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Práticas e representações em torno do nascimento da criança

Capítulo I. Revisão da Literatura e Aspetos Conceptuais

1.11. Práticas e representações em torno do nascimento da criança

Na maioria dos grupos étnicos do sul de Moçambique a criança é um ser que representa da mesma forma que os antepassados um papel importante dentro do núcleo famíliar. Ela é a expressão da vontade de continuidade da vida por parte dos antepassados. É o elo de ligação entre os vivos e os mortos e a garantia de continuidade do grupo, porque sucede a chefia das unidades domésticas e encarrega-se do culto em memória dos antepassados: “os filhos dão estatuto: quanto mais filhos, mais aliados, mais vida social” por serem a garantia da produção das unidades de produção (Loforte, 2003:201).

O nascimento de uma criança é o acontecimento mais importante para uma aldeia e/ou unidade familiar, e o seu crescimento e desenvolvimento são acompanhados por uma série de cerimónias que marcam a passagem de um ser do ‘outro mundo’ para o ‘mundo dos vivos’ (de acordo com as crenças desses grupos). A criança também representa um veículo indispensável para a manutenção e continuidade do clã. O desenvolvimento da criança é pontuado por ritos de iniciação que constituem a base de uma aprendizagem sistemática dos usos e costumes e da sabedoria do grupo.

Henri Junod (1917) descreveu, no seu denso trabalho etnográfico, A Vida de uma Tribo

Sul-Africana, sobre a evolução do indivíduo, partindo do dia do seu nascimento até á sua morte,

demostrando de forma pormenorizada como o nascimento de uma criança está intrinsecamente ligado à conduta moral e social dos seus pais, mais precisamente, ao comportamento sexual de sua mãe. Assim, o autor categorizou os tipos de nascimento de acordo com o seu grau de dificuldade, quais sejam: nascimentos prematuros, nascimentos protraídos e nascimentos ilegítimos. No primeiro caso, a criança nasce sem que haja nenhuma transgressão sexual

53 associada ao fato, enquanto nos dois últimos casos, o nascimento é para os Tsongas (do sul do país) a prova que a criança não é legítima. Conforme refere Junod:

Esta convicção é tão forte que quando uma mulher sabe que a criança que vai dar à luz não é filha de seu marido (nuna) mas de um amante (mbuye) confia isso secretamente à parteira principal de maneira a evitar as dificuldades de um parto laborioso, visto ser tabu ter uma “criança adulterina” pelo que encobrem o fato: o contrário causaria à mãe sofrimento indiscritíveis (Junod, 1917:39).

Para a grande maioria dos povos do Sul de Moçambique, a escolha do nome da criança é feita após o seu nascimento, havendo quatro maneiras de fazê-la:

 Geralmente no campo (áreas rurais), os pais dão aos seus descendentes o nome de um chefe, como por exemplo: Dabula, Mazula, Machel, Tanganhyka, etc., por uma questão lisonjeira e de vaidade, mas tal comportamento não é exclusivo das áreas rurais, nas cidades podemos encontrar crianças com nomes de dirigentes e de figuras públicas nacionais e internacionais, como são os casos dos nomes: Chissano, Guebuza, Kadafi, Obama, etc.;

 A atribuição de nomes da criança pode ser feita por via de “consultas aos ossos” de modo a saber-se qual antepassado irá atribuir o seu nome a criança;

 Por alguém da família que ainda esteja no ‘mundo dos vivos’ pode pedir licença para dar o seu nome ao recém-nascido, mas geralmente esse privilégio é concedido ao viajante que se encontre por acaso na aldeia naquela ocasião. Junod (1917) explica que esse fato estabelecerá um parentesco especial entre essa pessoa e a criança, parentesco que se aproxima ao de um padrinho para com o seu afilhado, semelhante à lógica do papel do padrinho no batismo católico.

Um outro modo de atribuir nome a criança é a procura de qualquer fato relacionado com as “circunstâncias em que se realizou o nascimento”, como, por exemplo: se o lugar de nascimento da criança for debaixo de uma árvore, a ela será atribuído o nome dessa árvore; se, durante o longo período de gestação, a mãe fez uso contínuo de algum tipo de alimento ou bebida, o nome da criança será associado ao tal produto; e se a mãe deu à luz enquanto vinha ou

54 ia a algum lugar, a criança terá o nome de Ndlelen, isto é “no caminho”, “na estrada”, etc., (Junod,1917:38).

Entre os Macondes do norte de Moçambique, à semelhança dos povos do sul, o nome do recém-nascido só lhe é atribuído após o seu nascimento. “Em geral, ao primogénito o nome do avô ou avó paternos, e aos filhos seguintes os nomes dos avós ou de tios maternos, ou, eventualmente, de qualquer parente já falecido há mais de um ano. E o recém-nascido só poderá ir para fora de casa depois de cair o cordão umbilical e passar pela cerimónia chamada lítio18 que geralmente é realizada por mulheres.

