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MÚSICA E LIBRETO DE ARNOLD SCHOENBERG

No documento Direito, cultura POP e cultura clássica (páginas 196-200)

tercio SaMPaio Ferraz Junior1

Schoenberg inventou, no século XX, a música dodecafônica. Trata-se de uma quebra dos princípios de harmonia conhecidos desde o século XIV. Sua impor- tância é reconhecida. No gênero operístico, Moisés e Arão é um trabalho singu- lar, com uma implicação para o mundo jurídico igualmente singular.

O enredo da ópera refere-se a um episódio bíblico do Antigo Testamento, num momento expressivamente decisivo: Moisés recebe de Deus as tábuas da lei e, após longo retiro, dirige-se ao povo de Israel, para dar-lhe conhecimento dos mandamentos divinos.

Sucede, porém, que, segundo o relato bíblico, Moisés tinha problemas com sua fala (há insinuações de que era gago) ou, pelo menos, tinha, mais generica- mente, diiculdades de comunicação.

Daí o expediente de valer-se de Arão, seu irmão, que, ao contrário, comu- nicava-se com facilidade e se fazia entender pelo povo.

Schoenberg escolhe o momento da comunicação das leis do Senhor para construir, com grande dramaticidade, a tragédia que culmina com a adoração do bezerro de ouro. As leis do Senhor, ditadas por Ele a Moisés, são, ainal, comunicadas. Mas o povo entende o que Arão fala, não, propriamente, o que Moisés relata a Arão.

No trecho que praticamente inicia o enredo, Moisés acaba de descer do Monte Sinai, onde recebeu as taboas da lei. Encontra o povo em torno do be- zerro de ouro. Diante de sua cólera, o bezerro se esvanece e o povo grita: “A luz do ouro se embaça, nosso Deus é outra vez invisível; todo prazer, toda alegria e toda esperança estão banidos; tudo é pardo de novo, sem luz; fujamos de seu poder!”

Entra Moisés que então diz a Arão:

1 Tercio Sampaio Ferraz Junior é Professor Aposentado de Filosoia do Direito da USP, bem como Professor Titular da PUC-SP, da FADISP e Consultor do CAPES. É graduado em ilo- soia e em ciências jurídicas pela USP, tendo obtido doutorado em ilosoia pela Johannes Gutemberg Universität de Mainz na Alemanha e em direito pela USP. É advogado, sócio de Sampaio Ferraz Advogados.

“Arão, que tu izeste?” Que responde:

“Nada de novo! Apenas aquilo que sempre foi minha missão: quando teu pensamento nenhuma palavra produzia, nem minha palavra, imagens, cumpria um milagre diante dos seus ouvidos e diante dos seus olhos”.

“Por ordem de quem?” pergunta Moisés.

“Como sempre — diz Arão —: eu sentia a voz dentro de mim”. Contesta Moisés: “Mas eu não lhe disse nada”.

E Arão: “Mesmo assim eu compreendi”. “Cala-te!” diz Moisés.

E Arão, com medo: “Tua boca... tu estiveste longe tanto tempo...” “Com meus pensamentos! Tu devias entender” comenta Moisés.

E Arão: “Quando tu te vais sozinho, nós te tomamos por morto; o povo esperou a palavra da tua boca por muito tempo, a palavra que ixasse a lei e o direito; assim eu tive de lhes dar uma imagem bem visível para contemplar”.

“Diante de minha palavra ela se dissolveu,” diz Moisés.

E Arão: “Tua palavra não era capaz de engendrar nenhuma imagem, ne- nhum milagre; no entanto, o milagre não era mais que uma imagem, quando tua palavra destruiu minha imagem”.

“É a eternidade de Deus que quebra todas as imagens!” grita Moisés. E pergunta então se Arão compreende o poder do pensamento (razão) sobre as palavras (cantadas) e sobre as imagens. Ao que Arão responde: “Eu compreendo deste modo: esse povo deve ser preservado; mas um povo só consegue sentir! Eu amo esse povo, eu vivo para ele e quero preserva-lo!”.

Pelo pensamento! Eu amo minha ideia e vivo para ela! Diz Moisés.

E diz Arão: Tu o amarias, esse povo, se tiveste visto como ele vive, quando ele pode sentir e esperar: um povo não crê se não no que sente!

Moisés: Tu não me impressionas; O povo deve compreender a ideia; ele vive só para isto!

“Mas nenhum povo compreende senão um fragmento da ideia, da imagem que exprime a parte concebível do pensamento”, diz Arão. E Moisés: Devo fal- siicar a ideia?

