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CULTURA E IDENTIDADE NA PÓS-MODERNIDADE

No documento Vida cigana (páginas 42-47)

Este capítulo busca apresentar uma discussão teórica a partir da análise dos episódios que compõem a radiorreportagem O povo cigano do Brasil, já mencionada na introdução desse trabalho. Apesar de reconhecer sua relevância para as discussões sobre ciganos do Brasil, é importante considerar o contexto em que foi elaborada e produzida, e quais foram as vozes que lhe deram sentido. O documentário, como já mencionado, foi idealizado por um grupo de jornalistas com o propósito de concorrerem ao prêmio Roquete Pinto de rádio. Participaram dele, além de ciganos, professores/pesquisadores (antropólogos, sociólogos), ciganólogos, políticos, padre, dentre outros, o que permite entrever as diferentes vozes que constituíram o sujeito cigano a partir de sua inscrição em determinadas formações discursivas construtoras de subjetividades.

A imprensa, na concepção de Martín-Barbero (1997), é um meio que historicamente reflete diferenças culturais e políticas, no intuito de corresponder ao modelo liberal. Ele enfatiza a condição que o rádio possui, desde o início, de mediar o popular, tanto técnica quanto discursivamente. Esse potencial do rádio, na concepção do autor, se deve à proximidade dele com o popular, evidenciando assim, a diversidade do social e do cultural.

Ainda sobre o rádio, Martín-Barbero (1997) acrescenta: “[...] é meio que, para as classes populares, está preenchendo ‘o vazio deixado pelos aparelhos tradicionais na construção de sentido’” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 315). Os aparelhos a que se refere o autor seriam a Igreja, a Escola e a Família, que por um longo tempo, constituíram-se em referência e canais de interlocução. Nesse sentido, caberia questionar qual é a constituição ideológica que está por trás da radiorreportagem O povo

cigano do Brasil.

A resposta para essa questão pode estar em Spivak (2010), para quem toda produção intelectual tem sempre uma filiação, ou em Martín-Barbero (1997), que não acredita na suposta transparência dos meios midiáticos. Para ele as tecnologias de comunicação são “em última análise a materialização de racionalidade de uma certa cultura e de um ‘modelo global de organização do poder’” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 256). Ou ainda em Goffman (2004) para quem as atitudes dos ditos normais em

relação a uma pessoa com um estigma, e os atos que praticam em relação a ela, já são conhecidos. Seriam respostas que a ação social benevolente busca atenuar e melhorar. No fundo não se acredita que uma pessoa com estigma seja “completamente humano” (GOFFMAN, 2004, p. 8).

Retornando às vozes que deram sentido à radiorreportagem, atribuindo a

vozes o poder concedido ou autoconcedido de representação, é importante questionar o

papel do intelectual no processo, que Spivak (2010) denomina de “falar pelo outro”. Para a autora o teórico se julga autorizado e qualificado a falar pelos outros. Isso implica em manter o oprimido em silêncio, reproduzindo, dessa forma, as estruturas de poder e opressão. Nesse sentido, ela adverte os intelectuais para o risco de que o subalterno24não seja simplesmente um objeto de conhecimento do qual o teórico deseja somente falar por ele.

Assumir o lugar do outro, ou falar por, presume a existência de um falante e de um ouvinte. No caso em que o intelectual decide falar por, a interação não acontece e o sujeito subalterno fica impedido de se autorrepresentar. Spivak (2010) enfatiza que quando a relação desejo/sujeito é desconsiderada ou vista como algo menor, o sujeito/efeito, ou sujeito/desejante que surge, irá assemelhar-se bastante ao sujeito ideológico generalizado do teórico (SPIVAK, 2010). Portanto, as falas que emergem na radiorreportagem falando pelos ciganos, merecem uma atenção especial no sentido de perceber se essas vozes estão representando os ciganos ou, se na pretensão de representá-los, não estariam de fato, como sugere Spivak (2010), representando a si mesmos.

