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CAPÍTULO 1 O direito ao lúdico e ao bem-estar da criança numa perspectiva de humanização

1.5. Brincar ao longo da vida

“Brincar pode marcar a diferença Entre uma criança que se aborrece

E uma criança que floresce. Brincar pode também marcar a diferença entre Um adulto que sofre com a rotina do dia-a-dia E outro que fica feliz por poder partilhá-lo com ela”.17

A animação hospitalar envolve não só a criança, mas também a promoção do bem-estar e da alegria dos adultos, de que é exemplo o trabalho exercido pela associação ONV, com adultos hospitalizados. Para além disso, é importante reflectir na importância da atitude lúdica promovida na infância, realizada, neste caso, através da animação hospitalar e, especificamente, do brincar, para o bem-estar, capacidade de gerir dificuldades e experienciar uma atitude positiva perante a vida, também quando adulto, pois só com prazer a vida tem sentido e proporciona alegria. Nesse sentido, aprender, investigar e trabalhar com prazer torna-se um divertimento e não apenas um esforço: “quem corre por gosto não cansa”, diz a sabedoria popular. (Ferland, 2006)

De seguida, alargaremos o âmbito da reflexão sobre o conceito de brincar, considerando- o essencial na vida das crianças, mas também na vida das pessoas de todas as idades. O tema a abordar será “brincar ao longo da vida”, de modo a dar conta da atitude lúdica promovida pela animação hospitalar junto das crianças, mas sem ignorar que constitui também um direito do adulto, quando doente e não só.

“O Homem é um animal lúdico, o mais lúdico de todos. E brincar é uma actividade saudável e útil, quer no plano físico quer no mental. Brincar desintoxica e distrai, repousa e diverte; vale dizer, livra do que está a mais – toxinas, preocupações, dor e angústia -, repara o

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desgaste e recompõe o equilíbrio, acrescenta o prazer e aumenta o bem-estar; isto é, dissolve o desprazer e mal-estar e conquista gozo e alegria. É o melhor antidepressivo e ansiolítico; o mais barato, natural e saboroso; o mais reconfortante e sem efeitos colaterais adversos – o remédio ideal, o tónico perfeito. […]”. (Ferland, 2006:15) Portanto, a actividade lúdica não é exclusiva das crianças, mas sim uma característica por excelência da espécie humana, atravessando, como tal, todas as idades. Não porque no fundo da alma adulta resida ainda a criança que se foi – como alguns autores teorizam – ou que persista enquanto a vida dura uma parte infantil da mente – segundo dizem outros –, mas porque o espírito humano é assim: precisa de brincar. O jogo é a sua forma privilegiada de operar, o seu instrumento de construção e cultura, a sua ferramenta para transformar a natureza, o seu processo de interrogar o real e criar novidade. (Ferland, 2006) Além disso, a actividade lúdica, ao envolver crianças e adultos, promove relações intergeracionais propícias à convivência e ao bem-estar. (Ferreira, 2009)

Na maioria das sociedades industrializadas que apostam quase exclusivamente no desempenho e na produtibilidade, é muito valorizada uma utilização eficaz do tempo: não se pode perder tempo. Consequentemente, nesta sociedade preocupada com o tempo, brincar tem por vezes má reputação, sendo visto como uma actividade fútil e estéril, ou seja, como uma perda de tempo, dado que está enraizada a ideia de que brincar nada produz de útil. Resumindo, a nossa sociedade valoriza pouco o brincar da criança, uma vez que não visa nem o desempenho, nem uma aplicação eficaz do tempo. (Ferland, 2006) E, se é pouco valorizado o brincar na infância, menos valorizado é o brincar na idade adulta, à qual está associada expressão “vida activa” que corresponde ao trabalho.

Mas, num período de crise social e económica pode recorrer-se a uma ferramenta, que nos oferece a capacidade de sermos criativos, gerir conflitos e ultrapassar dificuldades, que promove a nossa auto-estima e segurança, e que se chama brincar. De acordo com o Artigo XXIV da Declaração dos Direitos Humanos, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 10 de Dezembro de 1948, toda a pessoa tem direito a repouso e lazer,

inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.18

18 Declaração Universal do Direitos Humanos, Disponível em

http://www.portugal.gov.pt/pt/GC18/Portugal/SistemaPolitico/dudh/Pages/DeclaracaoUniversaldosDireitosHuma nos.aspx

