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Capítulo I. Revisão da Literatura e Aspetos Conceptuais

1.7. Pluralismo médico em Moçambique

Em Moçambique, à semelhança de outros países do mundo, os sistemas tradicionais eram desqualificados pelos discursos assentes no paradigma científico da modernidade que se desenvolveu no século XVI. As definições gerais realizadas pela administração colonial colocam em oposição a medicina oficial (biomedicina) e a medicina tradicional (magia). A biomedicina, de base científica europeia, seria responsável por curar, por lidar com os problemas que afligem

31 fisicamente os pacientes, enquanto a medicina tradicional seria apenas uma crença do sistema religioso das populações moçambicanas, desqualificada e não recomendada. O saber local torna- se, diante do Estado colonial, um saber subalterno, ou até mesmo um não-saber, pois não é o oficial, reconhecido como legítimo e disseminado através do serviço de saúde da colônia.

A dicotomia oficial/não-oficial é definida pelo Estado, sendo este quem estabelece, pelo direito, no seio da multiplicidade do pluralismo terapêutico presente em Moçambique, uma distinção mais ou menos explícita entre o que é legal e o que é ilícito, senão mesmo ilegal. No caso da medicina, tudo o que é reconhecido como medicina oficial é alvo de apoio por parte do Estado. Toda medicina que não é reconhecida como “estatal” é tolerada, mas continua sendo mais frequentemente ignorada, porque pouco permeável a imposições e controle por parte da biomedicina (Meneses, 2005: 430).

A colonização e expansão territorial pelo império português já está em Moçambique, sob domínio do imperialismo colonial, contribuiu para que esse paradigma ganhasse corpo através da doutrina cristã por via de missionários católicos que se limitavam a dar o seu contributo com o trabalho prestado pelas freiras de certas congregações nos hospitais públicos, enquanto algumas igrejas ditas protestantes contribuiram na prestação dos cuidados de saúde como no caso da Missão Suíça (hoje igreja Presbeteriana) e a igreja Metodista Unida que instauraram clínicas e hospitais e distribuíram medicamentos às populações. As políticas coloniais de assimilação do nativo (ora tradicionalizado) permitiram a expansão e difusão da profissionalização médica e, com efeito, o banimento das práticas locais de tratamento e cura de doenças. Essas medidas serviam também para proteger os próprios colonos e para garantir que a mão-de-obra indígena estivesse sadia (Honwana, 2002 apud Fulane, 2009:23).

Durante quase duas décadas (no período entre 1975/89), a política socialista e neoliberal da FRELIMO tentou eliminar, a todo o custo, a autoridade tradicional (régulos, curandeiros, adivinhos) nas zonas libertadas durante a guerra da independência e no resto do território quando a guerra acabou, porque defendia que as autoridades gentílicas da era colonial agiram como intermediários ao serviço do regime colonizador. As principais críticas do Estado estavam relacionadas ao modelo de governação pela via da eliminação das autoridades tradicionais, por acreditarem que eles punham em causa os direitos humanos dos moçambicanos pelo seu comportamento violento, muitas vezes motivado e/ou validado por adivinhos, caçadores de

32 bruxos e/ou curandeiros, apesar das autoridades reconhecerem e legitimarem as populações rurais em quase todo o território nacional (Honwana, 2002; Meneses et al, 2003; West, 2009).

Nos primeiros anos da pós-independência, o Estado moçambicano opôs-se à utilização das medicinas tradicionais, justificando-se que era por se tratar de uma afirmação de divergências locais. Paula Meneses (2005) considera a sobrevivência das práticas de saúde tradicionais como expressão de uma oposição a uma modernidade exógena e sem raízes locais (Meneses, 2005:23). No Quinto Congresso da FRELIMO, em 1989, a proibição do curandeirismo tradicional foi revogada, e o Ministério da Saúde passou a dialogar de forma mais aberta com os curandeiros tradicionais, reconhecendo e legitimando essas práticas. Note-se que os doadores ocidentais, ligados ao projeto neoliberal de «descentralização democrática», desempenharam um papel importante na produção do discurso sobre as autoridades e curandeirismo tradicional.

Os doadores argumentavam igualmente que as instituições da autoridade tradicional podiam servir para conferir maior eficácia ao governo local na era do ajustamento estrutural pós-socialista. No seu entender, tais instituições eram instrumentos através dos quais os habitantes das zonas rurais poderiam gerir os seus assuntos e resolver os seus próprios problemas com poucas ou nenhuma despesa para o Estado (West, 2009:297-298).

