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Câmeras, Memória e História

No documento Direito, cultura POP e cultura clássica (páginas 78-81)

FOTOGRAFIA, CULTURA POPULAR E DIREITO

2. Câmeras, Memória e História

Vou começar com uma história pessoal. Há muitos anos eu, minha mãe e meu sobrinho estávamos brincando de interpretar personagens de uma ra- dionovela que havíamos criamos na hora. Decidimos gravar a brincadeira, os risos, e tudo mais. Era raro que alguém tivesse em casa um gravador de áudio naquela época, e ter um gravador portátil como os que são comuns hoje em dia era impensável. Gravações de alta qualidade normalmente exigiam gravadores de rolo enormes. Depois da nossa brincadeira, guardei os rolos em uma estante e os esqueci por lá.

Muitos anos depois da morte da minha mãe, eu encontrei esses rolos e lembrei daquele momento de alegria. Minha mãe e eu éramos muito próximos; é claro que eu queria ouvir a gravação imediatamente. Mas eu fui tomado por uma forte dúvida. A minha geração — e todas que me antecederam — estava acostumada a ver fotograias impressas de pessoas próximas que tinham mor- rido. De fato, por meio de esculturas, pinturas e desenhos, as pessoas milenar- mente permaneceram em contato com seus antepassados. Mas não estávamos acostumados a “ouvir” nossos antepassados. O ineditismo e a intimidade da- quela experiência devem ter inluenciado minha decisão. Talvez eu tenha senti- do que a voz dela causaria em mim uma reação emocional muito mais intensa do que apenas ver uma foto em um álbum de família. Poderia parecer que ela estava ali comigo. Sejam quais tenham sido os motivos exatamente, eu decidi ignorar a gravação e respeitar os limites estabelecidos ao longo dos anos entre a morte da minha mãe e minha vida.

Eu descrevi esse evento para demonstrar como o estágio de desenvolvi- mento de uma determinada tecnologia tem um papel importante nas nossas memórias e lembranças. Depende bastante do que estamos acostumados, do que é convencional e comum a todos em uma determinada época. A tecnologia de ponta pode transformar os momentos de recordação, e criar rapidamente uma nova forma corriqueira de experiência. Hoje, pelo menos para os mais no- vos, assistir a vídeos de parentes antigos é provavelmente tão pouco estranho e desaiador quanto uma fotograia impressa era para mim.

Esses novos aparelhos, junto à inindável sucessão de inovações tecnoló- gicas que estão por vir, pode fazer com que as pessoas observem, escutem e,

portanto, compreendem parte dos seus passados de forma mais vívida e pro- funda. Eles podem preencher parcialmente o vazio deixado pelo quase desa- parecimento dos diários pessoais na cultura moderna, que podiam ser bastante informativos para os descendentes. Os vídeos podem reavivar a memória so- bre as relações familiares, mostrando nossos antepassados (muitas vezes sem que eles saibam) conversando, brincando juntos, abraçando-se, fazendo cara feia, dando ou recebendo ordens, intimamente conectados uns com os outros ou mantendo-se distantes. Talvez assistir a vídeos venha a ser um elemento importante em rituais anuais de recordação, complementando o acender uma vela ou a visita ao cemitério. Talvez os pacientes de psicanalistas levarão víde- os na tentativa de ilustrar a sessão terapêutica.

Como podemos aplicar esses pensamentos a antepassados mais remo- tos? Vamos supor que a nossa tecnologia e as câmeras de hoje em dia esti- vessem disponíveis no meio do século XIX. Quão mais rico poderia se tornar o nosso conhecimento sobre a nossa genealogia e sobre a história da nossa família se pudéssemos assistir a vídeos que nos levassem pelo menos até nossos bisavós, observando esses antepassados em seus ambientes familia- res, sociais e culturais. Em um país de imigrantes como os Estados Unidos, a capacidade de explorar a história da família poderia “transportar” muitos americanos para as vidas de seus ascendentes antes da emigração, em cultu- ras e países estrangeiros.

