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Da não naturalidade da morte: uma síntese sobre o sistema de agressão

2. GUERRA YANOMAMI: IMPRECISÕES SEMÂNTICAS E O

2.4 Da não naturalidade da morte: uma síntese sobre o sistema de agressão

O reide se inclui dentro do sistema de agressão yanomami como uma das modalidades pelas quais os grupos expressam hostilidades e realizam vinganças contra seus inimigos. O conflito entre os grupos yanomami de Papiu e Hayau tem os reides como elemento principal de agressão, como veremos no capítulo quatro e, portanto, esta modalidade de agressão tem maior destaque e atenção dentro desta dissertação.

Como forma de evidenciar a complexidade do sistema de agressão yanomami no qual o reide se insere como uma de suas modalidades apresentarei aqui, de maneira resumida, o sistema de agressão yanomami, a partir das descrições feitas por Bruce Albert (1985). As trocas de agressões, articuladas ao sistema de classificação das relações sociais, apresentam-se como um importante esteio do sistema político yanomami.

O sistema de classificação das relações sociais é representado por Albert (ibid.) a partir da imagem de cinco círculos concêntricos.

Para traçar este quadro das relações yanomami, Bruce Albert baseou-se na teoria de Marshall Sahlins acerca da reciprocidade. Em 1965, no artigo A sociologia da troca primitiva, Sahlins define três formas de reciprocidade: generalizada, equilibrada e negativa. Estas formas estariam dispostas dentro de um esquema concêntrico de relações sociais, sendo a reciprocidade generalizada aquela presente no nível das relações mais centrais desse círculo. Caminhando de modo gradual para os círculos mais periféricos, estariam situadas as relações nas quais a reciprocidade emerge de forma negativa (Sahlins apud Vilella, 2001).

Neste caso da cartografia de relações yanomami traçada por Albert, o grupo local de referência estaria situado no centro dos círculos e, a partir de sua perspectiva, agindo como uma espécie de “imagem radar”, localizaria e classificaria todos os outros grupos, apoiando-se em dois fatores fundamentais: em primeiro lugar, a densidade das redes de relações matrimoniais, econômicas, históricas e políticas mantidas em relação a cada grupo; em segundo lugar, a distância espacial existente entre cada comunidade e o grupo local. Neste modelo, as relações circunscritas pela generosidade e densas redes de matrimônios se situariam nos círculos mais inclusivos. À medida que as relações mantidas pelo grupo de referência se distanciam desses primeiros círculos, aumenta-se a troca de agressões e relações hostis entre os grupos.

Dentro deste complexo relacional, teríamos assim uma ampla rede de conexões formadas pelas inter-relações entre os grupos yanomami, dentro das quais se inscrevem as acusações de quase todos os casos de adoecimentos, epidemias e mortes, sendo, portanto, a não naturalidade da morte o pano de fundo de grande parte dos conflitos intercomunitários yanomami (Albert, 1992:155 et seq.) Passaremos agora para a exposição destas cinco categorias socioespaciais, descrevendo as formas de reciprocidade comuns a cada nível de relações, sejam elas de aliança ou predação13:

13 A grafia dos termos apresentados aqui se difere daquela presente no texto

original de referência. No caso, optei por atualizar a grafia dos termos aqui apresentados, a partir de algumas padronizações seguidas pelos Yanomami letrados, em um período mais recente do que o da publicação dos textos aqui citados. Esta mesmo grafia é hoje adotada pelo autor em questão.

1) Yahi thëripë / kami thëri yamakɨ (grupo local): Esta primeira esfera de relações é descrita como a unidade política yanomami. Este grupo é formado por corresidentes afins e cognatos, habitantes de uma mesma casa coletiva. Agressão: Entre os membros prevalece a reciprocidade generalizada, marcada por uma densa teia de intercasamentos, que (idealmente) assegura as não agressões maléficas.

2) Hwama thëpë / Nohimotima thëpë (conjunto multicomunitário de aliados): Esta segunda esfera de relações é formada por conjuntos de outros grupos yanomami com os quais o grupo de referência mantém relações de alianças políticas, sustentadas por intercasamentos e coparticipação em rituais cerimoniais (reahu).

Agressão: Podem ocorrer casos de feitiçarias comuns e feitiçaria amorosa, preparadas a partir da mistura de substâncias projetadas sobre a pessoa ou misturadas em seu alimento ou bebida. Nestes casos, estas substâncias costumam causar adoecimento e podem também gerar males como esterilidade, impotência ou emagrecimento. Entre estes grupos pode ocorrer também feitiçaria por captura de rastro, na qual as substâncias maléficas são misturadas a uma porção de terra que contenha a pegada da pessoa, o que, ocasionalmente, poderá levar à morte da vítima. Em todos estes tipos de feitiçaria, a ação de um xamã poderá minimizar ou desfazer os efeitos negativos do feitiço.

