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3.2 A ESCOLA E SEUS FAZERES: PÓS-DEMOCRACIA DO ENSINO

3.2.1.3 O ―caderninho‖

O caderno do aluno complementado pelo caderno do professor fazem parte das diretrizes da Nova Proposta Curricular do Estado de São Paulo, em vigor desde 2008/2009, e caracteriza-se como mais uma das ações do governo para subsidiar o professor na sua tarefa de ensinar.

Para Silvana como não se adotava livro para o ensino de inglês, ela era livre para escolher o conteúdo: ―dentro de um certo limite, eu tinha liberdade pra dar o que eu quisesse‖. Embora existisse essa liberdade, excetuando algumas cópias de xérox, quase tudo na sala de aula era feito na lousa: ―giz e saliva né?‖ Ela pondera que: com os caderninhos,

apesar e todo mundo criticar, eu acho que está melhor, pelo menos da pra trabalhar texto, por outro lado você fica limitado, tem o tipo de aula que você vai dar, tem até a avaliação que você vai dar no final do caderninho. Mas pra quem não tinha nada, pra quem não tinha nenhum material, é melhor, só que ele restringe ,você é obrigado a seguir.

Nesse discurso, colocando-se na posição de quem não tinha nada, a professora demonstra estar satisfeita com o material, apesar de todos criticarem-no. Todavia, por outro lado, o fato de tudo já vir preparado: dos planos de aula à avaliação, ela acha que restringe seu campo de atuação. Tendo a acreditar que tais críticas estejam relacionadas com a perda de liberdade do professor. Veja-se o que a professora Rosangela fala sobre essa liberdade: Antes

você era mais livre,...Hoje já é mais uma coisa tabulada,... Já vem os textos já, certinhos, então você não escolhe mais o texto, já vem o texto pronto né, no formato ali, já vem todinho pronto, você não tem que se preocupar, e antes não, antes você tinha que buscar vários livros, bom aquela classe gosta disso, aquela classe gosta de outro tipo de coisa.

Assim como Silvana, o discurso de Rosangela contrasta a liberdade que o professor tinha anteriormente com o fato de que ele, hoje em dia, não precisa mais se preocupar, tudo está preparado nas apostilas. A meu ver, isso, de certa forma, parece ser muito bom para o professor que leciona em três períodos e não tem tempo para preparar aulas. Nas entrelinhas da perda de liberdade inserida nas críticas de muitos professores, pode estar embutida a questão do controle dos conteúdos a serem dados que, de certa forma, desequilibram rotinas já estabelecidas. Anteriormente, na ―liberdade de fazer o que quisesse‖ havia muitos docentes que por, trás das ―musiquinhas‖, das ―cópias‖ e ―traduções‖, nada faziam. Hoje em dia, professor e alunos têm de cumprir o conteúdo do currículo, visto que as provas de rendimento SARESP e BRASIL são baseadas neles. Sem julgar a qualidade dos ―cadernos‖ oriundos das novas diretrizes, é possível ver a uniformização do conteúdo do ano letivo do ensino de língua inglesa na rede como algo positivo. Seguramente a adoção de uma ―apostila‖ ou de um livro didático39, por si só, não vai garantir a solução do problema de aprendizagem de LE na escola pública, mas acredito que resolverá, em parte, a questão das repetições dos mesmos conteúdos a cada série.

Assim como Silvana, Karen enfatiza como é bem vindo o fato de a língua inglesa ter um material para o seu ensino, visto que nunca teve nada: A gente não tinha nada,

nunca teve.[...] a gente está recebendo as apostilinhas que pra mim é tudo de bom[...]. Quem imaginava que a escola fosse dar livro pra todos alunos do fundamental. Inglês, então, a gente tá nadando de braçada.[...], porque antes com giz e lousa, sem material, eu tirava Xerox do bolso, pra poder trabalhar com imagem, figura, porque o inglês sem nada, então, isso foi maravilhoso.

