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Etapa 3: Realização dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos 32 com os

4.2 PESQUISA-AUTO(TRANS)FORMAÇÃO COM FREIRE E JOSSO: OS CÍRCULOS DIALÓGICOS COMO RECONSTRUÇÕES E POSSIBILIDADES

4.2.1 Os movimentos que perpassam os Círculos Dialógicos: uma trama dialógica e dialética

Falar nos movimentos que compõem os Círculos Dialógicos é falar em uma trama que se organiza dialógica e dialeticamente e, por isso, não se pode mencionar nesse contexto a ideia de seguir uma sequência ou ordem pré-estabelecida, uma vez que “trata-se de uma proposta epistemológico-política eminentemente dialética e construtiva com vistas à transformação” (HENZ, 2015, p. 19). Nessa dinamicidade é possível que durante os diálogos que vão sendo tecidos com os outros e as outras, nos Círculos Dialógicos, alguns movimentos

36 Os eixos de prática serão sistematizados e discutidos com maior aprofundamento no capítulo 6. 37

Este subcapítulo, pelo fato de compor o projeto de tese aprovado pela banca de qualificação em agosto/2016, foi submetido, aprovado e publicado na Revista Inter-Ação, Goiânia, v. 42, n. 2, p. 519-537, maio/ago. 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5216/ia.v42i2.44026>.

não apareçam tão explicitamente e outros se evidenciem mais, desde que suscitados e problematizados, a partir da realidade vivenciada pelos(as) interlocutores(as)-coautores(as.

Os diferentes movimentos estão imbricados em uma espiral ascendente, proativa e dialética, onde todos se interligam e perpassam numa totalidade complexa, tornando-se condição uns dos outros, sem a necessária “passagem” ou “sobreposição” de uns sobre os outros. Também pode ocorrer de cada um desses movimentos se manifestar com maior (ou menor) força em momentos diferentes para a individualidade dos(as) participantes, o que no coletivo grupal gera a dialética de todos os movimentos, interagindo simultaneamente em um mesmo encontro.

Embora não exista uma linearidade dos movimentos nos Círculos Dialógicos, o(a) pesquisador(a)-coordenador(a) tem um importante papel para que os movimentos aconteçam, sendo o(a) mediador(a) dos diálogos investigativo-formativos que vão surgindo no e com o grupo. Os elementos problematizadores para os diálogos são, inicialmente, propostos pelo(a) pesquisador(a) que está coordenando o encontro, podendo ser por meio de falas, imagens, trechos de filmes, fotos, músicas, enfim, questões problematizadoras que falem da realidade e sobre a temática foco da pesquisa, dando dinamicidade aos movimentos. A escuta sensível e olhar aguçado, inclusive do(a) pesquisador(a)-coordenador(a), é um dos primeiros movimentos que, normalmente, vai desencadeando os demais, sempre de maneira dialética e dialógica no, com e a partir das problematizações do grupo.

Vale lembrar que algumas pesquisas de mestrado e doutorado38, realizadas por integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa Dialogus, bem como alguns capítulos de livro, vêm contribuindo na construção dessa proposta metodológico-epistemológico-política dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos com e a partir do grupo, no qual boa parte desses movimentos que ora apresentamos já aparecem, mas ainda não contemplando os oito

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Algumas pesquisas de Dissertação de Mestrado desenvolvidas por integrantes do Grupo de Estudos Dialogus, envolvendo a proposta epistemológico-política dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos: DRESSLER, Marlize. A formação permanente no tempo-espaço da escola: “olhares” de gestoras coordenadoras pedagógicas. 2013. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS: 2013; RIBEIRO, Eliziane Tainá Lunardi. Professores(as) da EJA: Círculo de Diálogos como práxis pedagógica humanizadora. 2014. 104f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS: 2014.; FREITAS, Larissa Martins. Interfaces entre o Ensino Médio

regular e a juvenilização na EJA: diálogos, entrelaçamentos, desafios e possibilidades sobre quefazeres

docentes. 2015. 171f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS: 2015; KAUFMAN, Nisiael de Oliveira. A formação inicial de professores das licenciaturas para

Educação de Jovens e Adultos no Ensino Médio: desafios e possibilidades. 2015. 176f. Dissertação (Mestrado

em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS: 2015; OLIVEIRA, Luiz Renato de. Ensinando e aprendendo com projetos temáticos: um desafio para a formação permanente de educadores da Educação de Jovens e Adultos. 2015. 125f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS: 2015; RAMOS, Maria Rosângela Silveira. PIBID de Química e Biologia do

IFFAR: entre-lugar de auto(trans)formação permanente docente. 2017.Tese (Doutorado em Educação) –

movimentos aqui mencionados. Ressalta-se, também, que a fundamentação da proposta epistemológico-política é uma construção cooperativa de conhecimentos, oriunda dos diálogos e reflexões que vêm emergindo nos encontros do grupo e nas pesquisas com os professores e com as professoras.