3) Napë thëpë (inimigos próximos): Esta terceira esfera de relações é formada por grupos que vivem relativamente distantes do grupo de referência, com os quais não se mantêm redes de matrimônio e prevalecem as relações de hostilidade.

Agressão: Podem ocorrer mediante os reides ou incursões secretas (õkara huu). No caso, os reides são emboscadas feitas por um grupo de homens até a casa de seus inimigos, com a intenção de matar com flechas ou espingardas algum homem do grupo inimigo. Os reides são quase sempre precedidos pelo ritual watupamu, e caso a morte do inimigo

seja bem sucedida, aqueles que tenham atirado ou tido contato com o sangue do morto deverão cumprir o ritual ũnakayõmu, como veremos no capítulo quatro. Na segunda modalidade de agressão, õkara huu, o grupo agressor segue sorrateiramente até a casa inimiga das vítimas desejáveis e se mantém a espreita na floresta, camuflados por uma pintura corporal preta, à espera de uma vítima (homem ou mulher), sobre as quais sopram ou projetam substâncias maléficas, que podem ou não ser seguido de agressões físicas. Nas expedições õkara huu os agressores podem também projetar tais substâncias malignas na pessoa enquanto ela dorme ou envenenar secretamente sua comida. Embora o objetivo deste tipo de agressão seja causar a morte de alguma pessoa do grupo inimigo, não é sempre que isto ocorre. Os agressores podem ir até a casa inimiga com o objetivo de lançar substâncias potentes, capazes de gerar uma epidemia contra seus inimigos.

4) Tanomai thëpë / tamumaõwipë (inimigos que não se veem ou não se conhecem): Nesta quarta esfera de relações se situam os antigos inimigos ou inimigos potenciais, que moram distantes do grupo de referência.

Agressões: Os grupos trocam entre si agress es xam nicas, que ocorrem através do envio de espìritos auxiliares dos xamãs (invisìveis aos não xamãs) e que buscam devorar a imagem vital (pei ũtũpë) de pessoas do grupo inimigo. A estas agressões são atribuídas principalmente as mortes de crianças.

5) Tanomai thëpë yai / Tamu mi mahiowipë (inimigos realmente desconhecidos): Nesta última esfera de relações se situam os conjuntos de inimigos desconhecidos, os quais o grupo de referência sabe da existência, geralmente, apenas por rumores.

Agressões: Neste nível de distância, as trocas de agressões costumam se dar através da morte do duplo animal. Para os Yanomami, cada pessoa possui um alter ego animal ou duplo animal (rishi), que vive em regiões distantes, próximos a estes grupos inimigos. Cada pessoa tem seu destino simetricamente associado ao de seu duplo animal e,

embora estes nunca se encontrem, a morte desse animal resultará também na morte da pessoa.

Além das categorias de relações socioespaciais e agressões descritas acima, Albert afirma ainda que alguns casos de morte e doença podem ser atribuídos a agressões causadas por seres sobrenaturais (yai thëpë), como os espíritos maléficos da floresta ou poderes agressivos, associados a entidades naturais que são relacionadas a lugares inóspitos da floresta ou poderes atmosféricos.

Entre os grupos yanomami, as relações de predação e imanência do inimigo nos remetem à ideia de que dentro das “sociedades contra o Estado” (cf. Clastres, 2003) – como é o caso dos Yanomami – o estado de guerra é mantido, mesmo sem uma constante violência manifesta. Não se trata de guerra permanente, mas sim de um estado de latência ou virtualidade da guerra. Para Clastres, “a sociedade primitiva é sociedade contra o Estado na medida em que é sociedade-para-a-guerra” (Clastres, [1977] 2004:134). Este seria, para o autor, um meio de manutenção da autonomia dos grupos locais comunitários e da não divisão e hierarquização do poder, uma forma destas sociedades evitarem o surgimento do Estado, como instância de poder centralizado e detentora de poderes de mando.

Assim como em outros grupos amazônicos, os Yanomami têm como modalidade prototípica de relações a predação generalizada (Viveiro de Castro, 2002: 164). Como pudemos ver no esquema de relações sociais descrito por Albert, as relações sociais yanomami são amplas e inclusivas e, desta forma, as relações neutras seriam inexistentes. Sendo as trocas de agressões e a morte eventos fundamentalmente políticos, veremos no capítulo cinco que na relação entre Yanomami e napë, este sistema de agressão ora se inova – através de elementos como a escrita, os salários e as associações indígenas –, ora tenciona frente aos mesmos elementos. Mas, antes disso, descreverei no próximo capítulo, o histórico da região do Papiu, para que possamos nos familiarizar com o contexto particular desta pesquisa.