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Capítulo I. Revisão da Literatura e Aspetos Conceptuais

1.4. O surgimento da antropologia médica

Como vimos no tópico anterior, a definição de doneça pode ser interpretada em múltiplas dimensões que interelacionam-se entre si dentro de um sistema cultural. A história da medicina4 mostra que essas significações têm sido diferentes ao longo dos tempos, constituindo distintas narrativas sobre o corpo e os processos de saúde e doença. O modelo biomédico atual baseia-se na orientação científica do séc. XVII, cujas ideias consistem numa visão mecanicista e reducionista do homem e da natureza, que surgiu quando filósofos como Galileu, Descartes, Newton, Bacon e outros conceberam a realidade do mundo como uma máquina. Essa conceção do mundo físico foi generalizada aos seres vivos (Mayer,1988 apud Albuquerque e Oliveira 2002:3).

Assim, tal como se faz com as máquinas, estudam-se os seres vivos, desarticulando as suas partes constituintes (os órgãos) e analisando-as separadamente, considerando-se que cada uma delas desempenha uma determinada função observável. O conjunto, que representa o organismo, é explicado pela soma das partes ou das propriedades (Mayer,1988 apud

16 Albuquerque e Oliveira 2002:3). Nessa perspetiva, Descartes concebeu também o corpo humano como uma máquina, comparando um homem doente a um relógio avariado, e ao homem saudável, a um relógio em bom funcionamento. A ideia de um mundo concebido segundo um modelo mecânico e a utilização da metáfora do relógio para o caraterizar constituem a metateoria que justifica as ciências da natureza. Essa visão mecanicista do mundo, tendo sido compartilhada pelos médicos e fisiologistas mais célebres da época, fez com que o corpo humano fosse conceptualizado como um grande engenho cujas peças se encaixam ordenadamente e segundo um processo racional (Albuquerque e Oliveira, 2002:5).

O dualismo corpo-mente está relacionado com outras oposições conceptuais dentro da epistemologia ocidental, como aquelas dicotomias entre natureza e cultura, paixão e razão, indivíduo e sociedade, que pensadores sociais tão diferentes como Durkheim, Mauss, Marx e Freud entendiam como sendo contradições inevitáveis, muitas vezes, dissolúveis das categorias de natural e universal.

Numa primeira fase, os antropólogos e os trabalhadores da área da saúde procuraram compreender as práticas ligadas aos cuidados de saúde na sua própria cultura. No entanto, a educação médica começou a ser restrita aos limites do hospital em consequência do desenvolvimento da área clínica e do confinamento dos doentes em enfermarias de observação (Foucault, 1994). Após o desenvolvimento da formação clínica do hospital, a fonte básica do conhecimento, na medicina, era a medicina experimental, hospitalar e laboratorial. Esses fatores juntos significam que, ao longo do tempo, a maioria dos médicos abandonou a etnografia como uma ferramenta de conhecimento. Contudo, a etnografia permaneceu durante grande parte do século XX como uma ferramenta de conhecimento dos cuidados de saúde primários, na medicina rural e na saúde pública internacional.

No início do século XX dois médicos e pesquisadores britânicos, C.G. Seligman e W.H R. Rivers (1924) realizaram pesquisas médicas (ainda não associadas à Antropologia), com o objetivo de desenvolver conceitos de doença e terapias dos povos ilhéus da Melanési; o antropólogo Forrest Clements (1932) estudou as ideais sobre as causas da doença e da infelicidade; o estudo sobre curandeiros xamânicos foi destacado nos trabalhos académicos de Waldemar Bogoras (1904-1909) e Mircea Eliade (1964), bem antes do alvorecer da antropologia médica. O termo antropologia médica foi empregue pela primeira vez em 1955, num trabalho académico intitulado The colletion Health, Culture, and Community: Case Studies of Public

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Reaction to Health Program, editado por Benjamin Paul, numa análise do contexto cultural da

medida de melhoria da saúde (Janzen,1999:23).

