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CAPÍTULO 5 “RECEITAMOS ALEGRIA”: PERSPECTIVAS DOS DOUTORES PALHAÇOS SOBRE A

5.5. O poder transformador do Doutor Palhaço

O Doutor Palhaço é um cuidador. É um cuidador especial que no hospital se revela o único adulto que não está preocupado com a doença, a medicação, os tratamentos da criança hospitalizada, pois a sua acção reside em cuidar do lado saudável da criança que se encontra no hospital.

“ […] a gente cuida do lado saudável da criança doente.” No hospital as pessoas estão preocupadas com a patologia, com o remédio, a injecção, o xarope, a comida, tudo isso é o que preocupa os adultos em torno daquela criança. Depois entra um adulto que não tá preocupado com essas coisas […]”. (Entrevista a B.Q., Sede da Operação Nariz Vermelho, Lisboa, 16 de Julho de 2010) O Doutor Palhaço tem o poder de transformar a realidade da criança, transportando-a, mesmo que num curto espaço de tempo, para uma realidade diferente da que vive no hospital, cuja causa deriva da sua doença. Desta forma o Doutor Palhaço permite que a criança hospitalizada usufrua dos seus direitos enquanto criança, nomeadamente o direito ao bem-estar e a brincar.

“ […] Uma vez eu fui dançar uma dança russa mais violenta e o meu sapato voou e caiu na sopa da criança […] e a criança olha e fala assim: “Eu nem queria essa sopa!..” [risos] E eu queria morrer de vergonha mas dá sempre tudo certo porque… na verdade quando todo o mundo quer que ela sopa, chega um que põe o sapato dentro da sopa e ela se livra da sopa! […] às vezes até nós fazemos elas comerem a sopa e brincamos […]mas alguém que de repente diz que você não precisa comer a sopa é um alívio! É muito mais terapêutico do que a sopa em si!

Entende? Então o nosso poder é esse! É a inversão da realidade.”.(Entrevista a B.Q., Sede da

Operação Nariz Vermelho, Lisboa, 16 de Julho de 2010) O próprio nome “Doutor” é reflexo de uma brincadeira com as características que definem o médico. O Doutor Palhaço desmistifica e desdramatiza as concepções associadas a este profissional de saúde, como um adulto sério, que trata da criança, que prescreve medicamentos, realiza operações e portanto a sua presença está grandemente associada à dor e à doença. Estes artistas vêm mostrar à criança que a bata branca também pode ser vestida por um adulto que não trata da doença da criança mas do seu lado saudável.

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“ […] o tema „doutor‟ é a bata, em que a gente brinca com a imagem do médico.[…]”. (Entrevista a B.Q., Sede da Operação Nariz Vermelho, Lisboa, 16 de Julho de 2010) A presença dos Doutores Palhaços pode assim ser vista como contraditória, uma vez que as características associadas ao palhaço são, muitas elas antagónicas em relação às características do contexto hospitalar e profissionais de saúde, como sejam o rigor, a seriedade, a perfeição, a ausência de falhas. No Doutor Palhaço todas estas características falham, mas a sua presença é igualmente necessária junto da criança hospitalizada.

“ […] eu gosto muito mais de ser palhaço dentro do hospital do que ser palhaço na rua ou numa festa, porque a contradição da nossa presença é tão legal, tão grande… „o que é que o palhaço tá fazendo no hospital? Meu marido pergunta assim: „B.Q., como é que você vai para o hospital todo o dia? Como é que você aguenta?‟ Aí eu respondo… „Como é que você aguenta não ir? […]”. (Entrevista a B.Q., Sede da Operação Nariz Vermelho, Lisboa, 16 de Julho de 2010) No entanto, nem sempre essa presença dos Doutores Palhaços é assim tão contraditória, podendo mesmo o hospital ser sinónimo de alegria e palhaços.

“Um menino foge de casa para o hospital porque era o único sitio onde ele sabia que havia palhaços.”. (Entrevista a R.M) Esta contradição da necessária presença do Doutor Palhaço no hospital funciona igualmente como facilitadora da expressão das mais diversas emoções pelos diferentes adultos: profissionais de saúde e familiares, para além da criança hospitalizada, fazendo com que seja possível expressar alegria, boa-disposição, risos e gargalhadas num local bem marcado pela tristeza, choro e sofrimento.