Podemos ainda tentar imaginar a vida daqui a 150 anos, quando os ilhos dos nossos bisnetos estarão assistindo a nossas vidas com certo espanto. Os vídeos, transmitidos de geração em geração, podem se tornar uma parte do le- gado e da educação de uma família, podem fortalecer a compreensão das suas próprias raízes, e ajudar a moldar as crenças dos membros das famílias sobre quem são. Talvez os vídeos mostrem como a riqueza, o status e a educação de uma família aumentaram ou diminuíram a cada geração. Talvez ao ver esses vídeos os espectadores possam expandir a noção de sua própria família para incluir muitas pessoas tidas hoje como desconhecidas, e desse modo reforcem o sentimento de conexão humana. Talvez, observar os antepassados partici- pando de cerimônias e rituais realizados até hoje possa fortalecer identidades particulares: rezar à mesa, ir a um batizado, realizar o sêder, quebrar o jejum do Ramadã. Ou talvez o contrário.

Outra consequência da nova fotograia é a relativa à educação — por exemplo, o estudo da história. Considere o ensino da história americana, no qual fotograias ocupam, hoje, uma posição não muito relevante. Se eu ima- ginar que o conhecimento tecnológico e os aparelhos soisticados de hoje em dia estivessem disponíveis no meio do século XIX, as aulas de hoje poderiam

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analisar vídeos do Discurso de Gettysburg de Lincoln3, de soldados de infanta- ria conversando sobre a guerra, de um jantar de família, da linha de produção de uma fábrica, de conversas entre escravos em seus alojamentos, de debates eleitorais, do recital de uma orquestra, de uma aula de história lecionada no passado. Esse engajamento visual e com toda a atmosfera de uma situação histórica poderia conferir uma nova força e um novo imediatismo ao estudo. Poderíamos imaginar algo como uma conversa com gerações distantes, e tal- vez termos uma ideia diferente de que o mundo, por um lado, mudou muito e, por outro, mudou muito pouco.

Eu lembro perfeitamente de uma fotograia na parede da minha faculda- de de direito que mostrava uma aula em 1955, ano em que me formei. Talvez eu estivesse naquela aula. Dos aproximadamente 130 alunos na foto, todos eram brancos e apenas duas eram mulheres. Todos vestiam camisas brancas com gravata, e a maioria tinha deixado a jaqueta pendurada no encosto da cadeira por causa do calor que fazia no dia. O professor, vestido impecavel- mente, lecionava a aula por detrás de um púlpito elevado. Que contraste com as aulas dos últimos anos da minha carreira proissional: alunos de todas as cores e etnias, aproximadamente metade deles eram mulheres, com roupas informais (inclusive a maior parte do corpo docente), os professores andando de um lado para o outro, aproximando-se dos alunos. Quanta história daquela época e de tempos posteriores foi capturada por aquela foto: a abolição das barreiras de admissão discriminatórias, mudanças inovadoras na didática de uma aula, formas de relacionamento mais variadas entre o corpo docente e os alunos. Entretanto, quão mais revelador sobre uma noção mais ampla da transformação histórica na educação jurídica teria sido um registro audiovi- sual daquela aula.

Meus comentários sobre a foto de uma aula em 1955 poderiam simples- mente conirmar a máxima “uma imagem vale mais do que mil palavras.” Em muitos contextos esse ditado tem um fundo importante de verdade — no caso, por exemplo, do fotojornalismo. Mais do que no passado, as fotograias publi- cadas são feitas em contextos de guerra e outras ocasiões de violência. Vemos imagens horríveis como a de uma criança em chamas causadas por napalm correndo de um local bombardeado, de um torturador seguindo instruções obedientemente, de uma pessoa sendo vítima de estupro coletivo, de um gru- po decapitando ou imolando seus prisioneiros. O texto mais genial não chega-

3 Nota do Editor: O discurso de Gettysburg foi proferido pelo Presidente Abraham Lincoln durante a consagração de um cemitério de soldados em Gettysburg, Pennsylvania, me- ses após a União ter obtido uma importante vitória sobre os Confederados na Batalha de Gettysburg. O discurso é famoso pelas airmações de Lincoln a respeito dos princípios e aspirações dos Estados Unidos da América.

ria aos pés dessas imagens aterrorizantes. Elas permanecem irreversivelmen- te marcadas na memória. Elas inluenciam inevitavelmente o que pensamos e sentimos e, portanto, que políticas e ações podemos exigir do nosso governo.

No documento Direito, cultura POP e cultura clássica (páginas 78-81)