Na pesquisa de doutorado da qual compartilhamos a coautoria com os professores- formadores, com as professoras-formadoras e o Grupo Dialogus, utilizamos a espiral como a representação dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos para representar a dinamicidade dos movimentos vivenciados com o grupo que participou da construção dessa proposta epistemológico-política. De acordo com a processualidade de cada movimento investigativo, a representação dos Círculos Dialógicos vai sendo (re)construída de forma muito singular em cada pesquisa, com diferentes formas, cores e entrelaçamentos, o que representa a dinamicidade dos movimentos vivenciados nos Círculos. Por esse motivo, nas pesquisas desenvolvidas por pesquisadores(as) do grupo Dialogus, já realizadas ou em andamento, poderão ser encontradas diferentes versões da representação dos Círculos Dialógicos que, embora se tratando de representações diferenciadas, convergem sobre a mesma abordagem metodológica-epistemológico-política.

Nesta dinâmica, a vivência de cada um dos movimentos tem um papel importante para que os processos de auto(trans)formação possam ir acontecendo, dentro da processualidade dialética que representa a espiral ou também como uma “mandala tibetana”, a qual possibilita múltiplas maneiras de se organizar pelos diferentes entrelaçamentos e movimentos entre os arcos que a compõem. Para representar a dinamicidade dos Círculos Dialógicos Investigativo- formativos o Grupo Dialogus também vem se utilizando da simbologia da mandala tibetana para representar a circularidade e interconectividade dos movimentos que são vivenciados pelos(as) interlocutores(as)-coautores(as) nos Círculos.

A palavra mandala em sânscrito significa “círculo”; um círculo que forma um campo de força a partir de formatos, estruturas numéricas e cores diferenciadas. Embora a mandala seja mais utilizada no campo da astrologia e da psicologia, acreditamos que ela representa os movimentos dos Círculos Dialógicos por não apresentar um formato pronto e único, mas uma singularidade/totalidade que é construída pelos entrelaçamentos entre as diferentes cores e formatos oriundos dos movimentos e das intervenções, oportunizando que cada um(a) possa ir construindo sua própria forma, que é sempre diferente e dinâmica.

A mandala não tem uma imagem definida; ela tem múltiplos formatos e, ao mesmo tempo, não tem nenhum; ela representa a circularidade dos movimentos de ir, vir, se entrelaçar, se transformar, se [re]significar, assim como as interlocuções dialógicas nos

Círculos. A processualidade dos movimentos experienciados com os coautores e coautoras nos Círculos Dialógicos vai sendo construída com os(as) outros(as) na dinamicidade do envolvimento que vão estabelecendo com a pesquisa, sempre mediatizados pelo diálogo problematizador estabelecido do eu com os outros e as outras, numa circularidade proativa.

Outra similaridade dos Círculos Dialógicos com a mandala é de ser um lugar onde tudo se relaciona, potencializando a capacidade que cada um e cada uma tem de transformar a si mesmo(a), de se auto(trans)formar sempre na relação construída com os outros e as outras. Partimos da premissa de que todos(as) estão na centralidade dos processos auto(trans)formativos e os assumem com coautoria, embora nem todos(as) os(as) coautores(as) vivenciem ao mesmo tempo os mesmos movimentos dos Círculos Dialógicos. Esses movimentos provocam um caminhar para si na perspectiva do singular-plural (JOSSO, 2010b) estabelecida pela vivência dos diferentes movimentos nos Círculos, o que vai tornando os processos auto(trans)formativos algo dinâmico e permanente, possibilitando novas (re)(des)construções das trajetórias pessoais e profissionais. O diferencial desta proposta é que

Trabalhar com os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, como pesquisa e auto(trans)formação, possibilita reconhecer cada homem e cada mulher na sua singularidade e na sua capacidade de construir conhecimentos que ajudem no desvelamento da condição de condicionados; mas porque condicionados e não determinados, no seu inacabamento está a possibilidade de um sentir/pensar/agir (HENZ, 2003) para transformar a si mesmo e a realidade vigente, sempre pelo diálogo e intersubjetivamente de uns com os outros (HENZ, 2015, p. 20-21). Essa possibilidade de desvelamento da realidade, da transformação de si na relação com os outros, com as outras e com o mundo, é simbolizada pelos movimentos dos Círculos Dialógicos numa espiral ascendente, com momentos e pontos de intersecção que, ao mesmo tempo em que dialogam entre si, ampliam a visão de mundo dos interlocutores-coautores e das interlocutoras-coautoras participantes da pesquisa.

