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Breves noções antropológicas de farmacopeia

Capítulo I. Revisão da Literatura e Aspetos Conceptuais

1.6. Breves noções antropológicas de farmacopeia

Em nenhuma outra área, a relação entre práticas tradicionais e dependentes do conhecimento biomédico e da industrialização são tão evidentes como no recurso à farmacopeia. Por definição, os medicamentos são substâncias que possuem a capacidade de alterar a condição de um organismo vivo. O protótipo de medicamentos é a matéria de saúde médica que consiste no alívio do doente, e o significado dos medicamentos, para a maioria das pessoas, reside na sua eficácia curativa. Nos contextos onde predomina a terapêutica tradicional, os medicamentos são tangíveis e utilizáveis de forma concreta, podem ser engolidos, esfregados na pele, ou inseridos dentro de orifícios com atividades que mantêm a promessa de um efeito físico curativo. Segundo Van der Geest et al (1996:46), há medicamentos que se encaixam como biomedicina, como noutras tradições médicas.

No Ocidente, o estudo da matéria médica refere-se ao conjunto de medicamentos ou drogas disponíveis em um contexto social e cultural histórico. No séc. XIX e no início do séc. XX, o desenvolvimento acelerado da investigação nas universidades europeias e americanas conduziram à afirmação da farmacologia, caraterizada pela preparação e utilização de todos os tipos de substâncias terapêuticas, contendo compostos bioquímicos e drogas sintéticas, focando- se nos seus efeitos sobre os tecidos corporais. Os produtos de manipulação da medicina tradicional não-ocidental incluem ervas, materiais a base de plantas, preparações a base de plantas e ervas, produtos acabados que contenham partes de plantas, outros materiais vegetais ou combinações dos mesmos como ingredientes ativos. Em alguns países, os medicamentos podem conter, por tradição, materiais orgânicos ou inorgânicos de origem vegetal, animal e mineral (OMS, 2014).

A lógica simbólica e cultural do medicamento foi primeiro discernida pelos antropólogos que abordaram as questões sociais e simbólicas ligadas à magia, ao fetichismo ou ao animismo. Para Van der Geest et al (1996), a crença na imanência de forças que as pessoas tentam possuir, controlar e manipular a sua própria vantagem (Van der Geest et al, 1996:47)

28 caraterizam a manipulação de objetos simbólicos nas sociedades estudadas, como é o exemplo do grupo étnico Mossi em Burkina Faso, onde fora observado que estas populações veêm conexões entre sintomas da doença e seu tratamento como fenômenos do seu ambiente quotidiano (Van der Geest et al, 2002:37).

Among the Mossi, names, causes and treatment of illness reveals a strongly metaphoric and metonymic style of reasoning. Cause, effect and cure are grouped together around powerful images derived from everyday life, such as tools and other objects of daily use, plants and animals. These images are good thing´ in the sense that they not only help to name and classify the ilness, but also provide the ´staff for its causal explanation and cure (Van der Geest et al, 2002:48-49).

Todavia, o significado de medicamentos é entendido em termos da experiência e conceção de doença. As metáforas são muitas vezes utilizadas para concretizar a doença, o que abre caminho para a terapia por elementos naturais. Portanto, o reconhecimento da eficácia social dos medicamentos faculta a maneira de entender tais práticas habituais, porque as pessoas agem de forma que faça sentido para elas, porque acreditam que elas fazem sentido para outros (Van der Geest et al, 2002:35-36).

A divulgação dos fármacos comerciais tem sido objeto de estudo dos antropólogos, os quais perceberam que os produtos farmacêuticos eram sintetizados, fabricados e comercialmente distribuídos como substâncias terapêuticas, provedoras de saúde, que constituem o núcleo duro da legitimação da biomedicina. Até muito recentemente, na década de 1980, poucos antropólogos se tinham dedicado a analisar sistematicamente os medicamentos sob a ótica de fenômenos sociais e culturais, com a exceção de certos pioneiros (Aland, 1970; Cunningham, 1970; Logan, 1973). A partir da década de 80, alguns académicos começam a levantar sérias críticas acerca da invasão farmacêutica no Terceiro Mundo, chamando a atenção para os interesses económicos e comerciais que estão por trás da crescente medicalização nos serviços biomédicos (Melrose, 1982; Silverman, 1982; Blum, 1983).