A divergência profissional da antropologia e da medicina nunca foi uma divisão completa (Comelles, 2000: 41-75). A relação entre as duas disciplinas manteve-se constante durante o século XX, até ao desenvolvimento da antropologia médica moderna nos anos 1960 a 1970. É interessante notar que um grande número de antropólogos médicos do século XX teve a sua formação primária em medicina, enfermagem, psicologia e psiquiatria, como por exemplo, W.H.R. Rivers (1907), Robert I. Levy (1971), Gonzalo Aguirre Beltrán (1963), e Jean Benoist (1993), Arthur Kleinman (1995), Josep Comelles (2000), Didier Fassin (2007), Paul Farmer (2009), entre outros. Alguns deles atuaram tanto em papéis clínicos quanto antropológicos, outros vieram da antropologia ou das ciências sociais, como William Caudill (1952), Gilles Bibeau (1964), Tullio Seppilli (1989), e Ronald Frankenberg (1992), etc.

O termo antropologia médica passou a ser utilizado pelos antropólogos como um rótulo alicerçada à pesquisa empírica e à produção do conhecimento teórico para os processos sociais e representações culturais de saúde, doença, práticas de enfermagem e cuidados a eles associados. O estudo de Murdock ([1967] 1980), que se pretende universal sobre a distribuição de padrões culturais, intitulado World Ethnographic Survey and the Human Relations Area Files, serviu de base para aceitação do modelo e disposição de ideias sobre causas das doenças, métodos de cura e os papéis dos praticantes.

Note-se que, na tradição francesa, é utilizado o termo “antropologia da saúde”, que recobre os mesmos campos da antropologia médica. Segundo Bonte e Izard (1991:385), os termos “antropologia médica” e “antropologia de saúde” não se diferem no significado, mas no seu emprego, sendo o primeiro utilizado pelos antropólogos das universidades norte-americanas, e o segundo, pelos antropólogos das escolas francesas. Ambos englobam noções conceptuais e técnicas metodológicas de cunho interpretativo e interventivo balizado nos esquemas de referencial simbólico através de meios materiais, pensamento e elementos culturais – para compreender e dar resposta às experiências, sejam elas individuais ou coletivas, aos episódios de doença e infortúnios. Por outras palavras, a antropologia médica/saúde é o sistema de atenção que abrange todos os componentes presentes numa sociedade relacionados à saúde, incluindo os conhecimentos sobre as origens, causas e tratamentos das doenças, as técnicas terapêuticas, seus praticantes, os papéis, padrões e agentes em ação nesse contexto (Langdon e Wiik, 2010:178).

18 Durante as décadas de 60 e 70, o interesse da antropologia médica era desenvolver uma estratégia de abordagem interventiva de ação prática baseada num modelo conceptual e metodológico enquanto ciência social, que refletisse sobre as questões ligadas à saúde e à doença, num contexto de pluralidade das diversas disciplinas, sendo este entendido como o caminho para melhor abordar os problemas da saúde pública. Nesta perspetiva, passou-se a valorizar a centralidade da pessoa, enquanto sujeito cultural e social; o discurso nos processos relativos à prevenção e promoção da saúde e à prestação de cuidados; e, por fim, a transmissão e contribuição da antropologia médica, como ciência e como práxis, nas suas duas correntes, filosófica e cultural. A concepção filosófica da relação entre indivíduo e cultura torna-se possível a partir de uma verdadeira integração da dimensão contextual na abordagem dos problemas de saúde. A primeira é focada em interpretações, individual e grupal que estruturam a busca para a manutenção da saúde, e a segunda, em concepções e comportamentos de prevenção ou de risco sobre a utilização da vasta gama de sistemas terapêuticos existentes no contexto, pois estabelece a ligação entre as formas de pensar e agir dos indivíduos dentro do grupo social (Geertz, 1973). Das diversas contribuições da antropologia médica, a mais notável é a noção de pessoa humana, enquanto sujeito, bem como o realçar da importância dos fatores culturais, sociais e históricos, na consideração do binômio saúde-doença, para se poder compreender vivências e representações de saúde e doença, do sofrimento e da morte (E.H Goodenough, 1963; Kleinman, 1968; J. A. Clifton, 1970; E. H Spicer, 1977; M. Shapiro, 1983)5.

