quanto Lönnrot bebeu da fonte de conhecimento mitológico retida pelos tietäjä (FROG, 2012, p. 221-222).

Mas a visão de Lönnrot não conseguiu, ao que parece, fugir de uma interpretação monoteísta dos dados por ele colhidos. Em seu prefácio para a primeira versão da Kalevala, o autor alega que o paganismo de seus antepassados não era do pior tipo, e mais; ele também defendia que a religião primordial dos antigos finlandeses teria sido monoteísta e que o único e supremo deus dentro desse sistema religioso era justamente Ukko. De acordo com essa visão, a religião finlandesa antiga cultuava e reconhecia, originalmente e por natureza, apenas um deus, mesmo posteriormente, quando outras divindades surgiram. Foi por isso que Lönnrot chamou a religião de seus antepassados como um “bom paganismo”, que em seu próprio passado pré-cristão já teria sido monoteísta, o que facilitou a assimilação posterior do cristianismo (PENTIKÄINEN, 1999, p.77).

Sendo assim, mesmo tendo percebido a massiva presença de Väinämöinen nas runas em que colheu e registrou, Lönnrot atribuiu, na Kalevala a verdadeira posição suprema a Ukko. Narrativamente, talvez isso não tenha feito tanta diferença: as intervenções de Ukko são breves e pontuais e ele está longe de ser um protagonista da epopeia, ao contrário de

Väinämöinen, a quem dois ciclos inteiros da obra são dedicados; não encontramos, na Kalevala, um sistema de mitos sobre Ukko, ainda que implicitamente (FROG, 2012, p. 218).

No entanto, se desejarmos ir para além da questão narrativa e estética, é muito provável que a representação de Ukko, da maneira como foi disposta na Kalevala por Lönnrot e seu pressuposto monoteísta, não correspondem nem representam a verdadeira tradição religiosa dos finlandeses pré-cristãos em torno do deus (PENTIKÄINEN, 1999, p.7).

Nem mesmo Väinämöinen, poderoso protagonista e herói divino por excelência na obra, escapa de enviar suas súplicas ao deus do trovão:

“Homem Velho no pilar do céu/na beira das nuvens carregadas de trovão/venha aqui quando for necessário/tome seu caminho quando for chamado/para desfazer feitos malignos/leve embora os infortúnios/com uma espada de lâmina flamejante/com uma marca de faísca!” (LÖNNROT, Canto XVII, Estrofe 17, p. 207)164

.

145 Isso acontece também em outros contextos narrativos. Segundo Pentikäinen (1999, p.136- 138), outro lugar em que podemos notar a hierarquia estabelecida por Lönnrot é no momento de narrar o mito cosmogônico. Basicamente, há duas versões do mito. Na primeira, publicada por Lönnrot em sua Kalevala Antiga, Väinämöinen é a divindade suprema da criação do cosmos. Ferido, o deus cai no mar primordial, onde reloca as águas e ergue rochedos, até que uma águia pousa em seu joelho e deixa um ovo. Ele então pronuncia as palavras de criação e o ovo se quebra, dando origem a toda a estrutura cósmica. Em sua nova versão da Kalevala, o épico começa com uma divindade feminina: Ilmatar, senhora dos ares, que havia sido engravidada pelo vento e pela água. Nessa versão, Ilmatar, deitada no chão, é quem performa os primeiros atos de criação cósmica, não sem implorar ao deus supremo, Ukko, por ajuda:

“Ó, Homem Velho, deus chefe/sustentador de todo o céu/venha aqui quando for preciso/venha para cá quando for chamado:/liberte uma moça de um lugar apertado/liberte uma mulher de contrações na barriga/venha rapidamente, cheg ue prontamente/imediatamente onde a necessidade está!” (LÖNNROT, Canto I, Estrofe 7, p. 5, tradução nossa)165.