No lítio, a criança recebe uma fita de pano, nkova, ou de missangas, à volta de pescoço e da cinta, e algumas também nos pulsos e tornozelos. Se a saúde periga, ou se receiam que qualquer mal possa advir, colocam-lhe certos amuletos que a protegerão do mal (Dias, 1970:151). Com efeito, a criança é considerada um ser frágil e que pode ser alvo de mau-olhado. Esta consiste em alguém enviar um pensamento invejoso, ciumento ou avarento, que parece inofensivo, mas é possuidor do poder de atingir negativamente a pessoa, o animal, a árvore e o objeto desejado. A má sorte é considerada como sendo o resultado causado pela inveja. No folclore, é comum a associação do mau-olhado ao efeito desidratante “dry” sobre sua vítima. Acredita-se que o seu efeito positivo causa a perda de líquidos “wet” do corpo tais como: vómitos, diarreia, febres, falta de apetite, crise de choro (em crianças), a secagem do leite de mães que amamentam. O mau-olhado não é necessariamente considerado intencional ou associado com bruxaria ou feitiçaria. Segundo Scheper-Hughes e Lock (1987), nas sociedades tementes à feitiçaria, por exemplo, muitas vezes há uma preocupação com a disposição dos próprios excrementos, do sangue, do cabelo, das peças de roupas íntimas, e da própria placenta, as autoras chamam esse fenómeno de uma equação entre vigilância social e corporal.

Na perspetiva de Dundes (1981), a crença original é a de que qualquer pessoa pode prejudicar filhos, gado, árvores frutíferas ou qualquer evidência de prosperidade, só de olhar para os despojos, isso implica que um olhar se manteve por muito tempo sobre o cobiçado objeto, pessoa ou animal. Fazendo uma analogia às culturas do sul de Moçambique, pode-se perceber a existência de um princípio rigoroso, aprendido na esfera privada, que consiste em nunca expor a

18 “Nesta cerimónia cortam à criança o cabelo à volta, em redondo. A mãe é rapada da mesma

maneira. Depois deitam à criança um pouco de óleo de rícino nos ouvidos e na boca, para que ela ouça e fale bem. Para mais detalhes, vide Dias, J e Margot, D (1970).

55 criança à esfera pública antes que a ferida do cordão umbilical esteja devidamente curada, também não se pode tecer comentários acerca de um bebé recém-nascido. A prática de “elogiar” crianças acabadas de nascer é socialmente reprimida, e deve ser evitada por ser considerada a via catalisadora capaz de causar danos ao bem-estar físico da criança.

Numa atitude de defesa e proteção do infante, a mãe é orientada a permanecer confinada dentro da esfera privada até a queda do cordão umbilical, que, em média, pode decorrer até ao sétimo dia, período chamado de busahana, o qual terminará por uma cerimónia especial relativa à primeira saída da criança, caraterizada pelo rito da “panela partida” (Junod, 1917:40) ou como é conhecido nos dias de hoje: “tirar bebé” ou “amarrar a criança19”, de maneira a evitar a exposição e o contato da criança com o mundo exterior, carregado de forças nefastas prejudiciais à própria criança. Ainda assim, esse não o único cuidado que se deve ter com o recém-nascido, geralmente existe o receio de que a “pessoa quente” (homem ou mulher acabado de ter relações sexuais, ou as mulheres menstruadas) possa afetar o bem-estar físico da criança se houver algum contato físico.A conservação da atitude de evitar o contato da criança com indivíduos fora do seu habitat familiar e a exposição “precoce” ao mundo exterior funciona como fator estruturante da eficácia simbólica da norma cultural que, de forma inconsciente, está relacionada com os cuidados de limpeza e higienização dos corpos. Arriscaríamos dizer que a manutenção desse modelo de conduta sociocultural está intrinsecamente associada a fatores endógenos e exógenos de interpretação sobre a vulnerabilidade do recém-nascido, que está naturalmente sujeito a contrair doenças pela “ausência” de defesas imunitárias imprescindíveis para o seu estado de bem-estar. E, portanto, essas proibições servem de reguladores sociais que gerem os instintos fisiológicos dos indivíduos condicionando os seus corpos à prática da abstinência sexual pós-parto, com argumentação da necessidade da passagem do período temporal (3 meses) considerado biologicamente plausível a retomar a vida sexual, e que na prática serve como mecanismo de controlo das taxas de natalidade pelos organismos que gerem tais competências.

19 O ato de tirar o bebé consiste numa cerimónia que geralmente é realizada na casa dos avós

paternos e é tradicionalmente feita pelas mulheres mais velhas da família. O ponto alto culmina com a oferta da primeira capulana (peça de tecido tida como vestimenta típica cerimonial em Moçambique) quando a criança é embalada ou carregada às costas (neneka).

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