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Capítulo V. Apresentação e discussão dos resultados

5.1.2. Medicina tradicional

O segundo grupo é composto por profissionais praticantes da medicina tradicional autónomos (os curandeiros, parteiras tradicionais, vendedores de medicamentos tradicionais e pastores/profetas de igrejas), que participam ativamente na atividade da prestação de cuidados de saúde ligados à reprodução feminina. O reconhecimento da ação prática destes enquanto profissionais, não procura reivindicar um direito particular, mas, pelo contrário, visa à afirmação da multiplicidade de poderes e valências situacionais a nível social, tendo assim estes o privilégio de poder agir sobre a ação maléfica de outros, o que lhes confere um poder místico.

As suas performances profissionais são desempenhadas em diferentes espaços físicos que incluem a própria casa (da curandeira ou do cliente), os locais públicos (mercados), a casa das pacientes e as igrejas. Tanto a curandeira como o vendedor de medicamentos tradicionais estão reconhecidos e certificados, competindo para ela à AMETRAMO e a este último ao MISAU, como sendo agentes capazes de manipular a sua farmacopeia. A estes é conferido uma aura de respeitabilidade pelos processos clínicos que dominam, faculdades divinatórias e recursos para resolver várias dificuldades da vida. Possuem ainda o segredo de algumas plantas medicinais

162 e de outras específicas para determinados problemas, além de uma longa prática que lhes dá, por vezes, bom sucesso na cura de certas enfermidades.

O processo de cura (e aqui há que distinguir tratamento – meios de resolver o problema, e a cura em si) é duplo, quer pela ajuda para voltar a restabelecer o equilíbrio físico, quer no lado psicológico e emocional, visando a ultrapassar as sanções que caíram sobre o indivíduo, fruto da não observância das normas estabelecidas (Meneses, 2000:16).

Para adquirir e manipular os medicamentos tradicionais, a curandeira, tal como o vendedor formal de remédios tradicionais, precisam de realizar três rituais que têm como objetivo garantir a eficácia das plantas, proteção no percurso e o acesso das mesmas. É por essa razão que estes profissionais nunca nos revelaram em que consiste o ritual, simplesmente esclareceram que o mesmo é realizado à saída de casa, à chegada na mata e outro ainda no regresso à casa. A explicação para este comportamento foi contextualizada por Fialho (2003:128), no sentido de haver atividades mágicas que só podem ser eficazes se não forem reveladas (conhecidas, explicadas) a ninguém.

Os medicamentos são na sua maioria provenientes da flora e fauna do país e das vizinhas África do Sul e Tanzânia. A maior parte desses elementos é constituída por raízes, cascas, vegetais, plantas, sumos, flores, folhas (extraídas na mata, são cortadas ou esmagadas e, nalgumas vezes, misturadas com outros medicamentos) e árvores ligadas à terra ou à água do mar ou doce (fervida, ou aquecida)126. Também é possível encontrar à venda produtos de origem animal com implicações e significações simbólicas que se acredita possuírem poderes curativos, como é o caso da gordura da jiboia e a matximba ya ndlopfu (fezes de elefante) que não possuem efeitos físico-químicos.

O vendedor de medicamentos tradicionais particulariza que não possui nenhum método de diagnóstico para saber as causas da enfermidade da cliente que busca os seus serviços, e, como artifício, este precisa que a paciente descreva os sintomas do mal-estar. Só a partir daí, ele

126 Muitos cuidados implicam ação com a referida água, que deve ser bebida ou inalada,

normalmente ou por fumigação, em contos de transpiração total por «sauna», com o doente aspirando o fumo e o vapor de água fervente num lume aceso, sob uma coberta gerando um fluxo de líquidos que são expulsos pelo suor e outros absorvidos. Essa água pode ser ainda utilizada para lavar ou esfregar o corpo do doente. Por vezes esses medicamentos podem ser comidos em papa de cereal ou ainda utilizados por vacina, por inoculação subcutânea (Fialho, 2003:128).

163 poderá, através dos seus domínios de conhecimento, decidir sobre os medicamentos indicados para aquela determinada situação. A venda do medicamento é acompanhada da explicação do procedimento e modo correto da toma do mesmo, tendo em conta as regras a serem seguidas, como o comprimento dos horários, os locais da casa indicados para a realização do ritual, as restrições e proibições (sexuais, alimentares, comportamentais). O preço do medicamento varia de acordo com o valor atribuído às propriedades do remédio, pela sua escassez, como também na quantidade adquirida durante o tempo em que irá decorrer o tratamento. Porém, de acordo com o vendedor, os custos para aquisição dos medicamentos vária de 150 a 300127 MZN, mas este alerta para o fato destes valores por vezes serem mais levados.

A curandeira usa o método de adivinhação ao consultar o tihlolo (conjunto de ossos, pedras, moedas, conchas, sementes) para saber a natureza das causas da doença e assim escolher a melhor medicação a prescrever para sua paciente. O valor da consulta não ultrapassa os 200 MZN (o equivalente a 4 €). De um modo geral não é possível determinar o preço dos medicamentos pelo fato de este ser acrescido no somatório do valor total a pagar no final do tratamento128. Por outras palavras, o curandeiro nunca vende o medicamento em separado, este é sim incluído ao pack integral de todo o tratamento.

Para além dos métodos diferenciados do diagnóstico da doença, o outro aspeto que distingue estes dois provedores farmacológicos em termos de atendimento na prestação de serviços tem a ver com as disparidades das composições dos cocktails de medicamentos (quantidades e variedades) e a duração da ingestão dos medicamentos. A aquisição dos diversos medicamentos comercializados nos espaços públicos do mercado farmacológico tradicional não obedece a critérios de proibição de quem pode ou não os adquirir, desde que a pessoa possa custear o valor do produto pretendido, ele pode ser vendido a qualquer um.

127 O equivalente em euros em Portugal a 150 MZN = 3.61 cêntimos e 300 MZN= 6.12 cêntimos.

Base: 1€ = 49 MZN

128 Os valores da consulta, os medicamentos e o tratamento podem variar de 1500 a 4000 MZN (o

equivalente em € = 30,61cent. e 81, 63 cent.) de acordo com a gravidade e profundidade do problema. Havendo situações em que a curandeira precisa fazer várias intervenções na mesma pessoa em dias diferentes.

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Figura 5.5. Locais de aquisição de medicamentos tradicionais, a banca (quiosque) do vendedor e a casa da curandeira (KaTembe).

A parteira tradicional entrevistada tem vinte anos de atividade tendo, no seu historial, pelo menos vinte e seis partos feitos, os quais, segundo a mesma, foram bem-sucedidos e caracterizaram-se pela ausência de ocorrências de perturbações que poderiam terminar em óbito, quer da mulher-mãe a quem ela prestou assistência, ou das crianças a quem ajudou a trazer ao mundo. Os seus serviços muitas vezes são solicitados quando o trabalho de parto já está em curso; no entanto, ela assegura que, se notar que a parturiente ainda está no estágio inicial do trabalho de parto e possuir as condições favoráveis para sua deslocação até à US mais próxima, ela própria se encarrega de escoltá-la até à maternidade local. Apesar da segurança e confiança nos seus métodos, ela é movida pela convicção que a mãe e o filho terão o atendimento hospitalar necessário e o apoio caso ocorra uma emergência devido à demora do trabalho de parto ou decorrente de hemorragia do pós-parto.

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Figura 5.6. Parteira tradicinal explicando como executa os partos na esfera doméstica