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3. O PAPIU

3.1 Rotas de migração e primeiros contatos

3.1.1 Dispersão a partir das serras de Surucucus

Os relatos de alguns dos poucos velhos ainda vivos no Papiu são verdadeiras viagens por mapas mentais, que impressionam pela riqueza de seus detalhes geográficos e históricos. Infelizmente, não terei espaço nesta dissertação para me prolongar nas reconstruções destas histórias, o que exigiria um estudo à parte, visto que cada relato percorre diversas casas antigas, rios, igarapés e montanhas, histórias de grandes reides contra inimigos vizinhos, fusões e fissões de aldeias.

A maioria das famílias que formam hoje o Papiu tem como origem migratória a região serrana de Surucucus17, uma região montanhosa e com uma das mais altas densidades populacionais da Terra Indígena Yanomami, na qual convivem diversos grupos distintos, e que se localiza ao norte do Papiu. Este grupo teria sido empurrado para o sul do território Yanomami como resultado de conflitos com comunidades inimigas dessas regiões de serras, em especial Aikamo e Koro. Os velhos Juruna, Xiriana e Oxta contam que seus antepassados moravam na região de “Haxi” ou “Haxiu”, na porção meridional de Surucucus.

3.1.2 Os Maraxiu thëripë

Ao se deslocarem a sudeste do Haxiu, alguns grupos se instalaram próximos ao rio Maraxiu, ainda à norte de onde hoje é o Papiu, quando passaram então a ser conhecidos como os Maraxiu thëripë (povo do rio cujubim), sobre os quais é possível encontrar uma série de relatos históricos a partir de 1950 (Early & Peters, 2000; Ferguson, 1995; Chagnon 1997).

Ainda quando moravam nas montanhas de Surucucus, o primeiro contato direto entre os Maraxiu thëripë e os napëpë se deu em um encontro com membros da Comissão Brasileira de Demarcação de Limites (CBDL) ou komisau – como dizem os velhos Papiu thëripë, ao

17 Esta reconstrução histórica é de minha responsabilidade e foi feita a partir de

gravações de relatos de Oxta, Juruna, Raimundo e Xiriana – homens mais velhos do Papiu.

recontarem esta história. Este primeiro contato teria durado cerca de dois dias (Perri Ferreira, 2009).

Foi provavelmente entre o final da década de 1940 e início da década de 1950, que os Maraxiu thëripë migraram para região do rio Xopathau, afluente do rio Herou (Couto de Magalhães), em uma área já mais próxima de onde se encontra o Papiu atualmente. Nesta região de Xopathau chegaram as primeiras epidemias, e foi lá que os Yanomami começaram a morrer, como conta Xiriana.

Os missionários norte-americanos John Peters e John Early, ao reconstruírem o histórico dos primeiros contatos de missionários com os grupos yanomami do rio Mucajaí (Early & Peters, ibid.), relatam que em 1957 alguns membros da então Unevangelized Fields Mission18 começaram a realizar sobrevoos sobre as comunidades do entorno do rio Mucajaí, com planos de estabelecer suas primeiras missões entre os Yanomami. Durante estas expedições, os missionários jogaram do avião latas repletas de anzóis, facas, tesouras e miçangas, como forma de se mostrarem amigáveis.

Neste mesmo período, os missionários John Peters e Neill Hawkins subiram o rio Mucajaí em canoas, acompanhados de dois indígenas da etnia Wai-wai, visando estabelecer o primeiro contato com os Xirixana19. Em 1958, estes missionários construíram uma pequena casa e uma pista de pouso nas imediações do rio Mucajaí e, em 1960,