Os oito movimentos que compõem e dão dinamicidade aos Círculos Dialógicos não surgem arbitrariamente, nem da imposição de alguém que passa a controlá-los; ao contrário, esses movimentos foram/vão se constituindo, a partir da caminhada construída com os(as) professores(as)-coautores(as) e com o(a) pesquisador(a)-coordenador(a). Eles vêm dialogando e construindo, juntos(as), essa proposta epistemológico-política que, tal como os Círculos de Cultura, não pretende ser um “método”, mas uma possível proposta epistemológico-política de pesquisa e auto(trans)formação com professores e com professoras, para possibilitar a todos e todas “ser mais” livres, autônomos(as) e autores(as) de si, das suas práxis e da sua história.

Em relação aos movimentos, é importante compreender que, além de não estabelecerem uma ordem a ser seguida, nem se apresentarem linearmente, eles podem acontecer em tempos, momentos e de múltiplas formas nos diferentes grupos, de acordo com a circularidade e dialeticidade em que os diálogos se constituem. Nessa dinamicidade, tudo irá depender do contexto e participação dos interlocutores-coautores, de cujas narrativas irão emergir as temáticas geradoras, para que todos possam dizer a sua palavra (FIORI, 2014).

A intenção aqui proposta é fundamentar conceitualmente cada um dos movimentos que foram se instaurando nos diálogos tecidos durante a realização dos Círculos Dialógicos. Em cada Círculo realizado, esses diferentes movimentos dialógicos e investigativo-formativos foram sendo reconhecidos como dimensões importantes e constitutivas da auto(trans)formação permanente com professores e professoras, sendo eles:

Figura 6 – Movimentos dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos

Fonte: Elaboração da pesquisadora, a partir da interlocução com os(as) interlocutores(as)-coautores(as) da pesquisa.

Um dos movimentos que perpassa toda a espiral é a escuta sensível e o olhar

aguçado; a atitude para ter uma escuta sensível é, primeiramente, educar a sensibilidade do

olhar. O silêncio é condição sine qua non para a existência do diálogo; só no momento em que silencio a minha voz é que sou capaz de ver e escutar a voz do outro e da outra, criando uma ambiência para que ele e ela digam sua palavra. Assim, a escuta é condição do diálogo, sem o qual nenhum dos demais movimentos é possível; é por meio da ação dialógica, que perpassa todos os demais movimentos, que se instaura a dinamicidade e vivacidade nos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos.

Silêncio e diálogo podem, em um primeiro momento, até parecer dimensões contraditórias; no entanto, o silêncio é condição e disposição para escutar o outro e a outra e, a partir desta escuta atenta e sensível, conseguir lançar um olhar aguçado sobre o dito e também o não dito (GADAMER, 1999) e dialogar com ele. No entanto, o silêncio não se refere ao silenciamento (que é uma ação de omissão ou indiferença), mas de reconhecimento à outredade de cada um e cada uma; o silêncio é algo necessário para que se possa escutar o outro e a outra, estabelecendo uma relação respeitosa, dialógica e de uma certa cumplicidade e corresponsabilidade. Neste sentido, “no processo da fala e da escuta a disciplina do silêncio a ser assumido com rigor e a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam é uma condição “sine qua” da comunicação dialógica” (FREIRE, 1998, p. 131).

Os professores e as pofessoras, ao exercerem o direito de dizerem a sua palavra e também o exercício da escuta do outro e da outra, vão aprendendo no Círculo Dialógico que apenas quando escutamos os outros e as outras é que aprendemos a falar com eles e elas. Portanto, com Freire (1998) aprendemos que não se trata de falar aos outros como quem sabe tudo e transmite a eles, mas que é preciso primeiro escutar para aprender a falar com eles e com elas sobre o que faz sentido para suas experiências e esperanças.