O entusiasmo de Karen é compreensível, porque é muito difícil ensinar uma LE sem textos e ilustrações impressas. No entanto, é estranho o fato de os professores terem ficado anos sem um livro didático, utilizando-se da lousa e de folhas esparsas xerocopiadas, as quais eram, na maioria das vezes, feitas sem recurso. Mais surpreendente ainda é o fato de

39 Cabe ressaltar que a partir de 2011 o PNLD – Programa Nacional do Livro Didático – do MEC , em vigor há

mais de dez anos, incluiu a área de língua estrangeira moderna (português e espanhol) entre os componentes curriculares para os quais serão distribuídos livros didáticos a todos os alunos do ensino público do Brasil (SANTOS JORGE e TENUTA, 2011).

eles esperarem uma atuação do governo e isso é percebido nas suas falas. Ao afirmar: ―eu gosto das apostilas, é o que tá tudo ali do currículo, trabalhar o currículo do governador do estado de São Paulo‖, Karen, num lapso, atribui a posse do currículo escolar ao governador. Paulo, a seguir, também atribui algum poder pedagógico ao governador: ―e o professor que procura fazer o que o governo manda pra ele... sabe? Curso, isso aquilo, a aula dele vai ser muito melhor e o aluno vai se sentir interessado‖. Este desabafo desiludido foi feito quando ele se deparou com o excessivo desinteresse dos alunos. Apesar de um professor, ter feito tudo o que o governador havia mandado os alunos ainda continuavam desmotivados. Embora entenda que na palavra ―governador‖ esteja implícita ―Secretaria da Educação‖, acredito que subjacente, está a cultura das mudanças desta instituição que alimenta as HTPCs (Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo) com seus pacotes burocráticos, aos quais o professor parece ter se acostumado.

Todos os professores atribuem a dificuldade de se trabalhar a oralidade ao grande número de alunos em sala de aula e também à falta de material: ―a nossa dificuldade maior... a dificuldade maior eu acho que é o número de alunos em sala, né? Pro professor de inglês. E materiais.. né....‖ Este trecho é de Paulo que, em algum momento de seu discurso, reconhece que a escola, hoje em dia, compete com os recursos tecnológicos. Muitos alunos, quando chegam à escola, já são letrados digitalmente, já se inseriram nas novas formas de aprender do computador que, apesar de rápidas e atrativas, nem sempre são de boa qualidade. A instituição de ensino, por sua vez, não tem condições de trabalhar com essa competência, pois lhe faltam recursos. Para fundamentar tal afirmação ele questiona como colocar 45 alunos na sala de informática de sua escola, se ela possui apenas 15 computadores.

A esse respeito, Silvana diz que: “agora a diretora diminuiu um pouquinho,

antes tinha 45 agora no máximo 40. o ideal seria trabalhar com 25 alunos, mas [...]”. Karen,

por sua vez, comenta que a apostila tem atividade de “listening”, mas: fica muito a desejar o

“listening”, embora os livros trazem, a gente tem dificuldade pra trabalhar, não tem um aparelho, eu já trouxe o meu, emprestado da minha mãe, mas ainda eu queimei ele,[...] mas assim bate na questão materiais. Então não tem nenhum funcionando no momento. [...] e a questão do “speaking”, fica bem a desejar, com sala de 45 alunos eu trabalho tipo assim, [...] as aulas são dadas em português, algumas eu leio um diálogo em inglês, tento tirar deles que eles entenderam , mas é lógico que a aula é em português,[...] e alguma coisinha eu peço pra repetir, mas é pouca coisa.

De acordo com Karen, atividades de audição e prática oral não fazem parte da aula de inglês na rede oficial de ensino. Nela, prevalece o uso do português e os alunos ouvem o diálogo lido pela professora que, às vezes, solicita-lhes a repetição de uma ―coisinha‖.

