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O CONCEITO CULTURA NA

C APÍTULO 18 A BLASFEMIA E A EUFEMIA

Este curto artigo, publicado no L’analyse du langage théologique: il nome di dio97, é

fruto de um colóquio organizado pelo Centro Internacional de Estudos Humanistas e pelo

97 Organizado pelo Centro Internazionale di Studi Umanistici e pelo Instituto di Studi Filosofici, esse livro, dirigido por Enrico Castelli, reúne os anais de um evento ocorrido em Roma, entre os dias 5 e 11 de janeiro de 1966, sendo

Instituto de Estudos Filosóficos de Roma. Nele, Benveniste empreende uma análise da relação entre blasfemia e eufemia. A blasfemia, segundo o autor, compreende “um processo de fala; ela consiste, de uma certa maneira, em substituir o nome de Deus por sua injúria” (2006[1966f], p. 260). A eufemia, por seu turno, representa uma censura à blasfemia, dado que corrige a expressão, mascarando-a. Em sua análise, Benveniste constata que a blasfemia não se serve à comunicação, sendo somente expressiva. Segundo ele, no recorte 13,

RECORTE 13:

[...] é preciso prestar atenção à natureza desta interdição que recai não sobre o “dizer alguma coisa”, que seria uma opinião, mas sobre o “pronunciar um nome”, que é pura articulação vocal. É propriamente o saber linguístico: certa palavra ou nome não deve passar pela boca. Ela é simplesmente suprimida do registro da língua, apagada do uso, não deve mais existir. Entretanto, é esta uma condição paradoxal

do tabu, este nome deve ao mesmo tempo continuar a existir enquanto interdito. É

assim, enquanto existente-interdito, que se deve igualmente estabelecer o nome divino, mas, do princípio ao fim, a proibição se acompanha das mais severas sanções, e é acolhida entre povos que ignoram a prática do tabu aplicada ao nome dos mortos. Isto sublinha mais fortemente ainda o caráter singular deste interdito do nome divino (2006[1966f], p. 260, grifo negrito nosso).

A análise benvenistiana dessa forma de tabu linguístico demonstra como, no funcionamento da linguagem, cultura “consiste numa multidão de noções e de prescrições, e também em interdições específicas” (2005[1963b], p. 32) que dirigem o comportamento do locutor, ao assumir a língua em uma instância de discurso específica, “em todas as formas da sua atividade” (2005[1963b], p. 32). Em sua rede de filiações, Benveniste dialoga, nesse artigo, diretamente, com os estudos de Freud, por meio de citação; e indiretamente com os trabalhos de Meillet e de Havers, por meio de ressonância com o texto de 1954a.

Com relação a Freud, Benveniste cita a análise por ele empreendida, na qual caracteriza o tabu em sua ambivalência. Segundo Freud, aqueles homens que obedecem a essa proibição têm, em seu inconsciente, a tendência a transgredi-la, dado que, imposta por uma autoridade, dirige-se “contra os desejos mais intensos do homem”. A ambivalência, nesse caso, para Freud, está entre obedecer e se ter o desejo de transgredir.

Em 2005[1954a], Benveniste, discorrendo sobre a relação entre língua e sociedade, afirma que “a ação das ‘crenças’ sobre a expressão levanta numerosas questões das quais algumas foram estudadas: a importância do tabu linguístico (Meillet, Havers)” (2005[1954a],

publicados em 1969, sobre linguagem teológica. Além do artigo de Benveniste, essa obra conta com trabalhos de Jean Starobinski e Paul Ricoeur, para citar alguns.

p. 16). Retomando a questão no artigo em análise, de 1966f, julgamos que Benveniste coloca em funcionamento, em sua rede de filiações, os estudos desses dois linguistas. No que concerne a Wilhelm Havers (1879-1961), linguista germano-austríaco, que se dedicou ao estudo da filologia e da linguística, o diálogo efetua-se, em especial, com relação a sua classificação dos tabus. Em seu livro Neuere Literatur zum Sprachtabu, publicado em 1946, Havers classifica os tabus em: “1.°) nomes de animais; 2.°) nomes de partes do corpo; 3.°) fogo; 4.°) sol e lua; 5.°) doenças, lesões e anormalidades; 6.°) nomes de deuses e demônios” (HAVERS apud MANSUR GUÉRIOS, 1955, p. 12). No artigo em análise, embora Benveniste não cite diretamente Havers, como feito no artigo de 1954a, ele analisa o tabu em relação aos nomes de deuses, tal como classificado por Havers.

