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IDENTIDADE CIGANA ATRIBUÍDA

No documento Vida cigana (páginas 37-42)

Se na zona urbana os ciganos conseguiram mudar seu status e sua condição de vida, os que seguiram pelas estradas, os nômades, tiveram uma existência extremamente atribulada. Documentos oficiais, boletins policiais e jornais sensacionalistas evidenciavam os percalços pelos quais passavam, os sofrimentos, as humilhações e principalmente o estigma. Goffman (2004) ao comentar sobre as contribuições dos meios de comunicação na reprodução de estigmas e a resistência ou indiferença com que os coletivos discriminados reagem a elas, coloca: “Ele carrega um estigma, mas não parece impressionado ou arrependido por fazê-lo. Essa possibilidade é celebrada em lendas exemplares sobre os menonitas, os ciganos, os canalhas impunes e os judeus muito ortodoxos” (GOFFMAN, 2004, p. 9).

Desse processo de exclusão e marginalização o que resultou foi o que se pode chamar de identidade atribuída.

[...] a identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. […] A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos etc. (MUNANGA, 1994, p. 177-178).

Nessa identidade a atribuição recorrente, que inclusive permanece até hoje, é a de ladrões de crianças. Existem algumas hipóteses sobre esse imaginário. A mais aceita é a de que moças da sociedade, particularmente do período colonial, diante de gravidez indesejada, enjeitavam seus filhos e os abandonavam para os ciganos criarem. Dessa forma, é que, não raro, percebiam-se crianças loiras de olhos claros em meio a crianças ciganas de pele e cabelos escuros.

Perguntada sobre a veracidade dessa atribuição, uma cigana catarinense17 respondeu que os ciganos sempre tiveram uma luta árdua pela sobrevivência, e que dificilmente iriam criar mais problemas para si roubando filhos dos outros.

Esse aspecto negativo, e outros mais, encontram lugar de ancoragem na literatura, que possibilitou que se criasse um conjunto de representações fantasiosas e equivocadas, e fez com que os ciganos fossem vistos como desumanos e selvagens. É o caso de Miguel de Cervantes (1613), que em sua conhecida obra A ciganinha18 faz a seguinte colocação:

Os ciganos e as ciganas, parece, vieram a este mundo só para serem ladrões; nascem de pais ladrões, criam-se entre ladrões, estudam para ladrões e, finalmente, saem-se ladrões exímios – ladrões da cabeça aos pés. O prazer de furtar e o furto são neles como acidentes inseparáveis, que só desaparecem com a morte (CERVANTES, [19--], p. 13).

No Brasil, Manuel Antonio de Almeida (1831-1861), no clássico Memórias

de um sargento de milícias, descreve os ciganos como um povo sem escrúpulos,

velhaco e ladrão. Mas, e a literatura contemporânea? Até o momento, é possível afirmar que no campo da literatura não ocorreram grandes mudanças. O que mudou foi a atitude de empoderamento dos ciganos em relação à própria cultura. No Leste Europeu, por exemplo, tem ocorrido um amplo movimento onde eles têm mostrado ao mundo sua arte de escrever contos, poesias, músicas; e também falam de sua cultura, narrando seus costumes, bem como suas mazelas e sofrimentos. É o caso da escritora Elena Lackova de 80 anos, que recebeu a medalha de Sofer Chatam de Pavol Mestan (Bratislava, Romênia). Lackova publicou inúmeros romances que tratam, especificamente, dos ciganos e do Holocausto.

Mesmo com alguns indícios de que os ciganos não aceitam mais passivamente as representações e atribuições elaboradas a seu respeito, muitos deles acham que é um processo histórico com o qual já estão acostumados. Como desabafa

17Videoaula do curso de extensão da rede da diversidade-SECAD/MEC/Mover/UFSC. Curso Educação para a Diversidade e Cidadania. Módulo 3, Educação para Populações Específicas. Entrevista concedida por Lolita Ivanovisch. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008.

18A Ciganita pertence ao livro de Miguel de Cervantes Novelas Exemplares (1613). É o maior dos doze contos elaborados por Cervantes, pequenas histórias político-sociais da Espanha renascentista. A referida novela conta a estória de uma jovem cigana que ganha a vida por meio da dança e da música, e de um nobre que se apaixona por ela e, como prova de amor, decide adotar a vida nômade da cigana e do seu grupo.

Rose19, cigana de Santa Catarina: “A vida toda foi assim” (CAVALCANTI et al., 2011d). Para outros é uma identidade construída e inserida no imaginário da maioria das pessoas, que necessita ser resignificada. Como reivindica Paula de Almeida20, jovem cigana de Porto Seguro, BA: “É falar com o povo, com o brasileiro também, para parar de racismo contra os ciganos, porque tem muito racismo contra os ciganos, eu sou cigana, sou cigana brasileira, mas sou cigana” (CAVALCANTI et al., 2011g).

Sobre essa construção, do povo brasileiro sobre os ciganos, sabe-se que eles são conhecidos e temidos por sua relação com o oculto. A leitura de mão (quiromancia21), as orações, as simpatias, o jogo de cartas, as pragas, tudo isso agregou à identidade cigana atribuída, particularmente à mulher, a pecha de feiticeira.

Melo Morais, na obra Factos e Memória, traz o seguinte relato de um anônimo sobre os costumes ciganos: “Deitando cartas, perscrutando o destino, as horrendas feiticeiras fazem trejeitos, acercando-se dellas os tabaréus com os filhinhos, para que lhes leiam a sina na mão aberta e pequena” (MELO MORAIS apud CHINA, 1936, p. 86).