Embora o Estado tivesse reprimido e desprestigiado a prática da medicina tradicional no auge da política socialista, os moçambicanos tinham continuado a consultar os curandeiros tradicionais, até porque, em muitos locais, essa era a única forma disponível de cuidados com a saúde num país em ruínas em consequência da guerra civil (E. Green, Jug, e Dgedge, 1993, 1994; Nordstrom 1998). No início da década da 90, o Estado tentou controlar esses terapeutas através da criação de associações que deram origem à AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique) em 1992. Os médicos tradicionais afiliados à AMETRAMO são controlados pelo Gabinete de Estudos da Medicina Tradicional (GEMT), num sistema de vigilância das suas práticas através da demonstração de competências, estes são legitimados, passando a ostentar o cartão e o símbolo receituário (Meneses, 2002:23). Os reformadores também classificaram os curandeiros tradicionais como elementos essenciais para a sociedade civil moçambicana revitalizada. West (2009:300-301), citando E. Green, reafirma que os curandeiros tradicionais moçambicanos eram detentores de formas caraterísticas de “saber local”

33 (ou de “saber indígena”), suscetíveis de complementar outros recursos no contexto do desenvolvimento neoliberal, e que “a criatividade e o talento de uma sociedade estão personificados nos seus sistemas de sabedoria indígena”

Tal como se verifica noutros contextos (Uganda, Nigéria, Brasil), também em Moçambique existe um modelo dominante de interpretação de doença e infortúnio, que serve de matriz a vários aspetos da vivência social e, particularmente, constitui a base do papel social dos praticantes da medicina tradicional, conhecidos pelo nome de “médicos tradicionais”, “curandeiros” ou pelo nome de tinyanga (sing. nyanga)8 como são normalmente chamados no sul

do país (Granjo, 2010). Esses terapeutas assumem um papel central, quer na prestação de cuidados de saúde, quer na regulação da incerteza e dos problemas sociais dos seus utentes. Através de quem as populações encontram soluções de várias incómodas e problemas que a biomedicina desconhece. De acordo com as teorias locais, os praticantes da medicina tradicional devem os seus poderes curativos, divinatórios e de eficácia ritual ao fato de serem possuídos por espíritos de pessoas falecidas, em regra, seus antepassados, que com eles formam uma simbiose profissional e ontológica (Honwana, 2000).

Existem, basicamente, quatro tipos de atores especializados no sistema de saúde: adivinhos, (fazem diagnósticos/adivinhação através de diversos sistemas divinatórios), curandeiros (tratam certas doenças através de diferentes tipos de técnicas e meios), médiuns (tratam certas doenças onde intervêm ativamente vários tipos de espíritos), fazedores de feitiço (induzem alterações de força). Existem outros atores importantes como os chefes tradicionais (considerados grandes curandeiros e feiticeiros) e chefes ou seniores de família (únicos consultantes dos peritos) (Fialho, 2003:126).

Os curandeiros/médicos tradicionais raramente traduzem os seus conhecimentos de medicina em práticas sociais que enfatizam as dicotomias omnipresentes do “espiritual” e do “natural” como causa da doença, tampouco sua práxis gira em torno dos debates sobre bruxaria e da existência ou negação dos “sistemas médicos” africanos encontrados em antropologia médica.

8 Tinyanga é o nome dado aos terapeutas, “médicos tradicionais” ou “curandeiros” no Sul de

34 Por sua vez, esses atores locais inserem-se nos sistemas tradicionais de saúde, outrora marginalizados, silenciados e ilegalizados. Apenas muito recentemente, o governo moçambicano decidiu reconhecer o sector tradicional e o seu valioso papel enquanto prestador de cuidados da saúde, graças à nova orientação ideológica partidária na declaração feita no 5º Congresso em 1989, quando o Partido no poder passou a ser estimulado pela OMS e UNICEF para à inclusão dos médicos tradicionais no SNS, com vista a capitalizar os recursos humanos para a promoção da saúde. Foi a partir de 1991 que os praticantes de medicina tradicional puderam ocupar de novo seus lugares e suas funções, não apenas como indivíduos, mas também como profissionais com legitimidade tradicional dentro de um contexto onde a medicina tradicional sempre coexistiu como parte do sistema híbrido de interação estabelecido, embora sujeita a fortes limitações aos seus campos de atuação (Fialho, 2003; Meneses, 2005).

Na Resolução n.º 11/2004 aprovada pelo Conselho de Ministros aos 2 de Março de 2004, é oficialmente autorizada a Política de Estratégia da Implementação da Medicina Tradicional na prestação de cuidados de saúde tradicional pelos profissionais da AMETRAMO ao abrigo da alínea e) do nº. 1 do artigo 153 da Constituição da República, com a prioridade de estabelecer laços de cololaboração entre a medicina convencional e tradicional na expansão dos cuidados de saúde de qualidade a toda população moçambicana, privilegiando as camadas mais desfavorecidas, na promoção da coloboração e comunicação, na harmonização e estabelecimento de parcerias entre os dois sistemas. Ainda nesse âmbito é preconizada a continuação dos esforços de pesquisa e valorização da Medicina Tradicional com vista à integração no Sistema Nacional de Saúde de práticas de saúde e de medicamentos tradicionais comprovadamente seguros, eficazes e de qualidade. Mais ainda, na ausência desses comprovativos, dever-se-á incentivar e apoiar a sua pesquisa9.

