• Nenhum resultado encontrado

TRILHAS QUE LEVAM AO PASSADO

No documento Vida cigana (páginas 32-37)

José Bonifácio D’Oliveira China10(1936), ainda no século XX, já dizia que, apesar dos ciganos estarem há dois séculos presentes no território brasileiro, chegando até a formarem pequenos núcleos em alguns lugares, pouca coisa ou quase nada se sabia sobre eles.

Ático Vilas-Boas da Mota (1982)11, professor e ciganólogo, ao falar sobre a tradição cigana, coloca que é impossível compreender a cultura brasileira sem incluir nessa reflexão as contribuições que os ciganos trouxeram para todas as artes, bem como para as letras, a toponímia, as formas de vestir, o trajar. Isto é, ele afirma a presença de ciganos na formação do estado nacional, nas transformações da cultura, na sua dinâmica histórica. Em estudo mais recente, Elisa Costa ratifica as palavras de Ático ao enfatizar que:

O papel do Povo Cigano enquanto elemento colonizador e, por consequência, construtor do Brasil, não vem sendo tido na devida conta pela historiografia, pese embora a dúplice circunstância da quase permanente rejeição social e da simultânea atração cultural, que tem exercido, e que, sem dúvida, com épocas de fluxo e de refluxo, constitui marca indelével dos séculos da coexistência vivida (COSTA, 2005, p. 153).

Das primeiras obras que tratam sobre ciganos do Brasil, uma das mais importantes é a trilogia Cancioneiro dos ciganos (1885), Os ciganos no Brasil (1886) e

Fatos e memória (1909), escrita pelo médico baiano Mello Morais Filho, que se

10Erudito paulista estudioso de filologia e etnologia.

aproveitando de sua profissão, colheu muitas informações de narrativas orais de ciganos

que viviam no Rio de Janeiro nas épocas citadas. Outra obra bastante relevante foi elaborada cinquenta anos depois do primeiro livro da trilogia de Mello Morais. Trata-se do livro escrito por José Bonifácio D’Oliveira China, intitulado Ciganos do Brasil:

subsídios, históricos, etnográficos e linguísticos (1936). Essa obra traz uma compilação

de elementos histórico-culturais e linguísticos sobre ciganos do Brasil, a partir das obras de Mello Morais e Adolfo Coelho.

Os autores mencionados muitas vezes tiveram que recorrer a obras de escritores europeus para escreverem sobre a história dos ciganos no Brasil. Utilizavam- se particularmente de decretos oficiais, onde era possível saber detalhes dos degredos12 de ciganos para as colônias portuguesas. Foi dessa forma que se tomou conhecimento de que os ciganos que chegaram a Portugal haviam sido expulsos pela Espanha. No mesmo século da chegada dos ciganos expulsos da Espanha, Portugal iniciou o degredo deles para o Brasil. Algumas hipóteses sugerem que esses indivíduos eram descendentes de ciganos indianos, tidos como ciganos puros. Essa ideia de pureza relembra a estratégia afirmada por Hall (2006), de uma criação ocidental fantasiosa que tende a envolver seus nativos em uma aura de pureza e mantê-los reclusos e intocáveis em lugares exóticos.

Os planos da Coroa Portuguesa de povoamento e interiorização da Colônia eram comuns nos processos de conquistas, lembrados por Maffesoli (2001), como sendo comuns nos dias atuais:

[...] pode-se ver que algumas culturas ou sociedades vão assumir, muito concretamente, essa ‘pulsão migratória’ e fazer dela, de modo totalmente consciente, o fundamento de seu ser-conjunto. Assim é Portugal, cujo vasto império testemunha o espírito aventuroso [...] (MAFFESOLI, 2001, p. 51).

Antes da Segunda Guerra Mundial, a fome, as epidemias, as perseguições religiosas e políticas e as guerras foram situações que também provocaram a migração das pessoas de forma compulsória. Mas, do pós-guerra e até hoje, as migrações, via de regra, são impulsionadas por fatores econômicos, como observa Sayad (1998) em sua análise sobre migração, mais especificamente, a imigração. Ele percebe a migração, como “um ‘fato social completo’” e sugere que foi o trabalho “que fez ‘nascer’ o imigrante, que o fez existir [...]” (SAYAD, 1998, p. 15-55).

12A primeira lei a impor o degredo foi a de 28 de agosto de 1592, na qual se aplicaria o degredo aos homens que passados quatro meses não houvessem se integrado à sociedade. Se não obedecessem à lei, seriam executados e suas mulheres deportadas para o Brasil para sempre.

