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Cada um por si e Deus por todos

No documento Vida cigana (páginas 132-137)

3.5 OS CALÓNS DE TRINDADE

3.5.3 Cada um por si e Deus por todos

Minervina Machado é irmã de Jesus Cigano. As marcas da vida de sofrimento e privações estão estampadas no rosto triste e num corpo debilitado. Minervina tem sérios problemas de saúde como ela mesma relatou: “Tenho problema

cardíaco, sou operada, olha aqui o curativo. Três vezes. Eu tenho arritmia. Eu tenho marca-passo, olha aqui ó!” (MACHADO, 2013). As questões de saúde exigem que ela utilize medicação contínua, o que implica em deslocamentos até a unidade de saúde para realizar consultas ou buscar medicação gratuita. Ocorre que no bairro em que reside não há posto e nem mesmo os agentes de saúde visitam as casas. A desassistência pelo poder publico foi relatada pelos ciganos em um misto de desabafo e revolta: “Aqui é cada um por si e Deus por todos” (SANDRA, 2013).

Figura 11 - Minervina Machado e sua filha, em sua casa, no bairro cigano de Trindade, GO (2013).

Fonte: Acervo da autora (2013).

Dessa forma, Minervina tem que fazer um grande esforço para ir à unidade de saúde mais próxima, o que nas suas atuais condições é um grande sacrifício.

Aqui nem o agente do posto passa. [...] Eu tenho que ir lá embaixo pedir remédio e mesmo assim não tem para me dar. Tem dia que eu volto doente. Agora anteontem eu fui lá, que ela me deu. Se eu quiser remédio eu preciso comprar. Eu sou uma mulher doente e tomo quatro remédios por dia. [...] Se eu não tomar esses remédios aqui eu morro (MACHADO, 2013).

As dificuldades de Minervina, não se resumem somente a saúde. A casa em que mora tem poucos cômodos, não tem energia, e nem banheiro. As carências da moradia são preenchidas pela solidariedade dos vizinhos, também ciganos, e que se encontram em condições um pouco melhores do que ela.

Eu sou pobre e não tenho nada na minha casinha. Nem água, nem banheiro, nem nada. Quer fazer as coisas vai no mato. Na casa dos vizinhos. Tem dia que a gente vai no mato, desse jeito.[...] Tem um vizinho ali que eu pago

energia para ele, a energia é paga. Ele deixa eu tomar banho lá, mas eu pago né? Quando chega no mês eu pago certinho (MACHADO, 2013).

A renda familiar de Minervina advém do trabalho do esposo, diabético, que tem uma carroça e faz frete em Goiânia, a 20 km de Trindade. Ela diz que a atividade com frete não é uma garantia de renda certa, pois há dias que tem e outros que não. As condições de saúde de Minervina e do esposo preocupam os familiares que pensam estratégias de assistência, mesmo vivendo em bairros diferentes.

Sandra, que é nora de Minervina, ao ser questionada se as ciganas de Trindade praticam a leitura de mão (quiromancia), respondeu:

Não, nóis não. A nossa tradição de cigano tem cigano de muito tipo. A nossa tradição é assim, lê,...mas num gosta Né igual outros que chega, já pega sua mão e acha que vai roubar você. Porque quem lê mão da gente é Deus. Porque se você chegar em casa e vai ler minha mão. Cê num vai ler minha mão não. Quem lê minha mão é Deus. Porque ninguém lê mão de ninguém. Ler mão para mim é roubo. Porque ninguém lê a mão de ninguém. Esse negócio de ler mão é mentira. É um jeito de pegar seu dinheiro. Nóis é trabalho, pra num precisar desse trem aí. [...] Acho que esse negócio de ler mão...vai ver o quê? O couro né? O couro os traço, igual a minha (SANDRA, 2013).

A resposta de Sandra além de denunciar uma descrença em relação a essa prática coloca em suspeita um aspecto muito forte no conjunto de representações sobre os ciganos. Indagada sobre o idioma calón, e os usos que a comunidade faz dele, afirmou que o mesmo vem sendo esquecido pelos ciganos mais jovens da comunidade. E atribui o pouco uso do idioma à dificuldade de aprendê-lo. Também disse que,

Antigamente, os antigo sabiam mais a língua do que nós. Eu? Tem muita coisa mesmo que eu não sei. Tem muito dos cigano mais antigo que sabe mais coisa que nóis. Sei as coisas básicas, mas tem muita coisa que os ciganos mais antigo sabem muito mais do que nóis. Tem coisa que eles sabem que eu não sei (SANDRA, 2013).

Para Sandra isso não constitui um problema, já que eles não têm uma preocupação com a preservação da língua. Ela diz que não usar o idioma não significa deixar de ser cigano. Acredita que alguns possuem o dom desde que nascem, e cita o exemplo dos filhos: “Meus meninos já nascem com o dom. Desde o começo. [...] Se tem alguma coisa que está errada e não pode falar em brasileiro, eu pergunto para ele, em língua cigana” (SANDRA, 2013).