A arte de ler a mão, de acordo com Cristina da Costa Pereira, é um ofício como qualquer outro. E como todo ofício, possui a finalidade de garantir a sobrevivência de quem o exerce. No caso da leitura de mão feita pelas mulheres ciganas, ela explica que “faz parte do gaal do ofício cigano ser cartomante e quiromante para as mulheres ciganas. Esses ofícios elas sobreviviam disso” (CAVALCANTI et al., 2011b). Esse elemento mítico das mulheres ciganas foi um dos principais responsáveis, na época da inquisição, pela morte na fogueira de centenas delas.

Isso denota que o contato interétnico frequente, suscitado pela necessidade de manutenção da vida, impõe aos ciganos uma dinâmica nas relações sociais que os coloca em contato com distintos contextos. Apesar da precaução que tomam nesses encontros, é possível perceber rasuras que essas relações vão causando na identidade

19Episódio n. 4. CAVALCANTI, Celso et al. Os nômades do Sul: vida cigana em Santa Catarina. Rádio

Senado, Brasília, 24 mar. 2011d. Áudio on-line (30 min.). (O Povo Cigano no Brasil, 4). Disponível

em:

<http://www.senado.gov.br/noticias/Radio/programaConteudoPadrao.asp?COD_TIPO_PROGRAMA= &COD_AUDIO=53056>. Acesso em: 28 mar. 2011.

20Episódio n. 7. CAVALCANTI, Celso et al. Os ciganos da terra do descobrimento. Rádio Senado, Brasília, 24 mar. 2011g. Áudio on-line (30 min.). (O Povo Cigano no Brasil, 7). Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/Radio/programaConteudoPadrao.asp?COD_TIPO_PROGRAMA= &COD_AUDIO=53052>. Acesso em: 28 mar. 2011.

21Quiromancia é um termo grego que significa “predizer o futuro através do estudo da palma da mão”. A

prática da quiromancia já era praticada cerca de 5000 anos atrás e tem raízes indianas ou hinduístas. Ela então se espalhou para a China, Grécia, Egito, Pérsia, Tibete, assim como por outras partes da Europa.

cigana, como afirma Marcondes22: “Misturou um pouquinho com os brasileiros, que o cigano não tá como antigamente cê entende? [...] Pois mudou muito o estilo, cê entende?” (CAVALVANTI et al., 2011i).

Entretanto, existem outras concepções, como a de Oliveira (2005) para quem, “uma etnia pode manter sua identidade étnica mesmo quando o processo de aculturação em que está inserida tenha alcançado graus altíssimos de mudança cultural” (OLIVEIRA, 2005, p. 19). Essa opinião é compartilhada por alguns ciganos que acreditam na pureza étnica, como é o caso dos Roms.

Mas, quando a sobrevivência precisa ser assegurada, nenhuma dessas questões entra em pauta. Um exemplo disso são as estratégias de manipulação identitária que as mulheres ciganas de Trindade utilizam com esse intuito, como explicou D. Esmeralda23.

Aí por exemplo, eu tenho a minha roupa cumprida, bonita. Aí agente tem que ir mais assim, oh! Tá vendo? Por que aí, quando a gente tá com o carrinho, eles falam: - Você é cigana? A gente tá com um brinco, um cordãozinho, e aí eles falam:

- Você é cigana? – Pelo meu sotaque. Aí eu falo: - Não.

- É, mas você parece cigana, por que o tipo do rosto, do cabelo – Aí eles falam:

- Não, você é cigana, pode falar que você é cigana. – Aí eu falo:

- Não sô cigana não. Porque aí se a gente fala, eles não compra de nóis né? Se eu falo que sô cigana, aí parece que eles foge da conversa, perde o interesse, foge dali, parece que eles acha que tem defeito no trabalho da gente. Eu acho que eles pensa assim, por causa de nóis sê cigana, nóis vende produto de segunda qualidade, e é boa qualidade. É algodão fio 30 que nóis fala. A gente fala, nóis abre pra elas, mostra, elas falam:

- Não, não quer. (CAVALCANTI et al., 2011i).

A fala de D. Esmeralda denuncia discriminações e preconceitos, além de expor o constrangimento que experimenta ao ter que negar sua identidade étnica como forma de garantir seu sustento. Essa situação é comum nas narrativas de vida dos ciganos, que guardam na memória essas experiências.

A memória, nesse caso, é usada como depositária, como um lugar de metamorfoses, onde as vivências se confundem sendo evidenciadas no momento em que

22Episódio n. 9. CAVALCANTI, Celso et al. Na terra dos romeiros: a comunidade Calón em Trindade de Goiás. Rádio Senado, Brasília, 24 mar. 2011i. Áudio on-line (30 min.). (O Povo Cigano no Brasil, 9). Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/noticias/radio/programaConteudoPadrao.asp?COD_TIPO_PROGRAMA= &COD_AUDIO=53049>. Acesso em: 28 mar. 2011.

se expressam. A memória, portanto, está “[...] em constante evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, [...] vulnerável a todos os usos de manipulação” (NORA, 1993, p. 9). Mas memória é também instrumento de poder, pois é na luta pela dominação da recordação e da tradição que sociedades orais, como a dos ciganos, conseguem manter sua identidade (LE GOFF, 1994).

A estratégia de camuflar a identidade visual cigana, que aparece na fala de Esmeralda, aponta a estratégia como cálculo, como manipulação “das relações de forças que se torna possível, a partir do momento em que um sujeito de querer e poder [...] pode ser isolado” (CERTAU, 2007, p. 99). Nessa perspectiva, estratégias configuram-se como ações pensadas a partir da elaboração de distintos lugares teóricos. Indicam também resistência, luta por espaço; espaço, nesse sentido, entendido como lugar

praticado onde “se distribuem elementos nas relações de coexistência” (CERTAU,

2 CIGANOS DO BRASIL

No documento Vida cigana (páginas 37-42)