Buscando a coerência com as premissas dos Círculos de Cultura, durante a realização dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, a partir da fala e da escuta dialógica, e também dialética, vão emergindo as temáticas geradoras a serem problematizadas no diálogo com o grupo, surgindo assim outro importante movimento: emersão-imersão das/nas

temáticas. Propositalmente, são colocados nesse movimento os substantivos “emersão” e

“imersão”, tratando-se de um mesmo movimento, mas que apresentam significados que se complementam.

A emersão das temáticas requer uma imersão nos contextos e práticas dos(as) interlocutores(as)-coautores(as), pela escuta sensível e olhar aguçado. Atentos(as) às temáticas que emergem da realidade é possível imergir nelas, de forma crítico-reflexiva, não como

alguém que mergulha cegamente, mas que é capaz de perceber outras possibilidades que possam emergir a partir dela. Da capacidade do olhar aguçado cria-se a condição para o diálogo crítico-reflexivo sobre a realidade, com a possibilidade de inéditos viáveis (FREIRE, 2014a).

As temáticas a serem problematizadas no diálogo com os interlocutores-coautores, na perspectiva dos Círculos Dialógicos, emergirão sempre da realidade concreta, da práxis, das relações no e com o mundo; “os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos” (Ibidem, p. 137). No entanto, a imersão só se torna possível na medida em que as temáticas que emergiram da escuta sensível, do olhar aguçado e, fundamentalmente, do diálogo, tenham algo a dizer sobre e para a realidade vivenciada, que sempre é datada, situada sócio-historicamente.

Com as temáticas que emergem nos Círculos Dialógicos, vêm à tona os motivos humanos e profissionais que nelas estão implicados e que, ainda, num primeiro momento não de forma consciente, são geradores do seu sentir/pensar/agir como professores e professoras, em seu estar sendo (Ibidem) Quando as temáticas que estão sendo emergem do diálogo e passam a ser problematizadas no e com o grupo, os(as) sujeitos imergem nelas, adentram e implicam-se nas mesmas, discutindo, problematizando, dialogando para poder emergir delas, com consciência crítica e transformadora, também auto(trans)formando-se.

Na dinamicidade dos movimentos dos Círculos Dialógicos acusa sua presença e requer seu reconhecimento outro movimento: o distanciamento-desvelamento da realidade. O distanciamento da realidade é condição para o seu desvelamento, pois somente quando nos distanciamos daquilo que é cotidiano, das ações que desenvolvemos repetitivamente sem a devida reflexão, é que “distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando- o, ‘descodificando-o’ criticamente, no mesmo movimento da consciência o homem se redescobre como sujeito instaurador desse mundo de sua experiência” (FIORI, 2014, p. 20), conseguindo assim perceber a realidade e enxergá-la com maior clareza e criticidade, refletindo sobre ela. Por vezes, é preciso tomar distância do contexto para reconhecê-lo e, assim, desvelá-lo, imergir nele e atuar sobre ele para transformá-lo.

Esse é um movimento de suma importância nos Círculos Dialógicos, pois requer e possibilita escuta sensível, olhar aguçado, emersão-imersão na realidade. Distanciar-se é “[...] un cierto modo de relación con la realidad, es una distancia que se establece con la realidad. Uno se desprende de la realidad para representársela. Representar quiere decir presentar outra

vez la realidad39 [...]”(FERRY, 2004, p.56) para assim, pelo distanciamento, olhar de novo, olhar criticamente, decodificar, conscientizar-se e descobrir-se inacabado, com possibilidades de intervir para (auto)transformar(-se).Paradoxalmente, quanto mais me afasto, mais consigo adentrar na realidade, na temática geradora e intervir sobre ela.

Um exemplo de desvelamento da realidade foi relatado por Freire em uma de suas andarilhagens em São Tomé, na África, com a alfabetização de adultos e adultas, quando menciona uma importante recordação:

Entre as inúmeras recordações que guardo da prática dos debates dos Círculos de Cultura de São Tomé, gostaria de referir-me agora a uma que me toca de modo especial. Visitávamos um Círculo numa pequena comunidade pesqueira chamada Monte Mário. [...] O grupo de alfabetizandos olhava em silêncio a codificação. Em certo momento, quatro entre eles se levantaram, como se tivesse combinado, e se dirigiram até a parede em que estava fixada a codificação (o desenho do povoado). Observaram a codificação de perto, atentamente. Depois, dirigiram-se à janela da sala onde estávamos. Olharam o mundo lá fora. Entreolharam-se, olhos vivos, quase surpresos, e, olhando mais uma vez a codificação, disseram: “É Monte Mário. Monte Mário é assim e não sabíamos”. Através da codificação, aqueles quatro participantes do Círculo “tomavam distância” do seu mundo e o reconheciam. Em certo sentido, era como se estivessem “emergindo” do seu mundo, “saindo” dele, para melhor conhecê-lo (FREIRE, 2011, 57).

