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2. GUERRA YANOMAMI: IMPRECISÕES SEMÂNTICAS E O

2.2. Breve revisão do debate sobre a guerra yanomami

O longo debate sobre a guerra yanomami teve seu impulso ainda em 1968, após o lançamento do famoso e polêmico livro de Napoleon Chagnon, Yanomamö: The Fierce People. O livro, que conquistou grande público tanto na antropologia como fora dela, descreve os Yanomami como um grupo extremamente violento, feroz e belicoso, que teria a guerra como uma atividade central.

Napoleon Chagnon busca explicações para os motivos da violência entre os Yanomami, concluindo inicialmente que esta seria resultado da escassez de mulheres, gerada pela poliginia e pelo infanticídio feminino. As mulheres estariam situadas, neste caso, como objetos de disputas e Mapa 2: Abrangência das cinco línguas yanomami / Autoria: Helder Perri Ferreira e Maurice Tomioka, 2013

de roubos por parte dos homens, o que motivaria os ataques e guerras entre os grupos yanomami.

A partir da década de 1980, Chagnon revisa sua teoria e passa a considerar que a razão da violência repousaria no fator reprodutivo. De acordo com esta nova direção teórica, os homens que, ao longo da vida, já tivessem cometido homicídios (o que o autor traduz problematicamente por unokaɨ) teriam uma posição de maior prestígio e, consequentemente, conquistariam um maior número de esposas. Esta equação faria com que estes homens tivessem maior sucesso reprodutivo, tendo um número de filhos até três vezes maior do que os não homicidas, perpetuando assim seus genes (Chagnon, 1997: 205).

Os estudos de Chagnon deram origem a uma série de críticas, direcionadas tanto à forma distorcida e estereotipada que caracterizou os Yanomami (como violentos, belicosos, agressivos), como também à inconsistência dos dados em que baseou suas investigações, levando a inúmeras críticas e desconstruções de sua teoria (ver Lizot, 1991; 1994; Albert, 1989; Albert 1990; Sponsel, 1998; Duarte do Pateo 2005; Carrera 2010).

A ecologia cultural, representada em especial por Marvin Harris, é também um campo de investigação que apresentou teorias para explicar as motivações para a guerra e a violência entre os Yanomami. Dentro desta perspectiva, a origem das guerras residiria na escassez de recursos naturais disponíveis – em especial proteínas –, o que seria responsável por gerar disputas entre os grupos para a ocupação de territórios em busca de acesso a tais recursos (Lizot, 1977). Esta argumentação foi desqualificada após a realização de algumas pesquisas que demonstraram ser a alimentação yanomami perfeitamente adequada para o padrão de vida dos grupos em questão (ibid.).

Em uma terceira vertente de estudos, caracterizada como histórico- materialista Brian Ferguson (2001) argumenta que o contato estabelecido entre os Yanomami e o mundo ocidental seria o principal fator responsável pelo aumento exponencial da guerra, que teria se tornado mais frequente desde o início do contato dos Yanomami com os não indígenas. Ferguson defende que a competitividade entre os grupos yanomami pela posse e controle dos bens manufaturados advindos do contato seria responsável por gerar as guerras, desestabilizando o equilíbrio das relações previamente estabelecidas entre as aldeias. As ferramentas de metal seriam um dos elementos centrais desta disputa, visto que estes instrumentos revolucionaram a economia de subsistência yanomami (ibid.: 100).

Jacques Lizot (1991), na Antropologia Social, afastou-se da tentativa de explicar as motivações da guerra yanomami a partir da escassez, demonstrando como esta prática está baseada no princípio yanomami da reciprocidade. Lizot argumenta que o código moral yanomami tem como valores fundamentais a generosidade (shiihete) e a coragem (waithëri), virtudes que repousam sobre o princípio da troca, do intercâmbio e da diferença. Enquanto a generosidade envolve trocas pacíficas, a coragem se relaciona às trocas negativas, podendo resultar em guerras, visto que, diante dos ciclos de vingança, cada morte em um grupo local é causadora de outra morte em um grupo inimigo. Para Lizot, tanto a paz quanto a guerra são diferentes modalidades do princípio da reciprocidade. Princípio este que rege a manutenção do equilíbrio e da igualdade entre os grupos yanomami.