Ao seguir as transações de produtos farmacêuticos, pode-se discernir uma ordem biográfica, a que os antropólogos se referem como “vida social” (Kopytoff, 1986:101). Em primeiro lugar, os produtos são preparados, geralmente num ambiente tecnologicamente avançado, e são comercializados para os provisores de saúde, como os ministérios da saúde e

29 empresas privadas, bem como para os retalhistas (hospitais e clínicas, farmacêuticos, lojistas e médicos). Em seguida, são distribuídos aos consumidores por prescrição ou por venda direta. A prescrição é uma fase intermediária em que o paciente possui apenas um pedaço de papel (receita médica) que, eventualmente, levará à compra do medicamento. Só depois de transitar do farmacêutico para o consumidor, o medicamento vai chegar à fase final da sua vida útil, sendo utilizado com a finalidade de restaurar, melhorar ou manter o estado de saúde. A etapa decisiva da vida do fármaco reside na maneira como um medicamento é tomado e na sua eficácia farmacêutica. O cumprimento do seu propósito de vida reside no seu efeito sobre o bem-estar da pessoa que o adquiriu. A eficácia de um farmacêutico não se limita ao domínio médico, o seu poder estende-se muito além do bem-estar físico e mental, em razão dos efeitos da medicação serem também de ordem social, cultural, psicológica, e até mesmo metafísica.

As opiniões divergem sobre a fonte de potência terapêutica dos medicamentos. Para Van der Geest: “Pharmaceuticals affect people as intimately as food and body decorations and seem

particularly well designed to shape people’s sense of being and belonging” (Van der Geest et al,

1996:17). A biofarmacologia sustenta que o seu poder de cura é uma parte inerente da sua substância, uma opinião que é também difundida em outras culturas médicas. Porém, para muitos defensores da biomedicina, a capacidade inata dos produtos farmacêuticos é entendida como uma grande bênção, porque permite que as pessoas encontrem uma terapia sem tornarem-se dependentes umas das outras. A concretização das prescrições médicas produz, no paciente, a confiança de que algo está sendo feito para resolver seu problema de saúde. Da mesma forma, a pessoa que prescreve ou dispensa o medicamento sente-se satisfeita por ser capaz de tranquilizar o paciente (Van der Geest et al, 1996:18), como veremos no capítulo V, onde são apresentados e discutidos os resultados da pesquisa.

Alguns antropólogos (Alland, 1970; Van der Geest at al, 1996; Comelles, 2000; Fialho, 2003) questionaram se o poder curativo dos medicamentos teria origem em si mesmo ou na pessoa que lhes atribui propriedades. Segundo Van der Geest (1996:19):

Pharmaceuticals and indigenous medicines take on meaning in contrast with one another and thus appear distinctive. At the same time, pharmaceuticals provide a prototype in terms of packaging and marketing for indigenous medicines, so that the difference between them is diminished.

30 Num contexto em que há uma assimetria de informações associada a essa referida prática de marketing, ao se pensar nos atores médicos, deve-se falar, então, em vários mercados e “submercados” para a indústria farmacêutica, definidos em função das subclasses terapêuticas ou, de maneira mais específica, em função das estruturas químico-farmacológicas de alguns grupos de medicamentos e suas consequentes diferenças terapêuticas (Santos, 2001:180). Nessa conjuntura, as questões de saúde global em África estavam condicionadas pelo ajustamento estrutural e iniciativas falhadas em países pobres na década de 1980 e 1990, pelo colapso das estruturas de saúde, pelo surgimento e propagação do HIV/SIDA, pelo confronto global entre as empresas farmacêuticas e os governos africanos, pelas ações judiciais movidas por multinacionais farmacêuticas contra esses governos, de modo a buscar alternativas de explorar novas drogas farmacológicas.

Um outro aspeto importante e fundamental deve ser considerado quando se analisa a concentração da oferta no mercado farmacêutico, com suas implicações para a concorrência e o nível dos preços. Refere-se ao fato de que essa concentração ocorre, tanto em termos geográficos quanto em termos de classes e subclasses terapêuticas dos medicamentos. Na década de 90, a indústria farmacêutica dos EUA gastou 4.100 milhões de dólares em pesquisa, manipulação e aplicação do conhecimento para o desenvolvimento de drogas mais baratas derivadas de plantas identificadas como sendo da medicina “tradicional” africana, mas o seu uso e conhecimento medicinal ainda está condicionado e alicerçado a interesses acadêmicos, empresariais e dos ministérios da saúde africanos, num ciclo de perpetuação das ideias coloniais da medicina “tradicional” indígena. A sabedoria local passa a deter um estatuto epistemológico especial, local e não emancipatório, uma vez que, para o ser, precisa de ser reconhecido sob a forma de descoberta, e isso implica que se redescubra o “nobre selvagem” (Meneses, 2000:4).