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Nomadismo cigano e capitalismo

No documento Vida cigana (páginas 53-57)

2.2 NOMADISMO E SEDENTARIZAÇÃO

2.2.2 Nomadismo cigano e capitalismo

Buscando uma linha de fuga que apontasse outros direcionamentos para se compreender o nomadismo cigano é que se retomou o conceito de pós-modernismo, a partir do uso que Jameson (2006) faz dele. Nos termos do autor, pós-modernismo é mais um conceito de periodização, cuja função seria a de articular o aparecimento de novos aspectos formais da cultura, com elementos de um “novo tipo de vida social”, e também de uma “nova ordem econômica” (JAMESON, 2006). A nova ordem econômica ou “ordem social do capitalismo tardio” começou a ser percebida logo depois da Segunda Guerra Mundial.

A sociedade que surgia apontava para diferentes tipos de consumo, aceleração nos tempos e nos ritmos da vida social. Essas mudanças foram mais evidentes no campo da moda, da propaganda, das mídias, dos transportes, e também, das relações espaciais. É na questão espacial, mais especificamente da relação do rural com o urbano, que se pretende fazer uma análise da vida cigana.

O novo tipo de vida social expandiu-se, também, ao campo causando profundas transformações. A compra da mão-de-obra pelo capitalismo transformou a agricultura em indústria e os agricultores em meros operários. Esse fato provocou uma padronização dos indivíduos, levando-os ao desenvolvimento de hábitos que antes pertenciam a moradores da metrópole. Como por exemplo, o consumo de alimentos industrializados tais como manteiga, geleia, doces, biscoitos, que antes eram feitos de forma artesanal.

No Brasil, o processo de industrialização do campo, também afetou outros contingentes, como por exemplo, os ciganos. Nessa época, anos de 1960 e 1970, a maioria dos ciganos vivia uma vida nômade e sobrevivia de pequenos negócios. Vendiam e trocavam animais, mas negociavam também artigos manufaturados como arreios, selas para animais, etc. As mulheres colaboravam com o orçamento da família praticando a leitura de mão e rezas contra mau olhado.

Frans Moonen (2011), referindo-se a ciganos da Paraíba, explica que, no período citado, os ciganos levavam uma vida confortável, chegando até a possuir

patrimônio constituído de joias, dinheiro e animais. Em sua concepção, foi com a industrialização do país que a realidade dos ciganos começou a mudar. O crescimento da produção de automóveis e a abertura de novas estradas causaram muitos prejuízos ao comércio de animais, principal renda desse coletivo. Diz que eles sofreram outro baque com a mecanização do campo, pois os poucos animais que vendiam para ser usados na lavoura já não eram mais necessários.

Moonen (2011) acrescenta que a dinâmica capitalista no campo desencadeou outro fenômeno que foi o êxodo dos fazendeiros para as cidades. Nesse processo, as propriedades passaram a ser administradas por gerentes, que não tinham autonomia para lidar com os ciganos. E se, no passado, os fazendeiros os hospedavam, lhes ofereciam empregos temporários e supriam suas necessidades imediatas – como fornecimento de água, alimentação, ou simplesmente lhes davam autorização para acampar – isso parou de acontecer.

Essa relação dos proprietários de terras com coletivos considerados marginais, tais como cangaceiros e ciganos servia ao jogo político e econômico de afirmação de poder. Os coronéis, como eram conhecidos, utilizavam-se desses

coletivos, que eram aliciados para defender seus interesses, e que em troca recebiam

benesses. No caso dos ciganos, não se sabe ao certo se praticavam crimes e delitos por

ordens dos coronéis, como faziam os cangaceiros; mas a simples amizade entre eles era

suficiente para intimidar inimigos.

Moonen (2011) sugere, que o processo de industrialização e principalmente a mudança dos proprietários rurais para as cidades tenham sido fatores determinantes para a sedentarização dos ciganos de Sousa, PB. Ele afirma que “a sedentarização nas proximidades de uma cidade maior, para muitos ciganos se tornou a única saída. [...] não foi a sedentarização que causou a proletarização, mas foi a proletarização, foi o empobrecimento, que obrigou os ciganos de Sousa a aceitar uma vida sedentária” (MOONEN, 2011, p. 15). Sabe-se que o fenômeno da industrialização causou sérias consequências não só aos ciganos de Sousa, mas a todos os ciganos do mundo, que tinham nas vendas a domicílio o único meio para garantir suas vidas e a de suas famílias.

Entretanto, isso não significa necessariamente que os ciganos tenham se imobilizado diante das condições postas. Se por um lado o capitalismo oprime, reduz e imobiliza, por outro ele demanda soluções criativas que levem os indivíduos a

ressignificarem suas vidas. Como explica Reimer Gronemeyer (GRONEMAYER apud SCHOLZ, 2007) em relação aos ciganos:

As “profissões ciganas” típicas como amestrador de ursos, amolador, negociante de cavalos etc. não ficaram ultrapassadas, mas ressurgiram sob novas modalidades (como vendedor de automóveis, feirante, recicladores). Há a psicanalista de Munique, a cabeleireira de Frankfurt, o operador de processamento de dados de Estocolmo ou o operário fabril de Budapeste. [...] Tanto os podemos encontrar como matador de touros em Espanha ou como docente universitária em Praga. Não sabemos muito bem se terá sido sempre assim [...], mas é provável que sim: quanto a oficiais e músicos é certo e sabido. Os ciganos, por conseguinte, não se encontram obrigatoriamente reduzidos a um gueto profissional. [...] Há muito quem viva, entretanto como colocador de telhados, como educadora de infância, mecânico ou cabeleireira, sem que se veja qualquer relação com as velhas formas de ganhar a vida (GRONEMAYER apud SCHOLZ, 2007).