Ainda no terreno da Antropologia Social temos a vertente estruturalista, representada pelas pesquisas de Bruce Albert (1985; 1992), que situa a guerra yanomami em um plano mais amplo político- ritual, inerente à filosofia social yanomami. Nesta vertente a guerra não se restringe ao âmbito das agressões diretas, como vinha sendo considerada pela maioria dos autores previamente citados, mas inclui também as trocas de agressões simbólicas e virtuais. Segundo Albert, o sistema de agressão yanomami seria parte constituinte de um amplo sistema a várias esferas de relações socioespaciais, mantidas entre os diferentes grupos yanomami, dentro do qual cada grupo, com sua perspectiva situada, classificaria todos os demais grupos a partir do grau de proximidade e distância nas relações, variáveis de acordo com a intensidade das trocas matrimoniais, políticas, econômicas, rituais e simbólicas mantidas entre si. Neste esquema sociocosmológico, entre inimigos troca-se agressões, mortes, substâncias e rituais com grupos inimigos.

Há, ainda, a explicação de Davi Kopenawa sobre as motivações do que vem sendo chamado, até então, de guerra yanomami. Esta é, sem dúvida, a primeira vez que se tem uma explicação yanomami inserida dentro deste amplo espectro de discussão acadêmica. De forma perspicaz, Kopenawa inverte a perspectiva sobre o tema, analisando os conflitos yanomami a partir da comparação com as guerras feitas pelos napëpë. Em suas próprias palavras:

É verdade que nossos antepassados não paravam de guerrear, assim como aqueles dos brancos. Mas os seus se mostraram bem mais perigosos e ferozes do que os nossos. Nós jamais fomos como

eles, nos matando entre si sem medida! Nós não possuímos bombas que queimam casas e todos seus habitantes! Quando ocorre de nossos guerreiros quererem flechar seus inimigos, isso se trata de outra coisa. Eles se esforçam antes de tudo, para descobrir os homens que já mataram e que nós chamamos, portanto, de õnakaerima tʰëpë. Tomado por esta cólera de dor do luto de seu morto, eles lideram então os reides até que eles consigam se vingar. [...]

Se um dos nossos é morto pelas flechas ou pela zarabatana de feitiçaria de um inimigo, nós apenas nos vingamos ao tentar matar aquele que o comeu, e que se encontra em estado de homicida õnokae. É diferente das guerras nas quais os brancos não param de se maltratar! Eles combatem em grupos numerosos, com balas e bombas que queimam todas suas casas. Eles matam inclusive as mulheres e as crianças! E isto não é para vingar seus mortos, pois eles não sabem chorá-los como nós o fazemos. Eles fazem sua guerra simplesmente por palavras ruins, por uma terra que eles cobiçam, ou para arrancar os minerais e o petróleo. [...] Os Brancos não fazem a guerra por seus cemitérios. Nós, por outro lado, só guerreamos pelo valor das cabaças funerárias de nossos mortos comidos pelos inimigos. [...] Os Brancos não podem dizer que nós somos malvados e violentos só porque nós queremos vingar nossos mortos! Nós não nos matamos por mercadorias, pela terra ou o petróleo como eles fazem! Nós combatemos por causa de seres humanos. Nós guerreamos pelo pesar que temos de nossos irmãos, de nossos pais e de nossas mães que venham a morrer. [...] Uma vez que estes homens em estado de homicida õnokae são mortos e que as cinzas de suas vítimas são enterradas, termina. É suficiente. A cólera acaba e o pensamento se acalma.

(Kopenawa & Albert, 2010: 474 et seq. tradução minha) Ao analisar os motivos pelos quais os napëpë fazem guerras, Kopenawa faz questão de marcar as diferenças acerca dos motivos das

agressões. Apresentando uma crítica às motivações das guerras entre os Brancos, ligadas a disputas por mercadorias, terras ou outros recursos materiais, Kopenawa diz que os Yanomami não fazem guerra pelas disputas por terras, como havia argumentado Marvin Harris, e nem ao menos por mercadorias, como defendera Ferguson. Segundo Kopenawa, os Yanomami se matam para vingar a morte de uma pessoa querida, já que a dor desta perda somente será sanada ao ser realizada a vingança contra o inimigo causador da agressão. Assim, para os Yanomami, as pessoas e as relações são o que verdadeiramente tem importância, e por elas a guerra se justifica.

2.3. Nem de guerra nem de paz segue a língua yanomama