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Posteriormente conhecida como Missão Evangélica da Amazônia (MEVA), esta é uma entidade missionária que mantém atividades proselitistas entre grupos indígenas na Amazônia. No início da década de 1930, alguns missionários norte-americanos chegaram ao Brasil e estabeleceram sua sede em Belém, registrando a chamada "World Evangelism Crusade" que, mais tarde, foi renomeada Missão Cristã Evangélica do Brasil (MICEB), passando a se chamar Missão Evangélica da Amazônia apenas em 1970. Na década de 1940, o missionário Neil Hawkins inicia os trabalhos no estado de Roraima e, em 1955, obteve uma autorização por escrito do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) para visitar os grupos indígenas isolados e oferecer-lhes "assistência médica e religiosa". No início da década de 1960, a MEVA recebeu apoio da Força Aérea Brasileira, sob o comando do coronel Camarão, para que ocupassem as fronteiras brasileiras, permitindo assim a expansão das atividades da MEVA na região (Le Tourneau, 2009).

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Sub grupo Yanomami, que vivem principalmente ao longo do rio Mucajaí e são falantes das línguas conhecidas como Ninam, Xiriana, Xirixana.

um grupo xirixana, os então Kasilapai thëripë20, se mudou para as imediações desta nova missão. Neste mesmo ano, os Kasilapai thëripë receberam notícias da existência dos Maraxiu thëripë, após o retorno de alguns exploradores que estiveram nas cabeceiras do rio Mucajaí. Estes homens retornaram desta expedição com a notícia de que aquele grupo desejava conhecer os Xirixana.

Assim, naquele mesmo ano, os Kasilapai thëripë navegaram o rio Mucajaí ao longo de cinco dias, em três canoas, rumo ao rio Herou (Couto de Magalhães), onde por fim conheceram os Maraxiu thëripë (atual grupo do Papiu). Esta viagem marcou o início das relações de aliança entre os dois grupos. Foi por meio desta aliança com os Kasilapai thëripë, que aqueles que viriam a ser os Papiu thëripë passaram a estabelecer relações de contato mais sistemáticas com os napëpë, no caso, os missionários da MEVA (Early & Peters, 2000).

Depois desta primeira visita dos Xiriana ao território dos Maraxiu thëripë, uma epidemia de pneumonia assolou os visitantes, resultando em oito mortes que foram diagnosticadas pelos Kasilapai thëripë como resultado de feitiçaria. Tal fato os levou de volta à aldeia de seus mais novos aliados, para que tirassem satisfações. Chegando lá, os Maraxiu thëripë convenceram os Xiriana de sua inocência e responsabilizaram os Xiri thëripë - habitantes das serras de Surucucus e inimigos históricos dos Maraxiu thëripë - pelas oito mortes entre os Kasilapai. A partir dessa constatação, os dois grupos organizaram uma expedição até a aldeia dos Xiri thëripë, fingindo-se de amigos para que pudessem atacá-los (nomohorimuu), o que resultou na morte de cinco homens e na captura de cinco mulheres. Destas, uma fugiu, outra seguiu para o Maraxiu e três para o Kasilapai, onde vieram a se casar. (ibid.)

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Kasipalapai thëripë: kasi: lábios + lapai: compridos: povo dos lábios compridos. Denominação dada pelos Yanomami a um antigo grupo hoje disperso em diversas aldeias entre os rios Mucajaí e Uraricoera. De acordo com os Ninam, os kasilapai se misturaram com outros povos e migraram para o interfluvio do rio Uraricoera (comunicação pessoal de Tainah Victor Leite)

Mapa 6: Possível rota de migração dos Maraxiu thëripë (atual Papiu), área de ocupação estimada do grupo e de seus aliados Xirixana (os Kasilapai thëripë) e o grupo inimigo, os Xiri thëripë (Autoria: Ana Maria Machado)

3.1.3 A MEVA e os Maraxiu thëripë

Em 1961, o missionário John Peters realizou duas expedições às casas dos Maraxiu thëripë, estabelecendo suas primeiras relações com este grupo. Há versões um pouco variadas quanto aos motivos que levaram à construção da pista de pouso na região. Segundo Early & Peters (2000), a pista foi construída por iniciativa dos Maraxiu thëripë, como estratégia de sedução dos missionários pelos índios, visando facilitar a visitação frequente dos missionários, que levavam consigo um fluxo de remédios e ferramentas. Na versão de Raimundo Yanomami, que com as próprias mãos ajudou a abrir a pista, o velho Juruna, quando já morava na grande casa de nome Papiu, chamou os missionários americanos (mirikanopë) para fazerem uma pista perto de sua comunidade, já que estavam morrendo de epidemias e verminoses. Na versão do próprio Juruna, os missionários Estevão e Milton os fizeram abrir a pista de trezentos metros, que foi feita por um grande contingente Legenda:

: Rota de migração estimada dos Maraxiu thëripë (atual grupo do Papiu). : Área de ocupação estimada dos grupos referidos

de Yanomami do Papiu e regiões do entorno, recebendo em troca os próprios materiais necessários para o trabalho: machados, facões, enxadas, além de panelas e roupas. Nas palavras de Juruna, em texto para o Projeto Político Pedagógico das escolas da região, está assim registrado:

Yutuha xawara a wai kuo hikioma. Ɨhɨ a wai kuo hikioma yaro, hapai naha thë thama: uhuru thëpë hanɨ hikioma, hapai naha thë thaɨ hetuomahe, kihi Erico hamë napë pënë pista aha taarɨ henë, hapai naha thëpë kuma: “Awei hei kaho Maloca Papiu thëri wama kɨnë kihi Ericó hamë Apiama hoxo ka kure naha wama hoxo thaki”. Ɨnaha mirikano thëripëha kurunë, heamë, Maloca Papiu hamë Apiama yama hoxo thaa xoakema.

Antigamente já tinha fortes epidemias, então por ter epidemias, foi assim que foi feito: os jovens [do Ericó] já tinham cortado [feito a pista], foi assim que eles fizeram depois, quando os napëpë viram a pista lá no Ericó, foi assim que eles disseram: „Vocês da Maloca Papiu, façam uma pista como esta do Ericó‟, pelo fato dos americanos [missionários] terem dito isso, aqui na Maloca Papiu nós fizemos então a pista de pouso.

(Projeto Politico Pedagógico do Papiu, CCPY e Instituto Socioambiental, 2010).

A MEVA manteve alguma atividade na região do Papiu até o início da década de 1980, segundo consta em uma carta dessa organização religiosa endereçada à FUNAI, na qual os missionários diziam manter visitas mensais à região (Le Tourneau, 2009). Em entrevista feita pelo linguista Helder Perri à Alírio Yanomama, liderança local, é relatada a forma como os missionários acabaram sendo expulsos da região:

Helder: wa hapa oxe o tëhë, oxe mahio tëhë, americano pë... pë kuo xoama tha, heãmɨ? Helder: Quando você era jovem, muito jovem, já haviam missionários por aqui?

Alírio: Pë kuo xoama, makii pë kopuhuruma. Pata thëpënɨ pë yaxuremahe, pë haɨxi, pëã haɨ, Deus

thã hirama yarohe pë piximanimihe! Deus thã yai piximaɨ mii yarohe, piximanimihe!

Alírio: Eles ainda estavam, mas foram embora. Foram expulsos pelos mais velhos, eles falavam, eles falavam suas palavras, eles ensinavam as palavras de Deus e eles não queriam! Eles não queriam mesmo as palavras de Deus, não queriam!

Helder: Wɨnaha thëpë kuma yaro, Deus thããnë? Helder: O que era dito pelos missionários, sobre as palavras de Deus?

Alírio: Hapa inaha pë kuma yaro: “Deus thããnë pëe nehe piximaimi. Deus thããnë xapuri thëpë piximaimi” ɨnaha thëpë kuma yaro, ɨhɨ thëha pata thëpë moyamɨrayoma yaro, thëpë yaxuremahe pë kopohuruma Mucajaí hamɨ

Alírio: Eles diziam assim: “Não é do agrado de Deus o uso de tabaco, Deus também não quer xamanismo.” Então por dizerem assim, já que as lideranças ficaram espertas, eles os expulsaram e eles voltaram para o rio Mucajaí.