Arão: Deixe-me explicar, reescrevendo, sem falar: as proibições criam grande medo, para que possam ser obedecidas, asseguram a constância, ao transigurar a necessidade. Os comandos, duros, mas carregados de esperança, se enraízam na ideia. Inconscientemente o povo fará tua vontade. Tu o acharás humanamente hesitante, mas assim digno de ser amado.

Isto eu não quero viver!

Mas deves! Não há outra maneira!

MOSES UND ARON 197

Conforme o libreto, que, inicialmente deveria servir a um oratório e de- pois se transforma em texto para uma ópera, Arão e o povo (o coro) usam da mesma linguagem. O texto destinado a Moisés, porém, não é musicado: Moisés apenas fala, sem qualquer melodia.

No drama musical, o povo ora pende para Moisés, ora para Arão. Há mo- mentos em que o coro (o povo) também fala, não canta.Até que obriga Arão, agora transformado num artista, a criar o bezerro de ouro. Com isso desvenda- -se o conteúdo da ópera: diante do decreto divino — tu não farás para ti nenhu-

ma imagem — Moisés confere à lei uma interpretação rigorosa. Para ele, Deus é

puro pensamento, uma forma absoluta que escapa de qualquer representação sensível. No entanto, no canto melodioso de Arão, sente-se a necessidade de dar à ideia absoluta alguma representação sensível.

Na ópera de Schoenberg, por tudo isso, tem-se a impressão de que Moisés e Arão são, no fundo, a mesma pessoa. Essa é a tragédia do humano em face do divino: corpo e alma versus puro espírito.

Numa linguagem contemporânea, talvez se pudesse dizer que Arão é um grande comunicador. Mas, para tornar inteligíveis os mandamentos, produz al- guma forma de distorção: mais inteligíveis, porém, não propriamente iéis.

Daí o desespero de Moisés, quando escuta o que diz Arão, motivo pelo qual o recrimina, chamando-lhe a atenção.

Essa possível incongruência comunicativa revela-se como um embate en- tre a razão (divina) e a emoção (humana). Entre a linguagem da Razão e a

linguagem da Emoção. Mesmo sendo apto a compreender os enunciados da

Razão, o homem fala emocionalmente a fala racional.

Schoenberg capta esse dilema maravilhosamente, mediante um recurso de grande expressividade.

Em sua ópera, a música domina, todos os personagens cantam, isto é, se expressam musicalmente. Salvo Moisés, que não canta!

Moisés fala o seu texto, sem interferência musical (nem melodia, nem rit- mo, nem harmonia musicais). Daí o dilema: estaria o povo compreendendo as leis (discurso da razão divina), quando as recebe na forma inebriada da melo- dia, isto é, mediante algo que lhes é apropriado: a emoção?

O contraste entre o divino (razão) e o humano (emoção) aparece na dis- tinção entre o racional (que tem a ver com o espírito puro, cuja expressão é, na ópera, o discurso recitado) e o sensível (música como pura sensibilidade).

Que os homens são sensíveis, sua entrega ao bezerro de ouro o demons- tra. Mas o demonstra mais a dança, a verdadeira bacanal que ocorre ao ensejo de uma melodia inebriante.

Arão, que se esforça por comunicar ao povo a lei divina (expressão da razão), o faz mediante música. Isto é, sabe que a lei (abstração, norma geral,

enunciado meramente válido, puro dever-ser), por si só, não atinge a dimensão sensível do ser humano. Uma forma antecipada, talvez, de entender a oposição entre ser e dever-ser, realidade e normatividade. Daí o sentido do seu esforço: tornar sensível o que pertence ao mundo do insensível, ou melhor, do inteligível (mundus sensibilis ac intelligibilis).

Moisés diz o inteligível. Na sua fala não há sensibilidade (música). Mas Moi- sés sabe também que é preciso valer-se do sensível para comunicar o inteligí- vel: é necessário o corporal para manifestar o espiritual. Seu desespero está em que, mesmo sabendo-o, sabe mais, pois foi escolhido por Deus para receber

diretamente (imediatidade da comunicação racional) a lei. A lei é razão, é inte-

lecto, é espírito. Daí, talvez, a expressão: espírito da lei e o ensinamento romano de Celsus: scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem (saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e seu poder).

Como, porém, fazer compreender a lei mediante a sensibilidade sem de- turpar-lhe a racionalidade?