2.1.1 Pós-modernidade: algumas percepções

O termo pós-modernidade tem suscitado uma série de definições, opiniões, discussões e controvérsias. Para Bauman (1999a), as sociedades pós-modernas são sociedades onde as certezas geradas no indivíduo moderno, ou seja, a “autoilusão” como ele intitula, desapareceram. A autoilusão do modernismo é a crença de que haveria uma verdade e que essa verdade triunfaria sempre, por ser ela de caráter universal. A verdade universal, linear, ou o conhecimento verdadeiro, aliados à ordem

24Spivak usa o termo “subalterno” para se referir “às camadas mais baixas da sociedade constituída pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p. 14).

política, produziria a certeza, elemento que Bauman (1999a) identifica como necessário a um projeto de dominação.

Com o desaparecimento da autoilusão na chegada da pós-modernidade, ter- se-ia “[...] o retorno ao local, a importância da tribo e da montagem mitológica [...]”, elementos que passariam a fazer parte da pós-modernidade (MAFFESOLI, 2004, p. 22). A pós-modernidade é definida por Maffesoli (2004, p. 21) como “a sinergia de fenômenos arcaicos e do desenvolvimento tecnológico [...]. Deve-se lembrar, decerto, que o arcaico — em seu sentido etimológico, aquilo é o primeiro, o fundamental — vê multiplicar seus efeitos pelos novos modos de comunicação interativa” (MAFFESOLI, 2010, p. 40).

Nesse sentido, o intuito desse retorno ao arcaísmo seria a busca dos indivíduos por solidariedade e proteção ou, como coloca Bauman (1999a, p. 263), a “[...] busca excessiva por comunidade”. Essas comunidades formar-se-iam por afinidades a partir de interesses compartilhados. Entretanto, apesar da busca por compartilhamento, essas comunidades não conseguiriam garantir a tão almejada

segurança, pois estariam sujeitas a constantes reconfigurações e extinções, que são

constituintes naturais da pós-modernidade ou, em suas palavras, “pós-modernidade líquida”.

“Pós-modernidade líquida” 25 ou “mundo líquido” é uma noção da qual Bauman (2011, p.7) se utiliza para falar do que “jamais se imobiliza” ou “conserva sua forma por muito tempo”. Assim, a sociedade pós-moderna líquida é uma sociedade onde não há estabilidade, onde as pessoas são constantemente atravessadas por valores e ideias que, a qualquer momento, instantaneamente, podem ser descartados. Essa ausência de valores fixos, concretos, permanentes é que irá diferenciar a pessoa pós- moderna dos indivíduos modernos. Na concepção de Lyotard (1989), o indivíduo pós- moderno passou a existir como tal a partir da entrada das sociedades na era pós- industrial e da descrença dos mesmos nas metanarrativas. Com o descrédito da metanarrativa surge o domínio da linguagem da informática, oriunda da revolução tecnológica (LYOTARD, 1989).

O termo pós-modernismo foi utilizado pela primeira vez pelo espanhol Frederico de Onís, na década de 1930 (ANDERSON, 1999). Já o conceito foi elaborado

25Esse conceito foi apresentado primeiramente no Manifesto Comunista (1848), “derreter os sólidos” para explicar a forma pela qual o espírito moderno se dirigia à sociedade, considerada rígida e inflexível, para a necessária adaptação aos novos tempos.

e difundido por Lyotard em sua obra A Condição Pós-Moderna (1979), e posteriormente por muitos outros teóricos. Por essa diversidade e abrangência, e por envolver diferentes áreas do conhecimento, é que se tornou impossível chegar-se a um consenso teórico no que diz respeito a esse fenômeno. Pós-modernismo, dessa forma, tornou-se um conceito em efervescência, com argumentações e interesses políticos tão antagônicos e conflituosos que não poderia passar despercebido (HARVEY, 2012).

Numa tentativa de síntese teórica pode-se dizer que o pós-modernismo trata- se de um movimento teórico multidisciplinar que engloba as artes, a filosofia, a sociologia, a estética e o meio institucional. E que o ponto de convergência desses campos seria a resistência deles em relação à modernidade, mais especificamente em relação à razão iluminista (HARVEY, 2012).

Outros autores, dentre eles Habermas, não compreendem a pós-modernidade como uma ruptura com o modernismo. Para estes, a pós-modernidade teria sido motivada por dúvidas e decepções em relação ao projeto da modernidade, portanto, ela seria mais um “estado de consciência” (HABERMAS, 1992, p. 109). A pós- modernidade, nesses termos, tem como primeiro pressuposto o fato de que ela experimenta “uma descontinuidade, o distanciamento em relação a uma forma de vida ou de consciência na qual anteriormente se havia confiado de maneira ingênua e irrefletida” (HABERMAS, 1992, p. 127).

