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4 Notas sobre o início de um conflito

4.2 Primeiro ato: os inimigos e a acusação de feitiço

Hayau35 é um pequeno grupo Yanomami que habita a região montanhosa na fronteira que divide Brasil e Venezuela. Embora os Yanomami do Papiu se refiram ao grupo como sendo venezuelano, suas casas estão dentro da fronteira brasileira e, portanto, o atendimento à saúde nesta região é feito pela SESAI. Segundo me foi dito por algumas pessoas do Papiu, os Hayau thëripë são descendentes dos antigos Krimatha thëripë e, até trinta anos atrás, as pessoas do Papiu os visitavam amigavelmente. Em seguida, este grupo migrou-se, e passaram a serem conhecidos como Poimopë thëripë. Entre o final da década de 1990 e início de 2000 migraram novamente e se dividiram, formando os Morohusi thëripë. O atual Hayau é uma dissidência deste último grupo, e possuem relações de alianças no Brasil com alguns grupos da região do Surucucus, como Watou.

Os Papiu thëripë dizem que o grupo dos Hayau é muito pequeno, segundo eles formado por cerca de cinco famílias. Embora o censo da FUNASA de 2011 tenha registrado que a população de Hayau seria de exatamente cem pessoas, ouvi relatos de um Yanomami dizendo que o

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Segundo Xiriana, um velho Papiu thëri, Hayau significa o rio de um tipo de flechal → haya: tipo de flechal (ou whaya na língua yanomae) u: classificador nominal de rios e águas. Neste caso, haya não significa veado, que é a acepção mais conhecida desta palavra.

grupo teria ainda se dividido nos últimos anos. É possível saber pouco sobre este grupo, já que os Hayau thëripë mantêm pouquíssimo contato com os napëpë. Alguns Yanomami costumam se referir a eles como “ìndios isolados” – de forma jocosa. O atendimento de órgãos governamentais a este grupo é praticamente nulo, se restringindo a eventuais missões de helicóptero para realizar vacinações e outros atendimentos básicos de saúde. O principal canal de contato e negociações entre os Hayau thëripë e os napëpë ocorre através dos garimpeiros que trabalham ilegalmente em seu território, sendo esta a principal fonte de acesso do grupo às espingardas, munições, panelas e outros bens industrializados. Além das trocas com os garimpeiros, as mercadorias napë chegam até os Hayau thëripë através da rede de trocas com outros grupos yanomami, sustentadas, por sua vez, por suas relações de aliança e parentesco.

O início da tensão da relação entre Hayau e Papiu aconteceu entre os últimos meses de 2013 e o início de 2014, logo após a morte de uma das lideranças (pata thë) do Hayau, que teve sua morte diagnosticada como fruto de feitiço inimigo36. Assim, como de costume, identificar a origem dos agressores foi uma providência imediatamente tomada pelas pessoas do Hayau, em uma investigação feita na floresta, nos arredores das casas, em busca de galhos quebrados, mato amassado ou pegadas que indicassem a direção por onde teriam vindo os inimigos causadores da agressão (okapë). Nessa averiguação, as pessoas do Hayau disseram ter encontrado rastros na direção das casas do Papiu. Uma vingança contra eles, portanto, deveria ser levada a cabo em retaliação à morte que eles supostamente teriam causado.

A notícia da morte da liderança do Hayau e as acusações aos Papiu thëripë logo correu pelos caminhos que ligam as casas e regiões na TIY – essas veias de relações e histórias da floresta – e virou assunto em regiões como Surucucus, Haxiu e Okomu. Como ocorre muitas vezes, o sistema de radiofonia presente em postos de saúde e algumas poucas comunidades yanomami contribuiu para potencializar a circulação de informações e fofocas sobre o caso, já que pelas radiofonias gira um

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Vários conflitos e ciclos de reides são iniciados por acusações de uso de plantas mágicas e de feitiçaria, e quando há alguma morte suspeita esta deverá ser vingada, após o diagnóstico de um xamã ou análise de pistas ao redor da casa ou da roça que conduzam a informações sobre a possível comunidade de origem do agressor, levando à abertura de um ciclo de vinganças e trocas de agressões (Lizot, 2007: 298).

intenso fluxo de informações entre Yanomami das mais variadas regiões da terra indígena, através de conversas podem ser ouvidas por qualquer pessoa que esteja escutando o aparelho sintonizado no mesmo canal em que as pessoas estejam conversando, como em qualquer sistema de rádio.

Foi também através da radiofonia que a ameaça do primeiro ataque chegou ao Papiu. Um jovem da região do Haxiu, que é genro de Joana – conselheira de saúde do Papiu – contou para a sogra sobre a morte da liderança do Hayau e falou sobre as acusações direcionadas aos Papiu thëripë, anunciando assim a vingança eminente. Joana disse ao seu genro pela radiofonia que, de maneira alguma, os Papiu thëripë eram os culpados, pois não portam feitiços. Joana me disse depois que não acreditaram em sua fala: “thuwë ya kutayonɨ, „wa hõremu‟, ɨnaha thëpë pihi kuma” – “eles pensam que eu estou mentindo, já que sou mulher”.

O professor Tomé, por ser originalmente do Haxiu e casado com uma moça do Papiu já há mais de doze anos, também recebeu o mesmo recado pela radiofonia. O Haxiu é uma região que mantém alianças tanto no Papiu quanto no Hayau, portanto, se situa em uma posição delicada neste conflito. Por ser originário do Haxiu, o professor Tomé já havia participado de rituais funerários na casa dos Hayau thëripë antes de se casar e ter ido morar no Papiu.

A conversa que Tomé teve com seus parentes sobre a ameaça de ataque chegou pela radiofonia da Hutukara quando o professor estava fazendo compras em Boa Vista. Algum parente do Haxiu avisou-lhe sobre a morte da liderança do Hayau e a iminente vingança contra os Papiu thëripë. Assim como fez Joana, Tomé negou as acusações dizendo que no Papiu não usam feitiço e pensam apenas em trabalhar com os napëpë, em “imitá-los”, como me explicou. Porém, a fala de Tomé também não surtiu efeitos, como veremos.