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O lazer traz, subjacente a si, práticas que proporcionam o desenvolvimento completo do indivíduo, sendo um tempo social no qual se exprimem funções de recuperação que libertam a fadiga, funções de divertimento que libertam o tédio e funções de desenvolvimento que podem resgatar as forças criativas dos estereótipos e das rotinas impostas pelo quotidiano. (Dumazedier, cit in Redondeiro, 2003) Tal como a brincadeira da criança, os tempos de ócio do adulto são feitos pelo prazer que proporcionam, não tendo, em si, finalidades precisas. À semelhança da criança de idade escolar e do adolescente, o adulto precisa de actividades equilibradas, devendo o seu horário incluir sempre actividades motoras, intelectuais e sociais. Nesta medida, os passatempos representam um sector de actividade susceptível de contribuir para esse equilíbrio. (Barnet, cit in Ferland, 2006)

Há alguns anos um estudo demonstrou que a atitude lúdica desenvolvida na infância poderia tornar-se um traço de personalidade do adulto. (Barnet, cit in Ferland, 2006) Uma pesquisa (Ferland et al, cit in Ferland, 2006) interessou-se por esta questão, tentando por um lado definir a atitude lúdica na idade adulta e, por outro lado, determinar a sua utilidade. Os resultados desse estudo revelam que os elementos que caracterizam a atitude de jogo do adulto são muito semelhantes aos identificados na criança. O adulto que apresenta uma atitude de jogo manifesta prazer, espontaneidade, curiosidade, um bom sentido de humor e criatividade. Todavia, o prazer evidencia-se como ponto central e é alimentado pelos outros elementos. Os adultos que têm tal atitude não a exteriorizam só nos passatempos, mas também no trabalho e noutras actividades quotidianas.

Assim, os resultados desse estudo também identificaram o impacto dessa atitude no dia- a-dia. Aparentemente, os adultos que apresentam uma atitude caracterizada por prazer e sentido de humor, que são espontâneos, curiosos, criativos e que tomam iniciativas, manifestam alegria de viver, espírito aberto e não se levam demasiado a sério. Além disso, têm mais facilidade em lidar com as dificuldades. Perante uma situação problemática, sabem identificar aspectos positivos e encontrar soluções originais. Uma tal atitude ajuda-os a adaptarem-se à mudança. (Ferland, 2006)

É ainda importante ressalvar que para que uma actividade seja realmente lúdica, torna- se necessário que o indivíduo tenha interesse em praticá-la, mas acima de tudo um estado de espírito particular que lhe permita sentir prazer. É necessário que a pessoa evidencie uma atitude lúdica, ou seja ser espontânea, recorrer ao sentido de humor, ser curiosa e imaginativa,

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ter gosto em correr riscos e tomar iniciativas. Ter uma atitude lúdica é também não se levar a sério e não levar a sério a situação. Quando brincamos nada é dramático, trata-se apenas de uma brincadeira; o objectivo é, antes de mais, sentir prazer. (Ferland, 2006)

Termina-se este capítulo fazendo uma alusão ao que se pensava, desde a antiguidade, sobre o brincar, comparativamente com a actualidade. Os antigos já sabiam da importância do brincar no desenvolvimento integral do ser humano. Aristóteles, quando classificou os vários aspectos do homem, dividiu-os em: Homo Sapiens (o que conhece e aprende), Homo Faber (o que faz, produz) e Homo Ludens (o que brinca, o que cria) e, em nenhum momento, um dos aspectos se sobrepôs ao outro como mais importante ou mais significativo. Os povos antigos sabiam que mente, corpo e alma são indissolúveis, embora tenham as suas características próprias.

Com o passar do tempo, verificou-se que, na era capitalista, focada na produtividade e no lucro a qualquer preço, passou a valorizar-se os atributos intelectuais e físicos em detrimento dos valores espirituais tais como: sensibilidade, criatividade, sentido estético, solidariedade, altruísmo, idealismo e humor. Nas últimas décadas, no entanto, “ […] a visão materialista

do ser humano e da sua missão no mundo, independentemente de qualquer conceito religioso, passou a ser amplamente discutida, pois não produziu o resultado desejado: a Felicidade.” (Martins, 2008a)

A criança que não brinca não é uma criança, Mas um homem que não brinca perdeu para sempre

A criança que vivia em si e que lhe fará muita falta.19

Na secção seguinte, será desenvolvida uma perspectiva de promoção do lúdico, ou seja, da animação hospitalar como promotora do bem-estar e da alegria, assegurando o direito ao brincar, no âmbito de um processo de humanização hospitalar.

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CAPÍTULO 2 - ASSOCIATIVISMO, ANIMAÇÃO HOSPITALAR E