Outro aspecto em que os ciganos de Trindade se diferenciam dos outros grupos ciganos é na estética visual. A esse respeito Sandra foi enfática:

Os ciganos de fora eles usa aquelas rouponas, aqueles brincão, aquelas coisonas, esses trem assim... E nós não usa. Nóis tá em um lugar assim... só se nóis falar se é cigano mesmo pra creditar . Ou se nóis conversar, diferente de vocês assim né? Do jeito que tem, nóis mistura com morador hoje em dia. Nóis tá num banco nóis mistura com eles. Só se nóis conversar ou alguém que tem muito conhecimento com cigano pra ver o sotaque. Ou se não pergunta assim: Cê é Limeira? De onde cê é menina? Cê é de Minas? Ou cê é carioca, de onde cê é? Seu sotaque não é igual ao nosso. Aí a gente fala: não. Sô cigano. E eu não tenho vergonha de dizer minha raça. Posso estar dentro do palácio do governo que eu sou cigana. É de boa (SANDRA, 2013).

Em relação aos casamentos Sandra disse que hoje os jovens são livres para escolher com quem casar, mas que a virgindade continua sendo uma exigência, apesar de eles terem abolido o dote. Afirmou que:

[...] De primeiro os pais obrigava a casar, agora hoje em dia não obriga. Casa se quiser. Igual essa minha. Ela casou com quatorze anos. [...] Ela casou tinha quatorze anos casou com um rapaz dois anos mais novo e separou. [...]. Aqui [...] ainda não tem o dote. Aqui [...] tem que casar virgem. Tem que casar virgem, mesmo com vinte, vinte e cinco anos. Casou, tem que ser virgem, casou tem que mostrar, uma prova que era moça (SANDRA, 2013).

Um valor importante hoje é a educação dos filhos. Para Sandra não existe nada na história dos costumes ciganos que impeça os filhos e filhas de seguirem os estudos até o nível superior. Contou que sua filha interrompeu os estudos, mas que pretende retomar. Isso denota que os ciganos de Trindade possuem outra forma de percepção da vida. O que os distingue de outros grupos mais conservadores em relação aos aspectos abordados.

Essa minha aqui [...] estava com doze e estava na sexta, desde quatro anos que ela estuda. Aí ela queria parar. Aí como eu era pobre não tinha condição, de formar ela, e mesmo assim ela parou ainda. [...] Parou na sétima. Ela casou. Agora ela está com plano de voltar pra escola de novo. Mas não chegou a voltar esse ano, porque a gente tinha recém voltado da praia e não tinha mais vaga para ela (SANDRA, 2013).

Até a rotina de viagens tem sido alterada em função dos estudos. Durante muitos anos os ciganos de Trindade costumavam fazer longas viagens de negócios para o Sul, durante o verão que durava muito tempo. Com a diferença do calendário de férias escolares entre as regiões Sul e Centro-Oeste as crianças acabavam se prejudicando nos

estudos. Foi a partir dessa constatação que os ciganos passaram a organizar suas viagens em sintonia com o calendário escolar. Quando as datas não são compatíveis, alguns pais preferem permanecer na cidade para não prejudicar os filhos, como é o caso de Sandra.

Esse ano eu não vou para praia. Por que, que eu num vou? Eu tenho um menino de doze anos, como eu perdi um ano de escola dele, já foi ruim para ele né? Agora esse eu não vou por causa da escola dele. A escola vai entrar dia 3 de janeiro já entra a escola pública de novo. Aí eu não vou por causa do meu filho. Não vou por causa do outro maior e tem esse pequeno que eu quero botar ele na escola. [...] É bom né? Dar condição para estudar e formar eles. Acho que em primeiro lugar hoje é o estudo para os meninos. (...) Agora hoje, no primeiro dia de aula tem que estudar. Essa minha desde os quatro anos estudava, desde os quatro anos de idade eu pus ela na escola (SANDRA, 2013).

As colocações dela, e de outras ciganas que participaram da conversa em Trindade, mas não se identificaram, permite entrever que na contemporaneidade não existe uma única leitura do indivíduo cigano. Esse fato, de acordo com Bauman (2000), citando Giddens, é uma característica da sociedade pós-tradicional em que vivemos. Isso implica que existe um excedente de tradições que levam a um excesso de leituras competindo continuamente por aceitação. No contexto cigano, por exemplo, quando um grupo mais conservador identifica hábitos diferentes dos seus, a tendência é que descredenciem ou subestimem essas atitudes diante dos demais.

Em Santa Catarina, durante a elaboração da dissertação de mestrado, observou-se que todas as vezes que se comentava com os entrevistados a respeito de outros grupos ciganos, se por acaso não pertencessem a sua rede de relações ou parentesco, imediatamente havia um estranhamento seguido de uma classificação: “Eles não são ciganos, são bugres” ou “são forrozeiros”. O termo bugre é uma denominação depreciativa que os europeus deram aos indígenas do Brasil, preconceituosamente classificados como selvagens, rudes, incivilizados e heréticos.

Essa distinção, apesar prescindir de mais estudos, pressupõe um forte recorte de classe. É que boa parte dos ciganos de origem Rom costuma atribuir um valor menor aos ciganos Calóns. Essa diferenciação pode ser uma herança do “estatuto de primos pobres” (BOURDIEU, 2007), que alguns países europeus dão a Portugal e a Espanha. Niklas Luhmann, referindo-se a múltiplos cenários e papeis que constituem a vidas das pessoas na atualidade, sugere que somos seres “parcialmente deslocados” e excluídos, “seja qual for o lado em que estivermos no momento” (LUHMANN, apud, BAUMAN, 2000, p. 30).

No documento Vida cigana (páginas 132-137)