Já Meillet, em seu estudo sobre o tabu, diz que:

[...] parece que certas palavras são proibidas pelo uso, seja para um grupo de homens, seja para certos indivíduos, durante certos períodos, em certas ocasiões; é “tabu” por exemplo o nome de um morto, o de um chefe, o dos membros da família onde tomamos uma esposa, etc.; e o tabu não apenas afeta os nomes próprios em questão, mas se estende aos nomes comuns, idênticos ou não a esses substantivos, que soam de maneira idêntica ou análoga, ou mesmo parcialmente análoga. De maneira geral, a ausência de um nome indo- europeu comum em condições que, a priori, seria de esperar encontrar um sempre chama uma explicação, e isso não é forçar a importância do princípio das interdições linguísticas do que atribuir a tipos de “tabus” a inexistência de um termo indo-europeu para uma noção que normalmente deveria ser um98

(MEILLET, 1948[1921], p. 280, tradução nossa).

Nesse momento, Meillet discorre sobre o tabu no indo-europeu, definindo-o como “palavras proibidas pelo uso”. O autor pontua, ainda, que a ausência de um nome indo-europeu onde se esperaria encontrar um exige uma explicação. Benveniste, no artigo em análise, defende que essa “ausência”, “mascarada pela eufemia”, é apenas ilusória, dado que o tabu continua existindo como “interdito”, por isso constitui-se, do ponto de vista de Benveniste, em uma relação paradoxal, uma vez que significa em sua ausência-presença.

Consideramos que, no artigo em análise, consoante com Oliveira (2018, p. 233), “Benveniste dá visibilidade ao funcionamento inconsciente da linguagem, e também ao

98 « […] il apparaît que certains mots sont interdits par l’usage, soit à un groupe d’hommes, soit à des individus déterminés, soit durant certaines périodes, en certaines occasions ; on « taboue » par exemple le nom d’un mort, celui d’un chef, celui des membres de la famille où l’on prend femme, etc. ; et le tabou ne touche pas seulement les noms propres en question, mais il s’étend aux noms communs, identiques ou non à ces noms, qui sonnent d’une manière identique ou analogue, ou même partiellement analogue. […] D'une manière générale, l’absence d’un nom indo-européen commun dans des conditions où a priori on s’attendrait à en trouver un appelle toujours une explication, et ce n’est pas forcer l’importance du principe des interdictions linguistiques que d’attribuer à des sortes de « tabous » l’inexistence d’un terme indo-européen pour une notion qui en devrait normalement avoir um » (MEILLET, 1948[1921], p. 280).

funcionamento coercitivo da sociedade. Ele expõe a desigualdade dos sujeitos enquanto falantes, e os movimentos de imposição e de resistência não consensuais pela linguagem”. Ademais, para nós, o trinômio em foco está em funcionamento na análise de Benveniste, uma vez que, analisando o tabu linguístico, há em jogo a língua colocada em funcionamento por um locutor, o qual pertence a uma determinada sociedade-cultura. Esse locutor, por sua vez, ao colocar a língua em funcionamento, em uma determinada sociedade-cultura, (se) enuncia, fazendo-se significar-se/identificar-se para o outro, seu interlocutor.

*

Recordemos a epígrafe que selecionamos para abrir este capítulo: “ [...] o trabalho de Benveniste é sempre crítico; desmistificador, ele se dedica incansavelmente em derrubar preconceitos eruditos e em aclarar com luz implacável (pois esse homem de ciência é rigoroso) o fundo social da linguagem” (BARTHES, 1988, p. 182). Ao longo de nossas análises, buscamos ler - considerando as formulações teóricas de Benveniste, a circulação dessa teoria e a rede de filiações que essas formulações engendram em sua constituição - de que modo o conceito cultura foi discursivizado nos Problemas de Linguística Geral I e II. Concordamos com Barthes, quando ele diz que Benveniste lança “luz implacável [...] [a]o fundo social da linguagem”. Ele “derruba” “preconceitos eruditos” sobre a relação estabelecida entre língua e

sociedade-cultura, tal como compreendido em nosso gesto de leitura da teorização de

Benveniste.

Benveniste cita Sapir, considera-o em seu corpo teórico, mas não concorda com o delineamento que esse teórico dá à relação entre língua e sociedade-cultura; isso porque, do ponto de vista de Benveniste, ao analisar essa relação, Sapir volta-se para o nível histórico dessas duas entidades; nível em que não se pode estabelecer qualquer correlação entre elas. No entanto, em seu nível fundamental, essas duas entidades possuem, entre si, homologias: (1) são, para os homens, realidades inconscientes, (2) sempre herdadas e (3) que não podem ser mudadas pela vontade dos homens (cf. BENVENISTE, 2006[1968b], p. 96).

