• Nenhum resultado encontrado

O CONCEITO LÍNGUA NA L INGUÍSTICA

C APÍTULO 4 N ATUREZA DO SIGNO LINGUÍSTICO

56 É válido destacar que o grifo itálico, nesse caso, refere-se à formatação dos tradutores, e não a uma marcação empreendida pelo próprio Benveniste em sua formulação.

Esse artigo, o mais antigo da coletânea Problemas de Linguística Geral, foi publicado na revista Acta linguística I57, em 1939, em Copenhague. Sua publicação provocou e ainda

provoca inúmeras controvérsias no campo de estudos da Linguística. Nele, Benveniste retoma a teoria do signo linguístico proposta por Saussure de modo a analisar o caráter arbitrário atribuído pelo autor. Em suas considerações, Benveniste analisa que Saussure, ao estabelecer a arbitrariedade, embora querendo excluir, reintroduziu a realidade nessa definição, gerando uma “contradição entre a maneira fundamental como [...] define o signo linguístico e a natureza fundamental que lhe atribui” (BENVENISTE, 2005[1939], p. 55). Para Benveniste, do ponto de vista do locutor, o laço que une o significante e o significado é necessário, não arbitrário, dado que o caráter arbitrário se aplica à realidade, ao exterior à língua, e não à constituição do signo. Saussure pensa, segundo Benveniste, na “representação do objeto real”, quando exemplifica a arbitrariedade. Isso, do ponto de vista de Benveniste, produz uma contradição no projeto teórico de Saussure, conforme veremos na sequência. Desse artigo, selecionamos um recorte para análise.

RECORTE 4:

[...] o que é arbitrário é que um signo, mas não outro, se aplica a determinado elemento da realidade, mas não a outro. [...] O domínio do arbitrário fica assim relegado para fora da compreensão do signo linguístico. [...] O arbitrário só existe aqui em relação com o fenômeno ou objeto material e não intervém na constituição própria do signo. [...] O mérito dessa análise [a de Saussure] não é diminuído em nada, mas ao contrário muito reforçado se se especifica melhor a relação à qual realmente se aplica [...] O que Saussure demonstra permanece verdadeiro, mas

a respeito da significação, não do signo. [...] Na realidade Saussure pensa sempre,

embora fale de “ideia”, na representação do objeto real e no caráter evidentemente não necessário, imotivado, do elo que une o signo à coisa significada. [...] Trata-se, aqui, não mais do signo isolado mas da língua como sistema de signos e ninguém, tão firmemente como Saussure, concebeu e descreveu a economia sistemática da língua. Quem diz sistema diz a organização e adequação das partes numa estrutura que transcende e explica os seus elementos. Tudo aí é tão necessário que as modificações do conjunto e do pormenor se condicionam reciprocamente. A relatividade dos valores é a melhor prova de que dependem estreitamente uns dos outros na sincronia de um sistema sempre ameaçado, sempre restaurado. [...] Se a língua é algo além de um conglomerado fortuito de noções erráticas e de sons emitidos ao acaso, é porque há uma necessidade imanente à sua estrutura como a toda estrutura. [...] o signo, elemento primordial do sistema linguístico, encerra

um significante e um significado cuja ligação deve ser reconhecida como

57 A Acta Linguistica: Revue Internationale de Linguistique Structurale foi fundada em 1939, em Copenhague, por Louis Hjelmslev e Viggo Bröndal, constituindo um periódico voltado à divulgação de estudos em linguística estrutural. No volume em que o artigo de Benveniste foi publicado, autores importantes ao estruturalismo dito ortodoxo publicam trabalhos, tais como Hjelmslev, Bröndal, Trubetzkoy.

necessária, sendo esses dois componentes consubstanciais um com o outro (2005[1939], p. 56-59, grifo itálico do autor e negrito nosso).

