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3. O PAPIU

3.4 Trabalhando com (e como) os napëpë: o Papiu pós-garimpo

3.4.2 Emergência dos serviços de saúde e educação: a geração “terra

Em 1991, a organização francesa Médicos do Mundo (MDM) – que já havia atuado no território yanomami durante a década de 1980 – regressou ao Papiu em uma missão de assistência médica emergencial, visando a reestruturação das condições de saúde na região. Nesta ocasião construíram o posto de saúde existente ainda hoje no Papiu. Em 1994, a Médicos do Mundo assinou um acordo formal com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), passando a exercer serviços de saúde permanentes no Papiu, com o objetivo de recuperar o equilíbrio do quadro sanitário na região (Le Tourneau, 2009). A ONG Médicos do Mundo se manteve no Papiu ao longo de pouco mais de uma década, encerrando suas ações em dezembro de 2002. Nestes dez anos de atuação, conseguiram erradicar a malária, além de zerar os casos de tuberculose, calazar e oncocercosis na região.

Para se ter uma ideia do estado crítico de saúde logo após a invasão garimpeira, ao longo de 1993 houve seiscentos e três casos de malária em uma população com pouco mais de trezentas pessoas (Médicos do Mundo apud Perri Ferreira, 2009). Bruce Albert (comunicação pessoal), que acompanhou a implantação dos serviços da MDM na região entre os anos de 1990 e 1991, relata o cenário devastador que encontrou na ocasião, quando os índios, sem roças e completamente inseridos em um ciclo de dependência da alimentação garimpeira, vagavam doentes, fracos e desnutridos pela pista de pouso, batendo, à noite, nas paredes de madeira do posto de saúde a pedir farinha.

Para acabar com as doenças deixadas pelos garimpeiros no Papiu, uma das primeiras iniciativas tomadas pela MDM foi fazer uma grande fogueira, onde os Yanomami queimaram suas roupas velhas obtidas através de trocas ou presentes dos garimpeiros. Estas roupas eram verdadeiros focos de doenças e, em troca das roupas queimadas, os homens receberam panos vermelhos e calções, já as mulheres ganharam

novelos de lã e miçangas, para que pudessem voltar a tecer suas tangas tal qual aquelas que usavam antes da chegada dos garimpeiros.

Ainda em meados da década de 1990, a MDM iniciou um trabalho tímido de alfabetização no posto de saúde. As aulas eram direcionadas a cinco indígenas, visando a formação de agentes de saúde yanomami. Fora do contexto escolar, estes cinco primeiros estudantes ensinavam por conta própria o que aprendiam nas aulas a outros Yanomami que estivessem interessados em aprender a ler e escrever. Já em 1997, a Diocese de Roraima, em colaboração com a MDM, expandiu os trabalhos de educação na região e, em 1999, já haviam sido implantadas escolas em três comunidades: Maharau, Wakahusipiu, Hapakaxi.

Em 2001, alguns jovens do Papiu foram escolhidos para participar do primeiro curso de formação de professores realizado pela CCPY na Missão Catrimani e, em 2002, esta organização assumiu todo o trabalho de educação na região, prestando assessoria às escolas e realizando a formação de professores dentro do Programa de Educação Intercultural. Na época, a escolarização se expandia rapidamente e o número de escolas no Papiu saltou para nove, sendo criadas nas seguintes casas: Ërisipi, Amaakahiki, Herou, Maharau, Okarasipi, Sikamapiu, Tihɨnakɨ, Xokotha e Xorithothopi. Assim como o número de escolas, crescia também o número de professores em formação na região, substituindo aos poucos a figura dos professores napëpë que, até então, eram os responsáveis pelo processo de alfabetização na região. (Projeto Político Pedagógico do Papiu, no prelo).

Em dezembro de 2002, a ONG Médicos do Mundo encerrou sua missão na região do Papiu28, após ter revertido o quadro epidemiológico e sanitário encontrado no período final da invasão garimpeira. Neste período o atendimento à saúde foi então entregue ao governo brasileiro, estando a região livre de malária, com a população apresentando bons índices de crescimento e com dezessete agentes indígenas de saúde em formação (entre o grupo, três eram mulheres). O atendimento à saúde foi assumido na época pela ONG Urihi Saúde, conveniada à FUNASA (Ministério da Saúde), que ofereceu um atendimento de ótima qualidade aos Yanomami até julho de 2004, quando foi encerrado o convênio.

Em novembro de 2003, as relações intercomunitárias no Papiu foram severamente abaladas após o início de um conflito interno.

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Para mais informações sobre o fim dos trabalho dessa organização no Papiu, assistir:https://www.youtube.com/watch?v=u8eOHdXvZSY

Durante uma sessão de caxiri, um desentendimento entre alguns yanomami resultou no homicídio de dois jovens, rompendo as relações entre algumas comunidades vizinhas (Perri Ferreira, 2003). Foi aberta assim uma vendeta entre comunidades até então relativamente próximas que, oscilando entre momentos de maior ou menor tensão, se estendeu até o ano de 2010, com um saldo final de oito mortes.

Com o desencadeamento do conflito as ações de saúde e educação na região foram fragilizadas, mas mesmo assim tiveram continuidade principalmente nos momentos de menor tensão na região. Em 2006, o então assessor da CCPY Helder Perri, escreveu junto aos professores, AIS‟s e lideranças do Papiu, um projeto de implantação de um sistema agroflorestal na região, e outro propondo a construção de um centro de formação, visando resolver a falta de espaço para a realização das atividades escolares no Papiu. Sobre este projeto de construção do centro de formação, ainda não realizado, falarei mais adiante.

