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Minha intenção inicial era escrever uma etnografia sobre a participação das mulheres yanomami nas relações intra e intercomunitárias, buscando captar a percepção feminina acerca de seu lugar na política local, uma vez diagnosticada a pouca atenção dada a elas na bibliografia sobre os Yanomami atualmente disponível. Entre as tantas possibilidades de estudo dentro deste campo amplo, eu havia pensado inicialmente em focar minha atenção aos modos como estão sendo redesenhados novos padrões de casamentos que resultam de namoros, em alguns casos, entre Yanomami de grupos muito distantes, que por alguma circunstância se conheceram em reuniões, cursos ou outras ocasiões em Boa Vista (Roraima). Minha intenção inicial era descrever e analisar como estas novas relações conjugais têm influenciado a reconfiguração de relações de alianças entre os grupos comunitários, tendo em vista a centralidade dos casamentos na construção de alianças políticas. Este era apenas um dos caminhos possíveis para este estudo, mas, como é de costume, imaginava que a viagem a campo poderia me apresentar novos horizontes, como de fato ocorreu.

Vinte dias antes de pegar o voo para o Papiu, ainda em minha cidade natal, recebi por Facebook uma mensagem enviada por um amigo yanomami que mora na cidade de Boa Vista. Ele me dizia na mensagem que dois jovens do Papiu haviam sido mortos, talvez por garimpeiros ou por Yanomami inimigos. A notícia chegara assim, sem maior detalhamento de todo o enredo. Como eu já trabalhava no Papiu desde 2010, conhecia quase todos pelo nome e sabia que a região vivia até então um clima tranquilo, com poucas mortes. Tal notícia, portanto, indicava que algo sério deveria ter acontecido por lá. Recordava-me que entre 2010 e 2014 haviam morrido, no total, algo próximo de cinco pessoas. Mortes decorrentes, em todos os casos, de problemas variados de saúde e um caso de acidente ofídico.

Já em Boa Vista, após esta notícia, vivi ainda um longo período de incertezas sobre a viabilidade de seguir para o Papiu naquele momento de tensão. Havia receio tanto de minha parte quanto dos próprios Yanomami desta região. Por outro lado, em conversas com alguns deles,

sabíamos da importância daquela viagem, já que seria nesta ocasião que a professora Ana Gomes (UFMG) estaria presente para fazermos a tão esperada reunião sobre a possível construção do centro de formação na região. Este quadro, que parecia no início ser um entrave para a realização da pesquisa de campo, por fim se mostrou o fio condutor para a construção desta etnografia. Embora o tema das mulheres yanomami tenha sido eclipsado pela centralidade que as discussões sobre o conflito intercomunitário acabaram assumindo, esse interesse e preocupação inicial foram fundamentais para que eu me mantivesse atenta às investigações sobre o protagonismo feminino nos conflitos intercomunitários yanomami, um dos pontos centrais dessa dissertação. Com isso, esta dissertação assumiu nova forma e, por fim, ela foi organizada em sete capítulos, subdivididos em duas partes. Na primeira, que segue até o capítulo quatro, apresentarei dados e informações necessárias para criar um embasamento teórico e etnográfico que dê sustentação aos argumentos principais dessa pesquisa, apresentados em seguida entre os capítulos cinco e sete.

No capítulo dois, irei expor brevemente as principais linhas teóricas e argumentos presentes dentro do longo debate sobre a guerra yanomami. Em seguida, discutirei a ausência dos termos guerra e paz nas línguas yanomami, apontando a riqueza semântica relacionada aos conflitos e sistema de agressão yanomami. Por fim, descreverei o sistema de agressão yanomami tal como apresentado por Bruce Albert (1985), como forma de situar os reides aqui descritos dentro do amplo espectro político no qual eles se inserem.

No capítulo três, apresentarei o grupo Yanomami do Papiu, através de uma reconstrução histórica que até então não havia sido sistematizada em outros trabalhos. Buscarei reconstruir a história do atual grupo do Papiu desde os primeiros contatos e rotas de migração, passando pela dramática invasão garimpeira ocorrida na região ao final da década de 1980, para em seguida relatar o início dos trabalhos sistemáticos de saúde e educação escolar na região, chegando até o momento atual da formação de pesquisadores indígenas. Ao final do capítulo, apresentarei um breve retrato sobre os Papiu thëripë atualmente, bem como as novas ameaças e desafios que fazem frente a este grupo.

No capítulo quatro, apresentarei uma descrição detalhada do principal caso etnográfico deste trabalho. Neste ponto irei recuperar os relatos sobre o conflito desencadeado entre os Papiu thëripë e os Hayau thëripë, trazendo para discussão descrições atuais sobre os rituais watupamu, que antecedem os reides, e o ritual ũnakayõmu, realizado após uma expedição de reide bem sucedida. Espero, com isso, abordar a dimensão

política de um reide, em suas facetas ligadas à reciprocidade ritual, predação e trocas de perspectivas. No caso, darei especial atenção ao reide realizado pelos Papiu thëripë no mês de abril de 2014, que se sucedeu em meio ao período no qual eu realizava uma etapa da pesquisa de campo.

Na sequência, apresentarei uma das novas ideias que intento introduzir com este trabalho. No capítulo cinco, buscarei demonstrar como os vários homens com menos de 35 anos de idade, e que até então não haviam participado de reides, inovam o sistema de agressão yanomami a partir de elementos não indígenas. Irei explorar também as justificativas yanomami para o desaparecimento dos reides na região nos últimos anos e, a partir dessas falas, discutirei a aparente contradição entre trabalhar com instituições não indígenas e a obrigação de vingar os inimigos. Neste capítulo, falarei sobre a relação entre os Papiu thëripë com os napëpë, mediada pela figura de seus inimigos, os Hayau thëripe. De modo análogo, ao falar sobre a relação entre os dois grupos yanomami, falo também sobre a relação entre Yanomami e napëpë.

Por fim, no capítulo seis, apresentarei a segunda questão inovadora trazida por esta pesquisa, que são as descrições e análises acerca da participação das mulheres yanomami nos conflitos intercomunitários. Como disse, a participação das mulheres nesses conflitos aparecia até então como uma lacuna etnográfica frente ao extenso material já produzido sobre o tema guerra yanomami. Na tentativa de repará-la, busco demonstrar como as mulheres participam ativamente dos conflitos intercomunitários, principalmente através do controle e da mediação entre a obrigação da vingança e a necessidade de se apagar por completo a memória da pessoa morta, resultando assim na fixação definitiva do espectro no mundo dos mortos.

2. GUERRA YANOMAMI: IMPRECISÕES SEMÂNTICAS E O