“ […] o Zundapp [Doutor Zundapp], uma vez estava completamente doido e às vezes há um de nós que quer mesmo fazer uma coisa completamente idiota e maluca, então ele deixar descair assim as suas calças por baixo da bata e lembro-me que foi de […] rir…[…]…mesmo um momento em que eu vi o 12.º [Hospital Verde] todo a […] rir, inclusive eu, para tu veres que as vezes o delírio e a necessidade…porque isto é um sitio também de emoções extremas e às vezes, por exemplo, nós vemos uma mãe ou um pai a chorar, eu acho que é mesmo […]…importante…[…] tão importante como rir…e nesse dia o Zundapp tem assim uma tiragem…eu a discutir com ele…mas a…[…]a rir-me também…e o pessoal todo…bah…as

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enfermeiras quase a cair ao chão a rir-se…foi muito muito bom…pronto esse assim foi o momento top assim que me estou a lembrar, mas todos dias há momentos top.”. (Entrevista a J.R., Hospital Verde, 28 de Junho de 2010) A acção do Doutor Palhaço resulta assim de uma construção influenciada por diversos factores, sejam eles o contexto hospitalar, os profissionais de saúde, a criança e a sua doença, a família, nomeadamente os pais da criança, e a dupla em que trabalham. A acção do Doutor Palhaço, mesmo desenrolada num curto espaço de tempo, por vezes em escassos minutos, é marcada por uma grande intensidade, em que a realidade das pessoas envolvidas se altera e se transforma.

“ […] é uma construção, é uma tentativa, depende da dupla, depende do dia, depende dos palhaços… […] quando a gente consegue fazer com que a coisa aconteça, às vezes, você reparou que o trabalho demora quinze minutos. O que é que é quinze minutos? Quinze minutos não é nada! É uma bobagem… mas tira quinze minutos a pessoa daquele espaço. Eu tenho certeza que o nosso trabalho deixa memória.”. (Entrevista a B.Q., Sede da Operação Nariz Vermelho, Lisboa, 16 de Julho de 2010) Por vezes as alterações provocadas pela presença do Doutor Palhaço permanecem na pessoa envolvida, deixando memória, possibilitando que mesmo quando o Doutor Palhaço não está fisicamente presente influencie igualmente o bem-estar e a alegria da criança hospitalizada.

“ […] deixa uma memória na pessoa onde ela pode voltar e buscar um pouquinho daquela sensação de novo como se ela tomasse de novo um pouquinho daquela sensação. […] eu vou terminar com uma história que eu ouvi, que é muito engraçada, de uma estudante de medicina. Que […] falou: “Sabe que eu estava com o J., um menino africano, e eu estava fazendo um exame nele e ele de repente… ele sorri!... Ele dá um sorriso assim!... e tal! E eu vou assim: „J. o que é que se passa?‟ „Estou a lembrar dos palhaços! [sorrindo]‟” [risos] E eu acho maravilhoso esse pequeno… “…nada! eu estava a lembrar dos palhaços! [risos]” […] Eles nem estão lá presentes mais, e ele foi lembrar da bobagem que aconteceu e que ali naquele espaço vem como memória para ele super positiva! E é um alimento que ele foi buscar depois… e isso para mim é o valor do nosso trabalho. […]”. (Entrevista a B.Q., Sede da Operação Nariz Vermelho, Lisboa, 16 de Julho de 2010)

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O próprio peso emocional de cada contexto hospitalar influencia a acção do artista. Uma das Doutoras Palhaço, a Enfermeira Jeropiga, realça mesmo que os hospitais ou unidades hospitalares onde o ambiente se encontra mais tenso e emocionalmente mais fragilizado, são os locais onde sente que o trabalho do Doutor Palhaço resulta de forma mais efectiva, sendo aqueles onde prefere trabalhar. A contradição da presença destes artistas revela-se muitas vezes na criação de um ambiente de festa num contexto em que a tristeza é quem reina, levando a transformação daquela realidade e daquele momento.

“Há situações muito caricatas, […] nos sítios em que as pessoas tão ali mais no limite do stress, […] são os sítios onde me dá mais satisfação trabalhar […] parece que é o sitio onde o nosso trabalho ainda resulta melhor […] vou-te dizer por exemplo... […] há sítios em que, se eu tiver confiança com a pessoa…com quem eu estou a trabalhar, […] são sítios onde tu estás mesmo a sentir que a coisa […] vai tipo...rebentar… só que a pessoa está tão fragilizada do ponto de vista emocional, que tu dás-lhe um…”Uahh”…uma cena mais de sorriso […]..e de repente está uma festa! […] o UCI [Unidade de Cuidados Intensivos] normalmente, no Hospital Verde, é um sitio onde a coisa está sempre a virar para festa.. […][As pessoas estão mais] Sensíveis e tensas.. parece que aquilo vai quebrar pró choro e […] acho que nesses sítios, […] eu digo-te…se fosse eu a escolher os roteiros, eu só ia a esses sítios: eu ia às urgências, ia às UCI‟s […]”. (Entrevista a J.G., Hospital Amarelo, 28 de Junho de 2010) “Uma senhora está a chorar pois o seu filho acabou de entrar para a U.C.I. Os palhaços chegam e começam também a “chorar”, a senhora fica a olhar para nós e depois começa a rir-

se.”. (Entrevista a R.M.)