Paralelamente a este sistema de medicina tradicional, encontramos a biomedicina que também desempenha um papel crucial na vida de muitas pessoas, sobretudo para os que habitam nos centros urbanos e periurbanos. Importa referir que não é possível encontrar um único sistema de procura pela cura, mas sim a coexistência dos dois sistemas. Muitas vezes nesses contextos, a biomedicina constitui-se como uma alternativa de tratamento e cura, pois muitos preferem, em primeiro lugar, recorrer ao tratamento da medicina tradicional e, só mais tarde, optam pela

9 Para mais detalhes sobre Política de Medicina Tradicional e Estratégias de sua Implementação,

35 biomedicina nas instituições de saúde oficiais. Na ótica de Fialho (2003), o sistema de saúde em Moçambique integra dois subsistemas, o da medicina convencional e da medicina tradicional. Nesta última, articula-se a utilização de fármacos com a (re)ativação de relações sociais e de representações que o tornam num complexo campo de interpretação, tanto no domínio dos diagnósticos, como no das terapias (Fialho, 2003:122). O primeiro reclama-se de uma legitimidade científica do conhecimento experimentado da físico-química, orgânico, e o segundo reclama-se de uma legitimidade que se assenta na sua eficácia simbólica espiritual, social e físico-química (Fialho, 2003:123).

Em Moçambique, pode-se considerar que a medicina tradicional constitui a primeira opção terapêutica. Várias razões concorrem para tal fato, uma delas, por ser a prática anterior à divulgação da biomedicina. Outra razão evocada é o costume cultural, por existir um elevado grau de confiança nas terapias, e porque, na família, pode haver um praticante da medicina tradicional que facilita os processos de tratamento, aliado à incipiência do sistema de saúde legal, onde as Unidades de Saúde, os profissionais e os meios tecnológicos ainda estão aquém da demanda nacional.

O grande problema que ainda persiste na prestação de cuidados de saúde de primeira referência em Moçambique deriva da persistência na interpretação que se faz do processo de cura biomédica, baseada em um conhecimento objetivo dos fenômenos reais de que esta de fato funciona, enquanto a medicina tradicional per-si não seria funcional porque “não é uma realidade objetiva” (Evans-Pritchard, 1987: 63).

No contexto de Maputo, verifica-se que as conceções do estado de saúde e/ou doença durante o processo gestacional são predominantemente entendidas como consequências dos efeitos de desordens nas relações entre pessoas ou entre pessoas e seres sobrenaturais (Evans- Pritchard, 2003:125). A solução, muitas vezes, passa por uma conduta comportamental considerada apropriada para cada situação diária, mas também pela prevenção, tratamento, e proteção contra o azar potenciador de infortúnio.

Para melhor compreensão de como se configura o esteio social e cultural de soluções terapêuticas em Maputo, é necessário abordar as práticas de pluralismo médico e terapêutico em Moçambique. Tais práticas incluem tanto o uso de medicamentos farmacológicos quanto a medicação baseada em procedimento de toma de infusões à base de plantas, vacinas curativas e protetoras, fembar (ato de tirar o mau-espírito do corpo vivo-enfermo por meio de um ritual com

36 dia e hora marcados por intervenção de um curandeiro), oferenda de animais vivos para serem sacrificados e o seu sangue utilizado para banhos terapêuticos, rezas invocando o nome dos antepassados do paciente, uso de cordões amarrados em partes específicas do corpo (tornozelos, cintura, pulsos, e pescoço), fumaceira da casa com base num cocktail de medicamentos. Outras técnicas relacionadas incluem a possessão espiritual, a consulta de búzios e ossos ou práticas como a abstinência sexual durante um determinado período. Os praticantes podem ser aprendizes/profissionais da medicina considerada não-convencional, tais como os tinyanga (curandeiros), ou pessoas que detenham conhecimento acumulado pela experiência, como ocorre no caso das parteiras tradicionais10.

As terapias, de uma forma geral, integram dimensões físico-químicas, simbólicas, sobrenaturais e sociais, de forma tão interligada que, na maior parte dos casos, não é possível distingui-las, nem conhecer as fontes de sua eficácia, uma vez que a cura implica concomitantemente a supressão das causas e dos sintomas (Adler e Zempléni, 1972; Devereux, 1997; Fialho, 2003). Porém, existem linhas teóricas que continuam a fomentar a discussão sobre as causas e fatores que influenciam as perceções dos indivíduos na escolha entre as várias opções terapêuticas disponíveis num determinado contexto sociocultural, e como cada uma destas é validada (Rivers, 1924; Bom, 1977; Kleinman, 1980; Hardon, 1991; Van Der Geest et al, 2002; Thornton, 2010).