Ao tomar distância do próprio mundo começamos a vivenciar os processos de reconhecimento do eu como parte do contexto, havendo assim o desvelamento da realidade e a descoberta do nosso lugar no Kosmos (FREIRE, 2014a). Desvelar significa “tirar o véu”, desencobrir, descortinar, existenciar-nos, autodesvelar-nos e reconhecer-nos como seres históricos; processos esses que são feitos individualmente, mas a partir da coletividade em cooperação interformativa, do trabalho com o outro e a outra, tornando todos e todas sujeitos atuantes do seu próprio desvelamento, mesmo porque “[...] ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que estes se tornem sujeitos do ato de desvelar” (FREIRE, 2014a, p. 229). Assim, o contexto vai sendo “re-olhado” e ressignificado, apontando outras possibilidades; e todos se reconhecem e assumem como sujeitos coautores e coautoras dessa processualidade desveladora e epistemológico-política.

Ao olhar e decodificar a realidade os(as) sujeitos coautores e coautoras se descobrem como seres condicionados(as), mas não determinados(as) como fatalidade histórica. Esse “dar-se conta” encaminha o processo dialógico para outro movimento: a descoberta do

39 [...] uma certa forma de relação com a realidade, é uma distância que se estabelece com a realidade. A pessoa

se “desprende” da realidade para representá-la. Representar significa apresentar outra vez a realidade (FERRY, 2004, p.56).

inacabamento. Somente quando percebemos que a realidade vai muito além do que está dado

é que nos damos conta do nosso inacabamento e da necessidade de estarmos constante e permanentemente aprendendo.

Ao pensar a docência, o momento/movimento da descoberta de si como ser inacabado e em constantes processos aprendentes é importante para impulsionar na direção de aprender com o outro e com a outra, com os colegas professores e as colegas professoras, com outros(as) profissionais e, intencionalmente, com os(as) estudantes que também vivenciam esses processos, reconhecendo-se “[...] na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente. Permanentemente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade” (FREIRE, 2014a, p. 101-102).

A consciência da inconclusão não é um processo inato, mas vai se construindo na relação com os outros e com as outras, na problematização da realidade, da sua própria práxis, a partir da descoberta e compreensão de que a realidade é sócio-histórica e, como tal, pode ser transformada pela ação-reflexão de homens e mulheres. Reconhecem-se, assim, também a si mesmos(as) como sujeitos em permanente processo de auto(trans)formação. Ao se reconhecer condicionado(a) historicamente, cada sujeito coautor e coutora também pode se reconhecer como não determinado(a), com possibilidades de vir a ser, transformando a si mesmo(a) e a realidade que o condiciona.

A consciência da inconclusão, do inacabamento, vai se constituindo por meio do grupo que dialoga, apontando para outro movimento central nos Círculos: os diálogos

problematizadores, que perpassam todos os movimentos em todos os momentos vivenciados

nos Círculos Dialógicos. Assim, ele não se constitui em mais um movimento; ele é “o movimento” sem o qual nenhum dos demais acontece.

São eles – os diálogos problematizadores – os responsáveis por dinamizar todos os movimentos dos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, não estando alocados em uma ordem pré-estabelecida, vindo a priori ou a posteriori de um único movimento; ele se constitui dispositivo potencializador de toda dinamicidade dos encontros grupais. No entanto, pode acontecer que, nos movimentos iniciais, os diálogos que vão sendo construídos não se apresentem de forma tão problematizadora, o que vai progredindo na medida em que as reflexões críticas vão surgindo nos demais movimentos da circularidade dialética da espiral.

A processualidade dos movimentos, a partir da escuta atenta, sensível e do olhar aguçado, provoca a emersão-imersão consciente da realidade, por meio das temáticas geradoras, despertando nos interlocutores-coautores e nas interlocutoras-coautoras a

descoberta como seres inacabados(as), sempre por meio dos diálogos problematizadores. Esses vão sendo tecidos no e com o grupo, durante a realização dos Círculos Dialógicos e, quanto mais a ação-reflexão-ação ganha rigorosidade, mais se consegue ler criticamente a realidade e a própria práxis educativa para assumi-la como inacabada e capaz de ser mudada.