Com relação a Meillet, é interessante retomarmos uma entrevista, realizada por Pierre Daix, em 2006[1968a], com Benveniste, na qual ele o questiona sobre o que o levou à Linguística. Benveniste responde que:

[...] tive a oportunidade de entrar na carreira científica muito jovem e em grande parte sob a influência de um homem que foi um grande linguista, que

contribuiu fortemente para formar os linguistas e a modelar a linguística durante, pode-se dizer, os vinte ou trinta primeiros anos deste século, era meu mestre Antoine Meillet. Foi pelo fato de tê-lo encontrado muito jovem, quando de meus estudos na Sorbonne, e por eu ter, sem dúvida, muito mais gosto pela pesquisa do que pela rotina do ensino, que este encontro foi decisivo para mim. Ele ensinava estritamente a gramática comparada. É necessário aqui voltar um pouco antes, porque, através dele, foram os ensinamentos de Ferdinand de Saussure em Paris que foram em parte transmitidos aos discípulos de Meillet. Isto tem uma grande importância (BENVENISTE, 2006[1968a], p. 11).

Embora sendo colaborador de Meillet, Benveniste, como demonstramos, volta-se sobre a problemática relação entre língua e sociedade-cultura, a qual Meillet dedicou-se, teorizando- a de outro modo e, com isso, propondo novos rumos a essa problemática. Isso porque, conforme Benveniste aponta, o programa iniciado por Meillet não é irrealizável; contudo, para que continuasse, seria imprescindível “descobrir” o que se presta à comparação entre língua e

sociedade-cultura e os princípios que as regem. Em 2006[1968b], Benveniste dá sua resposta

a essa questão, distinguindo essas duas entidades nos níveis histórico e fundamental, delineando em que medida elas se prestariam à comparação.

No campo da Antropologia, é com Lévi-Strauss o diálogo mais notável. Benveniste e Lévi-Strauss, estabelecendo um diálogo interdisciplinar, cada qual em seu campo de observação e análise, voltam-se à problemática da relação entre língua e sociedade-cultura. Sobre essa problemática, consideremos os dizeres de Lévi-Strauss:

[...] o problema das relações entre linguagem e cultura é um dos mais complicados que existem. Pode-se, inicialmente, tratar a linguagem como um

produto da cultura: uma língua, em uso numa sociedade reflete a cultura geral

da população. Mas num outro sentido, a linguagem é uma parte da cultura; constitui um dos seus elementos, entre outros. Recordemos a célebre definição de Tylor para quem a cultura é um conjunto complexo que compreende as ferramentas, as instituições, as crenças, os costumes e também, bem entendido, a língua. Segundo o ponto de vista no qual se situa, os problemas colocados não são os mesmos. Mas não é tudo; pode-se também tratar a linguagem como condição da cultura, e por duplo motivo: diacrônico, visto que é sobretudo através da linguagem que o indivíduo adquire a cultura de seu grupo; instrui-se, educa-se a criança pela palavra; ralha-se com ela, lisonjeia- se com palavras. Situando-se de um ponto de vista mais teórico, a linguagem aparece também como condição da cultura, na medida em que esta última possui uma arquitetura similar a da linguagem. Ambas se edificam por meio de oposições e correlações, isto é, de relações lógicas (LÉVI-STRAUSS, 1989[1952], p. 86, grifo itálico do autor).

Lévi-Strauss aborda os diferentes ângulos do problema. Nessa abordagem, ele diz ainda que “a linguagem é ao mesmo tempo o fato cultural por excelência (distinguindo o homem do

animal) e aquele por intermédio do qual todas as formas de vida social se estabelecem e se perpetuam” (LÉVI-STRAUSS, 1989[1952], p. 399). Benveniste, por seu turno, assevera: “Vemos sempre a linguagem no seio da sociedade, no seio da cultura” (BENVENISTE, 2006[1968a], p. 23-24). Os pontos de contato entre eles existem; contudo, o ponto de vista sobre o qual cada um analisa a sociedade-cultura é distinto. Benveniste é linguista e sua teorização, conforme defendemos, edifica-se tendo por base o trinômio língua, cultura, personalidade; esse aspecto imprime, no todo de sua obra, uma distinção fundamental, da qual diríamos, ainda, autoral.

Conforme destacamos, Benveniste coloca no centro de sua problemática a significação, não analisa a língua por ela mesma e em si mesma, isso porque a língua, sendo um sistema de valores, deriva esses valores da cultura, que é em si um fenômeno inteiramente simbólico. Logo, por conceituar a língua-discurso, isto é, a língua em emprego e em ação, para Benveniste, não há forma sem sentido, por isso a significação é o fundamento. Em outros termos, o valor de uma forma está na relação que ela contrai na paradigmatização; por isso, o sentido da palavra (na frase) é seu emprego. Esse sentido carrega em si “uma estratificação da cultura que deixa seu traço nos diferentes empregos possíveis” (BENVENISTE, 2006[1968a], p. 22), ou seja, por meio da cultura, os sentidos aparentemente se “cristalizam”.

Assim sendo, de nosso ponto de vista, na teorização benvenistiana, cultura não é simplesmente uma ideia, é um conceito fundante de sua Linguística Geral, o qual, relacionado com os conceitos língua e personalidade, permite delinear uma teoria das atividades simbólicas do homem.