A ópera de Schoenberg — Moses und Aron — é um trabalho inacabado. O autor faleceu (num estúpido acidente: voltava para casa, após a segunda Guerra Mundial, for do horário permitido e foi alvejado pelo policial militar que o advertia com uma ordem de cessar qualquer movimento) antes de concluí-la. Na verdade, antes de concluir a música. O texto do libreto, porém, é completo. Musicados foram o primeiro e o segundo ato. O terceiro nunca o foi. Na ver- dade, porque Schoenberg relutou por muito tempo em dar-lhe o acabamento. Uma dúvida o assaltava: o terceiro ato, constituído de uma só cena, deveria ser apenas falado ou deveria ser musicado?

A completude do libreto e a incompletude da música acabaram por pro- duzir um resultado surpreendente.

A ópera só pode ser representada na forma incompleta. Isto é, cessa num clima trágico: a lei divina não é entendida pelo povo. A incomunicabilidade en- tre razão e sensibilidade (fala e música) triunfa. Não há conciliação.

No libreto, Schoenberg, no entanto, escreve mais um ato (não musicado por causa de sua morte prematura), em que parece esboçar-se uma conciliação.

A Moisés é retirado o direito de penetrar a terra escolhida e o povo é obrigado a peregrinar por mais quarenta anos. Mas, ao inal, ocorre uma curio- sa alteração do relato bíblico. Neste, Arão se retira e não é punido. Na ópera, Schoenberg faz Arão ser trazido perante Moisés, aprisionado em correntes. Moisés, porém, o libera. Contudo, Arão, libertado, tomba sobre o solo, como uma árvore quando abatida. O que nos faz pensar que o princípio dualista, ele próprio de origem racionalista, não seria compatível com a totalidade mítica do tema. Ainal, a própria música composta por Schoenberg não deixava de ser manifestação sensível. Diante desse paradoxo — quando Arão, no momento em

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que se liberta, morre — Schoenberg acaba por assumi-lo: a imagem que ele se faz da interdição de fazer imagens (negação do sensível) tomba, por sua vez, diante da própria interdição divina. De um lado, o triunfo divino. De outro, o paradoxo da vida humana.

Qual o signiicado disso para o direito? Ou, em que sentido pode-se ver nessa ópera algum aspecto jurídico?

Do ponto de vista da arte (emoção), não é possível saber se, ao inal, Moi- sés também cantaria: nada foi composto por Schoenberg, do qual temos ape- nas as falas do personagem.

Assim, como o libreto do último ato é mudo (musicalmente), resta inevi- tável a grande interrogação: como é possível, para o ser humano, ser racional e sensível ao mesmo tempo? Falar e cantar? Compreender leis com a razão e obedecer a elas com a emoção?

Em suma e trazendo o tema para o campo jurídico.

As leis, supostamente, dão um sentido (racional ou, pelo menos, razoável) à ação. O sentido das normas vem, assim, desde o seu aparecimento, “domes- ticado”’. Disso se encarrega o intérprete. Mesmo quando, no caso de lacunas, integramos o ordenamento (por analogia, por princípios gerais, até por equida- de, dando, nesse caso, a impressão de que o intérprete está guiando-se pelas exigências do próprio real concreto), o que fazemos, na verdade, é guiar-nos pelas próprias avaliações do sistema interpretado. Essa astúcia da razão dog- mática põe-se, assim, a serviço do enfraquecimento das tensões sociais, na medida em que neutraliza a pressão exercida pelos problemas de distribuição de poder, de recursos e de benefícios escassos. E o faz, ao torná-los conlitos abstratos, isto é, deinidos em termos jurídicos e em termos juridicamente in-

terpretáveis e decidíveis. Quem desvia o dinheiro depositado pelo cliente no

banco vê, de repente, que muitas das justiicações subjetivas para seu ato não contam. Seu desejo de comprar o que a propaganda incessante do comércio lhe oferece acima de suas posses não tem, para o conlito neutralizado (racio-

nalizado dogmaticamente) pela hermenêutica, o sentido objetivo que o direito

reclama (embora, em pequena escala, lhe parecesse objetivo: em seu círculo de relações, seria compreensível, ainda que não justiicável). Desse modo, a hermenêutica possibilita uma espécie de neutralização dos conlitos sociais, ao projetá-los numa dimensão harmoniosa — o mundo do legislador racional — no qual, em tese, tornam-se todos decidíveis. Mas, assim, ela não elimina as con- tradições, apenas as torna suportáveis. Portanto, propriamente não as oculta, mas as disfarça, trazendo-as para o plano de suas conceptualizações racionais.

Repete-se, pois, na hermenêutica, o que ocorre no drama de Moisés e Arão. Enquanto aquela, porém, exerce sua função ao isolar o direito num sistema racional, o saber interpretativo conforma o sentido do comportamento social

No documento Direito, cultura POP e cultura clássica (páginas 196-200)