• Nenhum resultado encontrado

Etapa 3: Realização dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos 32 com os

4.4 BUSCANDO COMPREENDER O QUE ESTÁ ALÉM DO DITO: UM CONVITE À SENHORA HERMENÊUTICA

Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes. (GADAMER, 1999, p. 452) Ao delinear algumas escolhas para a pesquisa, continuávamos a viagem em busca da ilha desconhecida; procurando encontrar algum caminho, algum horizonte que, de alguma forma, ajudasse a interpretar e compreender os constructos epistemológicos construídos com os interlocutores, e as interlocutoras: os professores-formadores e as professoras-formadoras.

Algo que nos auxiliasse na compreensão das construções realizadas, tendo como base as relações dialógicas e o movimento de auto(trans)formação permanente com professores e professoras; que nos ajudasse a olhar para o horizonte e não enxergar apenas o visível ou a visão estreitada dele, mas perceber a possibilidade de alargamento e abertura de novos horizontes.

Na busca por algo que nos ajudasse a compreender os caminhos da pesquisa, alguém nos falou que a Senhora Hermenêutica (SILVA, 2017) poderia ajudar. Ainda não a conhecíamos direito.... só de ouvir falar! Imaginávamos uma respeitável senhorinha, um pouco corcunda, semelhante a curvatura do “arco hermenêutico”, de Paul Ricoeur. O que não sabíamos era que a Dona Hermenêutica não era bem uma senhorinha, mas uma moça muito experiente e atual, contextualizada, situada historicamente e que tem o poder de ter um pé na tradição e outro na atualidade para compreender as coisas da vida e do mundo.

A primeira informação a respeito dessa jovem senhora foi de que ela era conhecida pela “arte da compreensão”, o que nos impressionou já de início e nos empolgou bastante. Então começamos a ir em busca de maiores informações a respeito dela, pois acreditávamos que ela poderia nos ajudar a compreender as questões de pesquisa. Durante as andarilhagens fomos descobrindo que “[...] a hermenêutica é, muito antes, uma visão fundamental acerca do que significa em geral, o pensar e o conhecer para o homem na vida prática, mesmo se trabalhando com métodos científicos” (GADAMER, 2000, p. 18-19).

A hermenêutica não assume a intencionalidade de descrever ou mensurar os processos que envolvem a investigação, mas de compreender e dar voz aos interlocutores(as)- coautores(as) envolvidos(as), buscando conhecê-los(as) a partir da vida prática, levando em consideração o contexto sócio-histórico-cultural. Apesar da Dona Hermenêutica não se caracterizar como um método a ser seguido, o autor Jean Grondin (2012), filósofo e professor canadense, afirma que Gadamer não é contrário ao saber metódico, mas acreditava que a imposição de um único modelo de conhecimento nos cega a outros modos de saber e nos impulsiona a ignorar outras maneiras de conhecer, que não especificamente pelo viés metódico.

Por isso mesmo, a Dona Hermenêutica não pode ser caracterizada como uma técnica; ela é a arte da compreensão e, por ser arte, ultrapassa a perspectiva puramente metodológica que se atém apenas ao significado das coisas, assumindo-se filosófica ao passo que reflete sobre a instauração do sentido, da compreensão das coisas para que efetivamente consiga alcançar o outro na relação dialógica. Por isso mesmo,

[...] hermenêutica, enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com outras ciências, teorias das ciências ou coisas que tais, senão um modo de mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento em que pomos nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência. Sem levar a falar os conceitos, sem uma língua comum, não podemos encontrar palavras que alcancem o outro. O caminho vai “da palavra ao conceito” – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se quisermos alcançar o outro (GADAMER, 2000, p. 26).

Nessa relação, a Senhora Hermenêutica vai dizer ainda que, para que alcemos o outro e a outra, é fundamental a arte de compreender que só acontece a partir da linguagem, das diferentes vozes, das formas de comunicação verbais e não-verbais, dos sentidos e significados explicitados, ou não, nas narrativas. Isso porque, ao fazer a escolha pela abordagem hermenêutica, a tentativa é de buscar compreender aquilo que “Gadamer fala acerca da hermenêutica enquanto processo de compreender ‘o quanto fica de não dito, quando se diz algo’. A língua, na verdade, oculta muito mais do que revela” (FLICKINGER, 2014, p. 50). O que fica oculto, invisível, latente diz tanto quanto o que foi dito, escrito e/ou registrado, sendo essa compreensão extremamente importante para o(a) pesquisador(a). Por isso a escolha pela hermenêutica: pela possibilidade de compreensão e entendimento das coisas, a partir do aparente dito, mas fundamentalmente do não dito no dito. Daí a aproximação com os movimentos dos Círculos Dialógicos, onde a escuta sensível e o olhar aguçado buscam atentar para as diferentes significações, os contextos, os modos de ser e se entender com os outros e com as outras, com e no mundo, bem como os movimentos de constituição da docência dos professores-formadores e das professoras-formadoras que, muitas vezes, não estão explicitados no dito, ficando ocultas em outras manifestações ou contextos não ditos.