No caso dos ciganos, o degredo foi uma estratégia articulada por Portugal para se ver livre deles, bem como de outros considerados escorias. Entretanto,

acostumados com constantes processos de aniquilamento (FRASER, 2005), os ciganos

reagiram com um notável poder de adaptação à vinda para o Brasil. Sobre os primeiros ciganos enviados para terras brasileiras, menciona-se um ato governamental português. Trata-se de uma resolução de D. Sebastião no século XVI, e que conforme Adolfo Coelho (COELHO, apud CHINA, 1936, p. 58), seria o documento mais antigo em que aparece o nome13de um cigano português com pena de degredo.

O século XVIII foi, na concepção de Adolfo Coelho e Mello Morais Filho, o período em que Portugal resolveu “aliviar o Reino de tão maus hóspedes” (CHINA, 1936), enviando um numeroso contingente cigano tanto para o Brasil, como também para suas colônias da África e da Ásia. No Brasil, vieram para a Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que um ano antes, um decreto que separava homens de mulheres já havia enviado para as capitanias do Ceará, Rio Grande e Maranhão14 uma quantidade significativa de ciganos.

A certa altura, os ciganos afastaram-se das cidades aonde chegaram e embrenharam-se Brasil adentro, não se sabe se movidos por perseguições ou por vontade própria. Desse período em diante passou-se a ter inúmeras informações sobre ciganos, ou por meio de relatos de viajantes que cruzavam com eles pelas estradas empoeiradas dos sertões; ou por notícias sensacionalistas dos periódicos e jornais da época. Essas notícias vinham de preferência nas páginas policiais, recheadas de narrativas minuciosas de crimes, atentados e insubordinações a eles atribuídas.

Com um pouco mais de traquejo, mas não sem uma dose de preconceito, Mello Morais (1904), em sua obra Factos e Memórias, descreve essas andanças:

Eles seguiam contornando cidades e povoados conservando seus costumes e sua gíria, praticando suas superstições e o banditismo tradicional [...] carregando tachos de cobre, peças de chita e quinquilharias, fustigando a condução, arrebanhada aqui e ali, furtada nesta ou naquela fazenda e calculadamente dispostas às fraudulentas “parrudas” (berganhas), acentuam a perspectiva dessas quadrilhas nômades, que vivem da velhacaria e da pilhagem (MELLO MORAIS, apud, CHINA, 1936, p. 84-85, grifo nosso). China também contribuiu para o discurso preconceituoso que na época se insurgia sobre o cigano ao fazer a seguinte colocação:

13O dito nome aparece na grafia da época como “Johão Torres”.

14Registra-se ainda que os primeiros ciganos desembarcados no Maranhão vinham da África. O decreto desse degredo é datado de 27 de agosto de 1685. Cf. COELHO apud CHINA, 1936, p. 62.

A parte curiosa desse documento é a que nos revela que em nossas plagas a “atividade” desses nômades não se limitou ao furto de animais, na prática do qual, como é sabido, são useiros e vezeiros; ela foi além, pois estendeu-se também ao furto ou roubo de escravos! Fato sem dúvida, original, e que ainda mais ressalta a “habilidade”, por assim dizer inata, que eles têm para a rapina, encarada sob todos os seus aspectos e particularidades (CHINA, 1936, p. 484, grifo nosso).

Uma questão interessante na obra de China é a classificação que o autor faz em relação ao que denomina de ciganos nacionais e ciganos estrangeiros. Por

nacionais ele compreende ciganos portugueses e espanhóis remanescentes do período

colonial e que até os dias atuais são conhecidos como Calons ou Kalés, cujo idioma é o

caló. Já os ciganos estrangeiros são os originários da Europa Central e do Leste,

particularmente dos Balcãs. Esses ciganos seriam os Rom (Kalderash, Moldowaia,

Rororanê, Sibiaia e Matchuaia) que falam o idioma romaní. E os Sinti (Manouch), mais

encontrados na Alemanha, Itália e França, que falam o sintó.

Outro ponto curioso que aparece na história dos ciganos no Brasil é a forma como estes se integraram ao cotidiano do Rio de Janeiro. Os estudos de Mello Morais (1886 apud CHINA, 1936) e China (1936) indicam que nessa cidade houve um afluxo muito grande de ciganos e que muitos fixaram residência. Principalmente os que vinham para trabalhar na corte como caldeireiros, fazendo objetos de metal e joias de ouro. Outra atividade que exerciam era a de dançarinos durante as festas no Paço, onde se apresentavam para a nobreza. China (1936) também classificou os ciganos entre os que trabalham e os que não trabalham. Dentre os que trabalhavam destaca os ciganos

Calón do bairro do Catumbi.