A CCPY e a então recém-criada Hutukara Associação Yanomami29 buscavam o repasse do atendimento às escolas yanomami para o Estado, seguindo o movimento que já havia acontecido na saúde. Assim, em 2007, várias escolas indígenas dentro da TIY, que haviam sido criadas pela CCPY e comunidades yanomami, passaram a ser escolas estaduais indígenas, mediante à publicação de seus decretos de criação. Neste ato, sete escolas do Papiu foram – ao menos oficialmente – assumidas pelo Estado. Em 2005, cinco professores da região já haviam sido contratados pela Secretaria Estadual de Educação (SECD). Porém, na contra mão da criação das escolas pelo Estado – ou também em decorrência disso – a partir de 2007 as atividades escolares no Papiu entraram em progressivo declínio. Algumas delas paralisaram quase totalmente suas ações. Um dos fatores desta decadência foi a falta de recursos financeiros da CCPY para a continuidade dos trabalhos de acompanhamento destas escolas, uma vez que esta tarefa deveria ser assumida pelo Estado. Já o governo, por sua vez, restringiu sua atuação apenas ao pagamento de salários aos professores. Por outro lado, os conflitos internos no Papiu se reaqueceram neste período, envolvendo alguns professores e acarretando no incêndio da escola de Xokotha, em uma clara retaliação ao seu professor, envolvido no conflito.

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A Hutukara Associação Yanomami foi criada em 2004 e, desde então, tem como presidente Davi Kopenawa Yanomami. Os Papiu thëripë são representados pela associação.

Não apenas a educação, mas também a qualidade do atendimento à saúde entrou em declínio após o encerramento do trabalho da ONG Urihi Saúde, em julho de 2004, num movimento de contínua precariedade que segue até os dias de hoje. No ano de 2007, a malária, antes erradicada em toda Terra Indígena Yanomami, voltou a surgir, atingindo diversas regiões, inclusive o Papiu. O sucateamento progressivo do atendimento à saúde fica evidente através da baixa qualidade dos serviços prestados, do aumento do número de remoção de pacientes para hospitais em Boa Vista ao invés do investimento em saúde preventiva, e dos contínuos casos de corrupção envolvendo órgãos públicos e organizações conveniadas responsáveis pela prestação de serviços de saúde aos Yanomami.

Com o fim do conflito interno em 2010 os trabalhos de educação puderam ser retomados no Papiu dentro de uma nova configuração. O antigo assessor da CCPY, Helder Perri, deu início ao Projeto de Documentação do Yanomama do Papiu (PDYP) – um amplo projeto de documentação linguística, cultural e histórica da região que tem como um de seus objetivos centrais a formação de pesquisadores indígenas, como já apresentado na introdução deste trabalho.

O projeto – do qual eu faço parte – tem gerado uma série de registros audiovisuais e literários. Em seu âmbito, está contempladas a produção de livros bilíngues com registros de cinquenta e quatro mitos e histórias, a produção de vídeos, uma exposição sobre o uso das tangas de miçangas pelas mulheres da região, além de um livro sobre o uso e conhecimento das plantas medicinais. Em linhas gerais, os temas trabalhados por este projeto visam o registro e fortalecimento de conhecimentos Yanomami. Quatro pesquisadores indígenas envolvidos nesta empreitada, após terem se formado no curso de magistério oferecido pela CCPY/ISA, ingressaram, em 2012, no curso de Licenciatura Intercultural da Universidade Federal de Roraima e deverão concluir o ensino superior até 2017. Antes de concluirmos esta longa reconstrução histórica sobre o Papiu, vale nos atermos ainda ao projeto do centro de formação, já que este é um elemento importante dentro do caso etnográfico descrito ao longo destas páginas.

Os trabalhos de pesquisa hoje realizados pelos Yanomami na região carecem de um espaço físico para sua execução, que muitas vezes é feita de forma precária no chão do posto de saúde ou em construções improvisadas com lona. Portanto, a demanda para a construção de um centro de formação é muito clara: os professores, alunos e pesquisadores yanomami do Papiu precisam de um espaço onde possam dar aulas, trabalhar em suas pesquisas, organizar cursos e/ou assistirem filmes. O

projeto, elaborado em 2006 na língua yanomama e depois traduzido para o português, foi inúmeras vezes enviado a órgãos governamentais, em tentativas, sempre frustradas, de viabilizar sua execução.

Em 2013, o projeto da construção do centro foi apresentado à professora Ana Gomes (UFMG), por uma equipe formada pelos pesquisadores indígenas do Papiu, Genivaldo, Arokona, Alfredo e Marconi, pelo linguista Helder Perri e por mim. Ana Gomes, por sua vez, começou a buscar formas legais para o financiamento público do projeto. Vislumbrou a possibilidade do financiamento da construção do centro via SECADI/MEC (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão / Ministério da Educação), integrando-o à ação do Território Etnoeducacional Yanomami e Ye‟kuana. Em abril de 2014 fomos até o Papiu para fazer uma primeira reunião sobre a construção do centro de formação, logo após a morte dos dois jovens pelos Hayau thëripë, como veremos descrito no capítulo quatro.