As colocações de Gronemeyer mostram que a identidade cigana, como todas as demais, não é fixa, mas flexível e que “a diversidade é produto da mobilidade, onde as diferenças devem ser conhecidas e acomodadas” (OKLY apud MAYAAL, 2004, p. 238). Nesse sentido, buscou-se compreender, por meio das trajetórias de vida, quais foram ou seriam as motivações que levaram, e continuam levando cada vez mais, os ciganos a se sedentarizam. O cigano Índio Rufino38 (2013), de Santa Fé do Sul, SP coloca que “sem dúvida nenhuma, o motivo é o estudo dos filhos” (RUFINO, 2013).

Já Fábio Ivanovich39, indagado sobre o que levou os ciganos antigos de seu grupo a interromperem a vida nômade responde: “foi o cansaço” (IVANOVICH, 2014). Ele diz que se cansaram da dureza desse tipo de vida, da luta por lugares para acampar, da insegurança. Conta que no começo passaram por dificuldades para se adaptar com a sedentarização, mas que, nos dias atuais, já se acostumaram com o conforto das casas. Perceberam que podem ter seus próprios negócios, sem ter que viver na estrada sofrendo. Questionado sobre os critérios utilizados para escolher uma cidade onde se fixar – afinal, a vida nômade os levou a conhecer tantos lugares – Fábio explicou que seus pais e parentes queriam uma cidade pequena, onde já tivessem laços de amizade, “onde fossem conhecidos” (IVANOVICH, 2014).

38 O cigano Índio Rufino foi apresentado à pesquisadora por Jesus Cigano em 2013 na cidade de Trindade, GO. Por se saber da atual trajetória política de Rufino, e de sua luta por direitos para os ciganos, decidiu-se questioná-lo sobre a relação sedentarização/educação. Trata-se, portanto, de uma fonte secundária. A entrevista foi feita em outra ocasião e por telefone. Entrevista concedida em: 25/03/2014.

39Fábio Ivanovich é cigano catarinense, residente em Palhoça, SC. Fábio e sua família foram os sujeitos do estudo de caso da pesquisa de mestrado desta autora. Dessa forma é que nesta tese, a informação de Fábio é uma informação secundária. Por conta de suas viagens frequentes, só foi possível entrevistá-lo por telefone. Entrevista concedida em: 25/03/2014.

Sobre o lugar que a escolarização ocupa hoje na vida dos ciganos, Fábio concorda com Rufino. Ele diz que a educação dos filhos tem tido muito peso na hora de decidirem fixar-se. Essa preocupação, no entanto, não causou nenhuma alteração na compreensão que os ciganos têm acerca do tempo de permanência de seus filhos na escola. Um exemplo disso é a saída recente das duas filhas de Fábio da escola. Com 11 anos de idade, as meninas, que são gêmeas, tiveram interrompida sua vida escolar por questões étnicas: a chegada da menarca.

Retomando a análise sobre o fim do nomadismo cigano, elaborada por Moonen (2011), momento em que o autor atribui ao capitalismo parte da responsabilidade por esse processo, cabe aqui uma última reflexão. É possível que depois de ter anexado as terras, e ao iniciar mais um ciclo de prosperidade, o capitalismo tenha contribuído para a sedentarização dos ciganos. No entanto, ao considerar que o capitalismo é “mestre nos disfarces, [...] um bandoleiro sem pátria, que vaga errante pela superfície do planeta traçando seu percurso de transformações radicais [...]” (BERMAN, 1986), pode-se considerar que os ciganos, não com os mesmos propósitos, assemelham-se a ele pelas dinâmicas que conseguem imprimir a suas vidas cada vez que o capital troca a roupagem.

Essa característica da essência capitalista é percebida por Bauman (2010) como um sistema parasitário, que, “como todos os parasitas, pode prosperar durante algum tempo uma vez que encontra o organismo ainda não explorado do qual pode se alimentar, mas não pode fazê-lo sem prejudicar o hospedeiro nem sem destruir cedo ou tarde as condições de sua prosperidade ou até de sua própria sobrevivência” (BAUMAN, 2010, p. 8).

Se, como sugere Bauman (2010), nos dias atuais o capitalismo deslocou as fontes de seus lucros da exploração da mão de obra para o consumo, os ciganos certamente seguiram o fluxo. A questão que está posta talvez seja pensar, sob essa perspectiva do consumo, em quais seriam as formas de nomadismo que os ciganos necessitam praticar na contemporaneidade para assegurar sua sobrevivência. Um ponto importante que não deve passar despercebido é que apesar dos ciganos, como todos nós, estarem inseridos no contexto capitalista, em alguns pontos eles se diferenciam. Um dos principais pontos dessa diferença diz respeito ao uso dos métodos capitalistas de exploração para a obtenção de lucro.

2.3 A FÉ QUE REMOVE CULTURA

No documento Vida cigana (páginas 53-57)