É válido destacar, de início, que Benveniste refere-se à recepção desse artigo no prefácio dos Problemas de Linguística Geral I. Nesse momento, ele afirma: “o estudo ‘Natureza do signo linguístico’ [...] provocou vivas controvérsias e deu origem a uma longa série de artigos”. Embora isso tenha ocorrido e tenha sido constatado por Benveniste, mesmo assim, ele opta por figurá-lo, em 1966, em seu Problemas de Linguística Geral I, vinte e sete anos após a divulgação do artigo, tal qual foi escrito em 1939. Esse ato, em si, constitui um acontecimento importante, dado que nos permite ler que o autor não voltou atrás em sua argumentação, mantendo seu posicionamento teórico. De nosso ponto de vista, esse artigo é, sem sombra de dúvidas, relevante ao ponto de vista teórico de Benveniste, dado que nele já está apresentada sua tomada de posição pelo estudo da significação.

No recorte 4, Benveniste retoma o princípio da arbitrariedade do signo linguístico, tal como proposto por Saussure, e explicita em que medida, de seu ponto de vista, que é o da

significação e o do uso da língua, há uma contradição na compreensão saussuriana desse

princípio. De acordo com Saussure: “o laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário” (SAUSSURE, 2006[1916], p. 81, grifo itálico do autor). Pela palavra “arbitrário”, Saussure ressalta:

[...] a palavra arbitrário requer também uma observação. Não deve dar a ideia de que o significante dependa da livre escolha do que fala (ver-se-á, mais adiante, que não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez que esteja ele estabelecido num grupo linguístico); queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade (SAUSSURE, 2006[1916], p. 83, grifo itálico do autor).

Em outros termos, Saussure, em sua análise, visa mostrar que não há ligação natural entre signo e realidade. A “arbitrariedade” de que fala Saussure se estabelece entre o significado e o significante. Para ele, cada signo só adquire valor pela relação e pela oposição que estabelece com outros signos no interior do sistema. Benveniste mostra, por sua vez, que o signo, para estar estabelecido num grupo linguístico, deve significar algo simbolicamente, deve efetivar sua função simbólica. Benveniste leu Saussure e isso o leva a formular dois níveis de compreensão da língua: o nível histórico e o nível fundamental, que em Saussure aparecem

indistintos produzindo certa indistinção entre eles. É Benveniste quem capta essa diferença e a

formula.

Benveniste, voltando sua análise sobre esse princípio saussuriano, no recorte (4), constata que, contrariamente ao que defende Saussure, a relação estabelecida entre significante e significado, do ponto de vista do locutor, não é arbitrária, mas necessária. Para Benveniste, entre o significante e o significado, no nível semiótico, língua-sistema, a relação é necessária, uma vez que se lida com possibilidades. Sendo que, quando se efetiva/estabelece o uso da

língua, no nível semântico, língua-discurso, a relação é arbitrária. Benveniste, ao distinguir nível histórico e nível fundamental, expõe a impossibilidade de separá-los, isso porque, quando

se volta sobre o princípio de classificação, não tem como se furtar ao uso da língua, dado que irá mobilizar uma língua específica, um idioma, lidando com o nível histórico. Diz Benveniste que “esses dois componentes [são] consubstanciais um com o outro” e não remetem à realidade. Sendo assim, é necessária a união de um significante a um significado para a constituição de um signo linguístico, sendo que, entre eles, nada da realidade fundamenta e vincula essa relação; refere-se, assim, à designação, à forma. A arbitrariedade, para Benveniste, no uso da

língua, constitui a relação entre o sentido e a referência; refere-se à significação, ao sentido.

Sobre isso, retomamos aqui Agustini e Rodrigues (2018), os quais, ao analisar o conceito língua na teorização de Benveniste, assinalam que, para Benveniste,

[...] o signo, unidade de uma álgebra de valores puros, é arbitrário em sua constituição, como afirma Saussure; mas, do ponto de vista do locutor, não há signo que não seja determinado por seu exterior constitutivo: a referência e, em decorrência, o sentido. Portanto, analisada do ponto de vista da significação, do discurso, do locutor, a relação indissociável entre significante e significado que constitui o signo linguístico é necessária. Esse laço necessário é fundamental para que a língua exerça sua função própria que é, segundo lemos em Benveniste, a de significar: a “língua [...] não tem outra função a não ser ‘significar’” (AGUSTINI; RODRIGUES, 2018, p. 26-27).