Atualmente, a antropologia médica é definida como disciplina incluída nos estudos sobre a saúde global. As principais contribuições da antropologia médica para os estudos de saúde global são as seguintes: (a) estudos etnográficos das iniquidades em saúde, em política e contextos económicos; (b) análise do impacto local dos conhecimentos e tecnologias globais; (c) interrogatório, análise e crítica dos programas e políticas de saúde internacional e (d) análise das consequências para a saúde da reconfiguração das relações sociais de desenvolvimento internacional da saúde (Janes & Corbett, 2009:167). Verificamos que a antropologia médica é transversal a diferentes temáticas e perspetivas de pesquisa que, ao longo dos últimos quarenta anos, vêm sendo largamente problematizadas e conceptualizadas por vários autores (Kleinman,

19 1980, 1988, 1991; Bibeau, 1992; Good, 1994; Helman, 1994; Young, 1995; Browner & Sargent, 2007; Langwick, 2011) em diferentes contextos sociais.

Realçamos aqui algumas das linhas de pesquisa que influenciaram o presente estudo: a relação entre o local e o global; os estudos sobre género; a definição do corpo significante e a atualidade do pluralismo médico. No seu ensaio, Cultural Studies of Biomedicine: An Agenda for

Research, Good (1995) defende que os estudos culturais da biomedicina contemporânea devem

focar-se na dinâmica das tensões e trocas entre a tecnologia e prática do conhecimento dos mundos locais e globais. Ao assumir esse posicionamento, a autora presume que o ensino da prática da medicina e da produção de competência médica deveria estar alicerçado a conhecimentos, ética e padrões de práticas em domínios culturais e profissionais, científicos e populares, globais e locais (Good, 1995:463).

Para Nancy Scheper-Hughes e Margaret Lock (1987), o corpo é um artefacto simultaneamente físico e simbólico, já que ambas as caraterísticas são, naturalmente e culturalmente, produzidas e ancoradas num momento histórico particular. Para as autoras, o problema da antropologia médica reside nos vários conceitos quem têm sido privilegiados no pensamento ocidental, os quais determinaram as formas como o corpo foi percebido pela biomedicina científica e pela antropologia médica, focadas nas falácias do modelo biológico pragmático relacionado com a conceptualização do corpo. Essa visão baseia-se no pressuposto dualista cartesiano que separa a mente do corpo, o espírito da matéria, e o real (isto é, visível, palpável) do irreal. Esse tipo de reducionismo biológico é, no entanto, rejeitado pela maioria dos antropólogos contemporâneos (Kleinman 1980; Logan 1983; Browner e Sargent 1996; Martin 1987; Davis-Floyd e Sargent, 1997; Meneses 2000; Chapman 2010), que coicidentemente defendem a pertinência da relevância das fontes culturais dessas oposições no pensamento das sociedades não-ocidentais, os quais desenvolveram epistemologias alternativas que tendem a conceber as relações entre entidades monísticas semelhantes. Esses autores ressaltam ainda a importância de se ter em mente que a epistemologia ocidental é apenas um entre muitos sistemas para se obter conhecimento sobre as relações mantidas entre a mente, o corpo, a cultura, a natureza e a sociedade.

As questões relacionadas com as problemáticas do género na antropologia médica têm merecido destaque crescente nos trabalhos etnográficos. O género é um conceito básico nos estudos sobre relação médico-paciente (Browner & Sargent, 2007; Van der Geest, 2002), e nas

20 políticas de ação práticas de assistência a saúde materno e infantil (Chapman 2010). De uma forma geral, procura-se analisar o componente cultural da doença, além da experiência e o ponto de vista do doente e dos familiares, como também, as interpretações e as práticas populares e suas influências sobre a prevenção, o diagnóstico e o tratamento (Caprara et al, 1999:649).

Uma outra vertente da antropologia médica pode ser analisada na obra de Stacey Langwick (2011), intitulada Bodies, Politics, and African Healing: The Matter of Maladies in

Tanzania, em que a investigação aborda as práticas dos curandeiros na Tanzânia relativas à SIDA

e à malária. A autora revela como os curandeiros são geradores de novas formas de hibridismo terapêutico, ao incorporarem objetos da medicina moderna e de entidades tradicionais no tratamento de pacientes, transcendendo, deste modo, os dualismos entre tradição e ciência, cultura e natureza, crença e conhecimento. Esse conceito identifica um modelo de prática médica pautado na lógica da oposição ao modelo biomédico hegemônico, contudo, como definição polar, não foi feita, simplesmente, para contradizer a biomedicina.