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Capítulo I – a construção da ideia da criança cidadã

2. A construção do conceito de cidadania: da ideia moderna de cidadania à construção

2.1. Breve Revisão histórica do conceito de cidadania

Historicamente a cidadania está ligada aos privilégios de pertença a uma comunidade política particular – uma em que aqueles que possuem um certo estatuto estão habilitados a participar em bases iguais com os seus concidadãos na tomada coletiva de decisões que regulam a vida social. Desde as suas primeiras configurações, o sentido de pertença e de coletivo está presente, tendo vindo a modificar-se ao longo dos tempos. Dito de outro modo, a cidadania sempre andou de mãos dadas com a participação política – em algumas formas de democracia – particularmente no direito ao voto (Bellamy, 2008).

Segundo Bellamy (2008) as teorias da cidadania poderão dividir-se em dois tipos: as normativas, que tentam descrever os direitos e deveres que os cidadãos idealmente deveriam ter, e as empíricas, que procuram descrever e explicar o modo como os cidadãos veem a ter esses mesmo direitos e deveres. As primeiras olham para a história para explorar o ideal do “bom cidadão”, enquanto as segundas procuram exploram os processos sociais, políticos e económicos que determinaram a emergência da cidadania em diferentes tempos e espaços e de que modo esses estatutos foram garantidos a diferentes grupos de pessoas.

Na génese da criação dos conceitos de cidadania é comum a referência a dois modelos centrais: o da Grécia Antiga e o modelo romano (Bellamy, 2008; Cockburn, 2013). Ambos “iniciam” a construção da ideia e do exercício de cidadania partindo de diferentes pressupostos, alguns dos quais permanecem, hoje. Faremos nelas uma breve incursão, particularmente centrada nas posições das crianças nestas teorias clássicas de cidadania.

Para Bellamy a perspetiva grega inspirou-se fortemente em Aristóteles, que via o ser humano como “animal político” uma vez que a sua natureza era viver numa comunidade política – advogava que apenas na polis, na cidade, o potencial humano poderia ser amplamente cumprido. No entanto, na democracia grega, apenas alguns poderiam qualificar-se enquanto cidadãos, sendo que, para o ser, era necessário ser-se homem, com 20 anos ou mais, com genealogia conhecida nascido numa família de Atenas, ser guerreiro ou possuir casa e ser possuidor de escravos. Género, classe e raça – acrescentaríamos, idade – definiam então os cidadãos – mulheres, imigrantes, crianças e escravos estavam assim fora do estatuto (Bellamy, 2008). Tal como descreve Cockburn (2013):

“A polis da Grécia Antiga era essencialmente uma associação de homens adultos, e o corpo de cidadãos era composto por homens que se reuniam para tomar e implementar decisões. Todos os homens cidadãos que aqui participavam eram, em princípio, iguais; no entanto, era claro que a cidadania, no seu sentido clássico, era baseada na classe social (…), na raça, sendo os ‘estrangeiros’ excluídos da cidadania, ainda que estes fossem bastante superiores aos Atenienses” (Cockburn, 2013, p.24)

A partilha da vida em comunidade era feita em assembleias, havendo ainda unidades territoriais construídas nas Ágoras de cada cidade, onde haveria lugar à discussão pública dos assuntos e decretos de caráter local. Os critérios de admissão ao estatuto de cidadão não eram, por isso, acessíveis a todos construindo, assim a ideia de exclusão e inclusão no estatuto que ainda hoje assume relevância, ainda que de formas distintas.

Do mesmo modo, os processos deliberativos dos assuntos das diferentes comunidades eram resolvidos preferencialmente através da criação de consensos e na procura da “ (…) unanimidade e da harmonia” (Bellamy, 2008, p.34) sendo o voto utilizado apenas quando tal não fosse alcançável. Assim, o ideal grego de cidadania consubstancia-se na lógica de concórdia e harmonia, e na aspiração da uma sociedade

sem diferenciações. No entanto, como se referiu ideais de igualdade de acesso e estatuto, bem como representatividade não estavam aqui assegurados. A posição social das crianças na cidadania era, por isso, frágil, juntando-se a outros grupos dela excluídos.

O modelo da Roma imperial e republicana ofereceria diferentes modos de ver a cidadania, com diferentes contrastes. Ainda que existissem classes na Grécia o ideal incluía uma sociedade sem classes com a aspiração à “concórdia”. Em contraste, o modelo republicano romano nasce da discórdia e luta de classes dos plebeus para obtenção de direitos sobre os patriarcas (Bellamy, 2008). A criação do Conselho Plebeu, seguido do evento do Monte Aventino, tratava da legitimação civil, criando tribunais com o poder de aprovar e criar leis para regular a vida coletiva. Existiam ainda três outras assembleias eleitas: uma baseada nos clãs familiares, uma entre os soldados, baseada nas legiões a que pertencessem, e uma baseada nas divisões tribais. Ainda que pudessem ser eleitos para os Conselhos, os cidadãos romanos nunca usufruíram da influência política dos atenienses. O poder permanecia no Senado.

Do mesmo modo, mais do que basear-se em ideias abstratos de cidadania e dos seus debates teóricos, como na Grécia, o modelo romano centrar-se-á numa perspetiva prática, isto é, na introdução de um conjunto de leis e códigos (Cockburn, 2013). No entanto, e ao comparar-se a influência política nos processos de tomada de decisão dos gregos, os romanos ficavam aquém, sendo a sua participação mais restrita. Com a expansão do Império Romano duas modificações importantes acontecem na definição da cidadania: as populações dos territórios conquistados poderiam manter a sua própria versão de cidadania e manter formas próprias de governação; segundo, a versão dada de cidadania era de carácter mais legal do que político. Assim, o Império permitia uma cidadania dual. Outra dicotomia presente nas teorizações de cidadania permanecia na divisão entre o poder divino e a razão, estendendo-se à ideia de monarquia. Assim, no modelo Aristotélico, a cidadania política dependeu de os cidadãos estarem livres de fatores económicos e de vida social de modo a poderem participar em prol do bem comum e menos de interesses particulares. Em contraste, a cidadania legal romana centrava-se precisamente nestes e nos detentores de propriedade, em particular.

Em ambos os modelos, no entanto, e como Cockburn (2013) é possível observar uma limitação das crianças ao acesso de um estatuto cidadão próprio mas,

simultaneamente, uma maior exposição a espaços públicos, onde participavam em diferentes momentos coletivos, bem como um maior sentido de pertença a uma comunidade encarregue de as cuidar.