Benveniste, em 1939, já coloca em operação, em sua formulação, os dois domínios de significância da língua que só serão nomeados em 1966a. Nessa data, vinte e sete anos após a publicação do artigo objeto dessa análise, Benveniste reafirma: “[...] é desta confusão extremamente frequente entre sentido e referência, ou entre referente e signo, que nascem tantas discussões vãs sobre o que se chama o princípio da arbitrariedade do signo” (2006[1966a], p. 231). O autor parece dialogar, aqui, com os trabalhos produzidos a partir do artigo “Natureza do signo linguístico”, asseverando a incompreensão da distinção entre “sentido e referência”.

O ponto de vista de Benveniste faz com que ele veja ali um ponto de distinção entre o seu pensamento e o de Saussure. Esse ponto participa constitutivamente da produção do efeito

autoral que incide sob sua reflexão teórica. É na e por meio dessa análise que Benveniste propõe sua Linguística Geral. Ele diz: “o que Saussure demonstra permanece verdadeiro, mas a respeito da significação, não do signo”. Observemos: o grifo em itálico feito por Benveniste em “significação” produz ambiguidades, aberturas nas quais o equívoco produz diferentes efeitos de sentidos. Em outros termos, por meio do acréscimo dessa marcação tipográfica, “o sujeito trapaceia com a incompletude e com sua dispersão, produzindo imaginariamente a imagem do Um, do Completo, do Acabado, do Finito” (ORLANDI, 2012, p. 126), resistindo à dispersão dos sentidos. Esse conceito, na teorização dos dois autores, não se reveste de uma mesma definição. Saussure compreende por “significação” a constituição interna do signo linguístico (cf. SAUSSURE, 2006[1916], p. 133). Benveniste, por seu turno, estabelece que a significação da língua é dada pela articulação em duas dimensões: o modo semiótico e o modo semântico, isto é, relaciona forma e sentido, a realidade do signo e o uso da língua em uma situação discursiva. Daí podermos dizer que a significação se refere ao funcionamento do semiótico e do semântico no processo discursivo.

Já aqui, sem nomear diretamente, Benveniste esboça o acontecimento fundante de sua Linguística Geral. De acordo com Guimarães (2018, p. 37-38), esse artigo constitui um

acontecimento no âmbito dessa teorização, dado que “a distinção entre forma e sentido opera

como fundamental”. Essa distinção é decisiva para a concepção benvenistiana dos dois modos de significância da língua. Agustini e Rodrigues (2018), por seu turno, analisando o estatuto do conceito língua em/de Benveniste, afirmam que esse conceito, na teorização do autor, é distinto do conceito “língua” em Saussure. Em sua análise, Agustini e Rodrigues (2018, p. 19) asseveram que

[...] o conceito de língua em Benveniste é um conceito forjado nos limites da própria linguística de Benveniste; é um conceito autoral, embora em relação de filiação a Saussure. O traço decisivo que sustenta esse efeito autoral em Benveniste, no que concerne à concepção de língua, como procuramos mostrar, diz respeito ao modo como a língua é ali pensada a partir do lugar da significação – a cabeça de Medusa que marca o que é central na língua, em seu funcionamento. A partir desse lugar, compreende a língua como funcionamento que é duplo, o que coloca a forma como correlato do sentido: o semiótico como correlato do semântico.

O conceito língua é mobilizado por Benveniste em seu nível fundamental, como sistema de formas significantes, isto é, a língua-sistema, retomando a definição saussuriana de língua como “sistema de signos linguísticos”. Mas não só: Benveniste, ao explorar o princípio arbitrário próprio à significação, mobiliza o conceito língua, também no nível fundamental, compreendido como atividade discursiva, ou seja, como língua-discurso.

SEGUNDA PARTE –A COMUNICAÇÃO