Mais tarde, Ilmatar não somente acaba criando o cosmos, como também dá a luz a

Väinämöinen. Temos, com esse detalhe, dois fatores que contribuem para que notemos a

posição conferida a Ukko por Lönnrot: antes mesmo da criação do cosmos por parte de

Ilmatar, Ukko já existia e é a ele que a deusa dos ares pede ajuda; nessa versão, também não

importa o quanto Väinämöinen venha a desenvolver um papel de protagonista e de poderoso deus de grandes feitos ao longo da obra, pois antes mesmo dele nascer Ukko já existia. Ao incluir Ukko no drama narrativo da cosmogonia, Lönnrot fez dele o deus soberano de todo o cosmos. Além disso, é possível irmos além. Se Ilmatar era a deusa dos ares e Ukko, que a precedeu, era o deus dos trovões e do ar, é possível que ele fosse o pai de Ilmatar e a tenha fertilizado. Nesse caso, teríamos um mito cosmogônico que, como muitos outros, apresenta o tema mitológico de primordialidade do cosmos a partir de um incesto entre duas divindades que eram pai e filha (PENTIKÄINEN, 1999, p.138).

É possível que haja outra explicação para essa soberania de Ukko na Kalevala, à parte when you are asked/to undo the wretched deeds/take away the woes/with a sword of fiery blade/with a s parkling brand!” (LÖNNROT, Canto XVII, Estrofe 17, p. 207).

165

“O Old Man, chief god/upholder of all the sky/come here when you are needed/come this way when you are called:/free a wench from a tight spot/a woman from belly -throes;come quickly, arrive promptly/most promptly where the need is!” (LÖNNROT, Canto I, Estrofe 7, p.5).

146 das inclinações monoteístas de Lönnrot. Em seu prefácio para a Kalevala Antiga, o autor diz, a respeito do panteão divino, que “é sempre dito que havia doze deles”. Muito provavelmente ele estava seguindo os passos de Agricola, que, em sua lista de divindades, elencou doze delas supostamente pertencentes à Tavastia e à Carélia. Além disso, é possível que Lönnrot estivesse seguindo também o modelo de panteão olímpico conforme os modelos romano, grego, germânico, nórdico ou até mesmo as tribos de Israel. O autor também insiste em afirmar que todos os deuses eram irmãos – ao molde, talvez, dos filhos de Jacó -, apesar dos conteúdos das runas não fornecerem nenhuma informação que permita essa alegação. Uma vez tendo essa empreita em mente, é possível que Lönnrot tenha buscado de maneira ativa evidências que corroborassem para a existência de um “Olimpo” finlandês em que todos os deuses fossem irmãos e um deles, mais poderoso, fosse a divindade suprema, soberana. Baseado nisso, então, ele chega à conclusão de que Ukko era o grande deus supremo, enquanto que Väinämöinen, mesmo predominando nas narrativas das runas, estava mais para um herói cultural (PENTIKÄINEN, 1999, p.159).

Tal empreita, certamente, não foi defendida de maneira explícita pelo autor, que defendia estar retratando a mitologia ilustrada pelos cantores de runa. Em seu prefácio da

Kalevala Antiga, escreveu:

“Se, nessas runas, Väinämöinen foi algumas vezes rebaixado de seu antigo estado de divindade, obviamente não há nada que eu possa fazer a respeito. Eu tive que publicá-las [as runas] conforme as recebi, independentemente de Väinämöinen ser, nelas, considerado ou não um deus. Desde tempos imemoriais, temos sido acostumados a considera-lo um deus de nossos antepassados, uma estima que não pareciam ter por ele, enxergando-o, na verdade, como um poderoso e sábio herói. Frequentemente ele próprio reza para a divindade suprema, Ukko, pedindo por ajuda, e então reconhecendo com os próprios lábios quem era o deus.(...). Até mesmo agora, se ao povo dessas regiões em que a memória de Väinämöinen melhor vive for perguntado quem Väinämöinen era, eles imediatamente responderão como segue: ‘Ele era um herói memorável, entre os primeiros de nossos ancestrais, e um cantor famoso.’ Enquanto que, se perguntar a eles quem eles consideram ser seus deuses, responderão com frequência ser Ukko, quem criou o céu e a terra, e a quem