Entretanto, para os pós-modernos, o pós-modernismo tem sido, com frequência, caracterizado como o “fim de algo”, como explica Jameson (2006):

A pós-modernidade tem sido, no mais das vezes caracterizada como o fim de algo (por mim, assim como por várias outras pessoas); não é de surpreender, quando temos que lidar com o surgimento de todo um novo modo de viver o cotidiano, que índices aleatórios de mudanças devem ser mensurados e teorizados no lugar de uma forma completa ainda ausente (JAMESON, 2006, p. 157).

Ou ainda, caracteriza-se como uma mudança nas práticas e nas formações discursivas que diferenciam o paradigma pós-moderno de seu precedente (HUYSSENS,

apud HARVEY, 2012). Eagleton indica o fim das metanarrativas que tinham como

função validar a universalização da história humana. O pós-modernismo, nesses termos, seria “o despertar para o pluralismo, para a variação de estilos de vida e jogos de linguagem” (EAGLETON, apud HARVEY, 2012, p. 19). Trata-se da ruptura com a visão monótona do modernismo de perceber o mundo.

Sua origem pode ser percebida a partir das transformações sociais, econômicas e políticas que surgiram com o fim da Segunda Guerra Mundial, como um novo momento do capitalismo tardio ou capitalismo multinacional. E que se insere como uma ideologia nas estruturas sociais e culturais, com condições de promover mudanças profundas no modo de produção. O pós-modernismo, portanto, surge da sociedade pós-industrial, do descrédito da modernidade, da cultura como mercadoria, do fim de certas ideologias clássicas tanto do sujeito quanto da sociedade. Foi o fim dessas ideologias que levou o modernismo a perder sua aura revolucionária, dando lugar a uma ideologia reacionária e conservadora (EAGLETON, 2008; HARVEY, 2012).

A fase pós-ideológica fez com que a sociedade parasse de questionar, de se preocupar com o bem público, e passasse a buscar, única e exclusivamente, a satisfação pessoal (BAUMAN, 1999a). Essa autorrealização individualizada, juntamente com a institucionalização do poder e da opressiva racionalidade técnico-burocrática, advindas do capitalismo liberal e do imperialismo, forneceram um fundamento material e político que contribuiu para o surgimento de um movimento de resistência à hegemonia da alta cultura modernista. A contracultura, por se constituir em um movimento cosmopolita, transnacional e global, é considerada o “arauto cultural e político” da passagem para o pós-modernismo (HARVEY, 2012).

O advento do pós-modernismo dessa forma é apontado como a escassez do modernismo, representada pela institucionalização da criatividade rebelde, da massa

cultural composta por indivíduos que processam e influenciam a recepção de produtos

culturais confiáveis, e que produzem materiais populares para o público da cultura de massa. A base urbana, nessa concepção, com seus componentes culturais mediados pelo cinema, televisão e vídeo, está na raiz da virada pós-moderna (CHAMBERS apud HARVEY, 2012). Isso vai ao encontro da concepção adorniana de indústria cultural, como uma tendência histórica (JAMESON, 1995). A mediação do mercado global, portanto, via sistemas de comunicação midiáticos, estilos e linguagens próprios do processo pós-moderno, irá incidir nas identidades, tornando-as deslocadas de suas referências anteriores.

Dessa forma, os indivíduos pós-modernos, ao se fragmentarem, são desafiados continuamente a fazer escolhas, apesar da fragilidade a que estão expostos num mundo de incertezas e inseguranças. As escolhas com que os indivíduos pós- modernos são confrontados constituem-se em um problema, tanto por sua quantidade quanto por sua dinâmica sempre crescente (HALL, 2006; MELUCCI, 1996). Se para os

não-ciganos as escolhas tornam-se problemas, o que pensar para os ciganos, para quem escolher, na maioria das vezes, significa confrontar-se com a própria cultura?

2.2 NOMADISMO E SEDENTARIZAÇÃO

No documento Vida cigana (páginas 42-47)