Mas se o domínio da Dona Hermenêutica é arte da compreensão, o que seria mesmo compreender? Gadamer (1999, p. 282) vai afirmar que “compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento”, argumentando que toda compreensão começa quando algo nos chama a atenção, sendo essa a primeira condição hermenêutica para o ato de compreender. No entanto,

Compreender não é, em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se

compreende. Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar

e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que diz e com o que propriamente quer dizer. Compreender não é, portanto, uma dominação do que nos está à frente, do outro e, em geral, do mundo objetivo (GADAMER, 2000, p. 23). A compreensão, nesse sentido, vai muito além de fazer com o que outro ou a outra pense de acordo com aquilo que o eu acredita; mas ao contrário, a compreensão precisa levar a uma participação no significado comum (GADAMER, 2000, p. 142) que, conforme o autor,

não é uma comunhão misteriosa de almas, mas uma participação onde todos e todas reconhecem seus limites, equívocos, enganos e, por meio do diálogo, buscam compreender as diferentes concepções de mundo, pontos de vista, tendo a oportunidade de (re)pensar sobre aquilo que o outro pensa para tentar superar a si mesmo(a). Assim, “aquele que compreende não adota uma atitude de superioridade, mas sente a necessidade de submeter a exame sua suposta verdade, põe em jogo seus próprios preconceitos. E isso só pode ocorrer no espaço do diálogo” (HERMANN, 2002, p. 86).

Flickinger (2014, p. 17) corrobora afirmando que “[...] Gadamer também buscava levar o interlocutor a ‘re-conhecer’ – no sentido originário dessa palavra composta – os enganos e erros que deformam seu saber prévio. Essa, segundo ele, era uma das finalidades mais nobres do diálogo”. O re-conhecimento pressupõe a atitude de olhar novamente, de uma outra forma e, acima de tudo, reconhecer os enganos e equívocos por meio do diálogo com os(as) outros(as), ratificando a ideia de que pensar hermeneuticamente não está vinculado a dominação da vontade de um sobre o(a) outro(a) ou da imposição ao(a) outro(a) de um pensar como verdade única e absoluta, mas “[...] a verdade que pode surgir no diálogo é muito mais uma verdade compartilhada que uma apropriação” (HERMANN, 2002, p. 77).

Mais uma vez se justifica a aproximação da proposta com a abordagem hermenêutica à proposta epistemológico-política dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, pois durante a realização dos Círculos buscamos compartilhar as diferentes “verdades” e compreensões sobre o mundo, os outros e as outras, na historicidade do ser humano, que é o que impede a existência de horizontes fechados, absolutos. Nosso horizonte está sempre em formação que se dá na relação com os outros e as outras, com o mundo, a partir da sua historicidade. Por isso mesmo, os processos de compreender não são algo que se constrói isoladamente, mas “[...] é sempre um processo de fusão de horizontes” (Ibidem, p. 49) que se estabelece no encontro com outras pessoas que pensam de maneiras diferentes, nos ajudando a superar nossos próprios horizontes interpretativos.

Nos Círculos Dialógicos, por meio do diálogo problematizador, procuramos provocar a ampliação dos horizontes interpretativos de cada um(a) dos(as) interlocutores(as), a partir do encontro com outras pessoas, da escuta, do olhar atento, da valorização dos diferentes fazeres e saberes para, assim, ir compreendendo-os(as) hermeneuticamente, a partir da fusão de outros horizontes. Essa fusão só se estabelece a partir do diálogo, tendo como premissa básica a pergunta: “A estreita relação que aparece entre perguntar e compreender é a única que dá à experiência hermenêutica sua verdadeira dimensão. [...] Perguntar permite sempre ver as possibilidades que ficam em suspenso” (GADAMER, 1999, p. 551). Portanto, não existe

diálogo sem o ato de perguntar. No diálogo o horizonte vai se movendo e se alargando em profundidade, ampliando o círculo da compreensão entre os que dialogam; a partir dessa relação é que podemos falar em fusão de horizontes:

O caráter do diálogo tem sempre sido sugerido na fusão dos horizontes, pois quando os horizontes fazem conexão eles se engajam em diálogo. [...] para Gadamer o entendimento é a acomodação do Outro. Isso é o que ele quis dizer com o termo “fusão dos horizontes”; o ponto não é obscurecer e abolir o horizonte do passado (concebido como o outro), mas mostrar como aquele horizonte foi adotado e expandido no presente (LAWN, 2010, p. 96).

Na busca pela fusão de horizontes, encontramos na Dona Hermenêutica subsídios para a compreensão dos diálogos a partir dos Círculos, entendendo que “[...] quem compreende não julga a partir de uma situação externa e não-afetada, mas a partir de uma relação específica que vincula os envolvidos” (HERMANN, 2002, p. 52-53). O envolvimento, como pesquisadora-coordenadora, com a temática da pesquisa é que estabelece o vínculo com os companheiros e as companheiras de viagem, os professores-formadores e as professoras- formadoras, e com as bases epistemológicas com as quais nos respaldamos e fundamentamos a pesquisa. Dado o envolvimento com a temática, a aproximação da Pesquisa-formação (JOSSO, 2010a) com os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos (HENZ, 2015), escolhemos o enfoque hermenêutico (GADAMER, 1999) para nos ajudar na interpretação e compreensão dos constructos investigativos que emergiram nos Círculos.

Nesta circularidade, a lógica da pergunta e da resposta, do diálogo que nos faz compreender o (con)texto, se estabelece pela interpretação da pergunta que é colocada, sendo ela condição para que o processo hermenêutico aconteça. A possibilidade de ampliação e/ou abertura de novos horizontes vai sendo estabelecida na relação dialógica que se constrói a partir da pergunta, pois “a abertura de horizontes que o diálogo possibilita permite à educação fazer valer a polissemia dos discursos e criar um espaço de compreensão mútua entre os envolvidos” (HERMANN, 2002, p. 95). Portanto, a pergunta é a referência para a compreensão e conquista do horizonte hermenêutico, sendo o elemento principal para que os diálogos se estabeleçam nos Círculos Dialógicos Investigativos-formativos e possam ser [re]significados.

DEPOIS DE UMA LONGA PAUSA....