Os ciganos do Catumbi, atual região central do Rio de Janeiro, ocuparam funções bem definidas no poder judiciário, como a função de meirinhos, conforme relata Cristina Costa Pereira15(CAVALCANTI et al., 2011b; CHINA, 1939; MELLO et al., 2009):

Os meirinhos, os primeiros oficiais de justiça, nome antigo meirinhos até hoje se usa essa palavra, foram os ciganos, por quê? Era uma profissão maldita, ninguém queria ter. Os ciganos exerciam perfeitamente essa profissão, de ir lá e botar um X na casa da pessoa que estava para sair daquela

15Episódio: n. 2. CAVALCANTI, Celso et al. Brasil. Terra de fulanos, beltranos e ciganos. Rádio

Senado, Brasília, 24 mar. 2011b. Áudio on-line (30 min.). (O Povo Cigano no Brasil, 2). Disponível

em:

<http://www.senado.gov.br/noticias/Radio/programaConteudoPadrao.asp?COD_TIPO_PROGRAMA= &COD_AUDIO=53059>. Acesso em: 28 mar. 2011.

casa. Eles exerciam esse ofício, detalhe, ofício que o grupo sedentário do Catumbi, que mora no bairro carioca do Catumbi, até hoje exercem, os ciganos oficiais de justiça, donos de tabeliães e tudo mais, eles até hoje estão identificados com essa profissão (CAVALCANTI et al., 2011b).

Atuaram, também, no sistema escravista brasileiro. Essa inserção, de acordo com Mello et al. (2009) significou, além de sua participação nos processos societários, o reconhecimento de sua competência e habilidades. No que diz respeito à posição que ocupavam no sistema de relações sociais em Portugal, os ciganos no Brasil conseguiram fazer rupturas que terminaram por rasurar o estereótipo étnico. Por isso é que essa passagem da vida dos ciganos na relação com o escravismo é muito polêmica. Há ciganos que não aceitam esse fato, por situá-los na história como algozes e dessa forma retirá-los do lugar de vítimas. Há outros que pensam como a cigana e jornalista Marcia Guelpa16, a Yaskara, que afirma com veemência:

Eram escravagistas, vendiam escravos, ganharam muito dinheiro vendendo escravos. Tem uma rua no Rio de Janeiro que se chama Rua do Valongo, era a rua que os ciganos moravam e vendiam escravos. As pessoas iam comprar escravos lá (CAVALCANTI et al., 2011b).

Cabe ressaltar que, na época da escravatura, o comércio de escravos não era considerado ilegal. Portanto, o fato desse aspecto causar desconforto aos ciganos hoje, não altera a posição que essa atividade tinha na época. A participação ativa dos ciganos em diferentes seguimentos, como os descritos, deixa entrever que os estereótipos de malandro, preguiçoso e ladrão não condizem com a realidade, como enfatiza Frans Moonen (2011):

Os documentos históricos provam que, quando lhes era permitido, os ciganos, sedentários ou nômades, sempre exerceram atividades profissionais honestas das mais diversas e em algumas se tornaram até especialistas afamados, por exemplo, os homens como ferreiros, caldeireiros, tratadores de animais e artistas, e as mulheres como quiromantes e cartomantes. Somente quando a sociedade gadjé lhes proibia ou impedia de trabalhar honestamente, o que ainda hoje ocorre frequentemente, os ciganos foram forçados a uma vida ociosa ou a profissões “alternativas” nem sempre tão honestas ou legais assim. Os gadjé, no entanto, parecem enxergar apenas os ciganos que não trabalham, e nunca os inúmeros ciganos que trabalham normalmente, como outro cidadão qualquer (MOONEN, 2011, p. 150).

16Episódio: n. 2. CAVALCANTI, Celso et al. Brasil. Terra de fulanos, beltranos e ciganos. Rádio

Senado, Brasília, 24 mar. 2011b. Áudio on-line (30 min.). (O Povo Cigano no Brasil, 2). Disponível

em:

<http://www.senado.gov.br/noticias/Radio/programaConteudoPadrao.asp?COD_TIPO_PROGRAMA= &COD_AUDIO=53059>. Acesso em: 28 mar. 2011.

A relação dos ciganos com o poder judiciário e com o comércio do Rio de Janeiro do século XIX mostra a forma como eles conseguiram fazer deslizamentos em direção à sociedade não-cigana. Com isso distanciaram-se do estatuto de subalterno e também do grupo de pertença, passando a adquirir um estatuto operatório, que lhes possibilitou acessar espaços e práticas sociais diferenciadas (MELLO et al., 2009, p. 79).

No documento Vida cigana (páginas 32-37)