Número excessivo de alunos e ausência de material de apoio revelam problema de planejamento, ou seja, parece que isso não foi levado em conta quando se concebeu reforma. Se fosse um projeto pequeno, poder-se-ia pensar num lapso, mas diante da sua envergadura, isso deve ser descartado. O ―governo‖ pode até não ter pensado, mas e os especialistas que implementaram o projeto? Será que não argumentaram sobre a questão do número de alunos em sala de aula? Diante disso, restam apenas conjecturas que me levam à questão da agência burocrática dessas instituições governamentais e do esvaziamento de suas atividades.

Karen enfatiza que, apesar de se trabalhar com temas de interesse dos alunos e que façam parte do conhecimento deles, as aulas estão longe de ser ―comunicativas‖ “a gente

até tenta pede pra eles fazerem tudo em inglês, [...] trabalha leitura, mas não é aquela abordagem comunicativa, que fala inglês, e nem é esse o objetivo é que... eles dão mais ênfase na leitura e na escrita”. Segundo ela, a apostila enfatiza a leitura e a escrita.

A ênfase no ensino da escrita e da tradução em detrimento da habilidade oral nas escolas públicas faz parte do ideário de muitos professores de inglês e a observação de Paulo sintetiza todos eles: “o inglês ensinado na escola que eu pude observar nesses... todo

esse tempo que eu venho dando aula, ele serve assim como um estímulo pro aluno desenvolver e procurar um curso para se aperfeiçoar. Mas não pra falar inglês”. Isso, de certa forma, não condiz com processos naturais de aquisição/aprendizagem de línguas que, inicialmente, enfatizam a oralidade, ou seja, aprende-se a falar uma língua, falando-a e não a escrevendo.

Parece-me que os professores, conscientes desse ideário, têm delegado a prática da ―fala‖ às escolas de idiomas, o que pode ser a ―cristalização‖ de uma crença ainda muito presente entre nós. Diante de tanto obstáculo enfrentado pelos professores, tendo até a concordar com Paulo, mas por outro lado, aceitar a crença como um fato consumado seria manter o estado de coisa atual, o que dificulta a tarefa.

Apesar de Karen afirmar que a ênfase da apostila está na leitura e na escrita, acho não ser possível prever como tais atividades estão sendo abordadas pelos professores na

sala de aula. Ela acha que o ensino dos conteúdos melhorou: “por conta dos materiais e do

professor estar sendo mais cobrado”. Embora ela acredite nisso, pelo exposto, tendo a supor

que a PMT ainda prevalece no interior das aulas de língua inglesa da rede estadual de ensino. Silvana afirma que, atualmente, os alunos não dão importância ao inglês por que: “muitos não vêm importância e não sabem pra quê que usa”. Nessa mesma direção, a observação de Paulo explicita o motivo da não importância: Eles não tem o objetivo de aprender uma língua hoje. Você vê [...] Araraquara... minha cidade ela tem o CEL, que é o centro de línguas. E o ano passado começou inglês com uma sala. Enquanto que a de Francês, Espanhol, tem duas salas porque é o novo. Então o que acontece, eles acham que vão ter esse curso de línguas, aprender a mesma coisa que se aprende na escola. Que é uma coisa que eu também pude observar nesse tempo todo, aquela repetição do ensino fundamental, de quinta a oitava série, e às vezes os professores ensinam a mesma coisa no colégio.

Os Centros de Ensino Línguas - CEL‘s – são mais uma proposta do governo para promover o ensino de outras línguas estrangeiras (Espanhol, Francês e Italiano) em horário extra-classe. Há uns quatro anos, esses centros resolveram fornecer o curso de Inglês também, e Paulo explicita que não tem havido demanda, ou seja, enquanto abre-se apenas uma classe pequena para inglês, abrem-se duas ou mais para outras línguas. Tal fato deve ser notado, porque na cidade vizinha à mencionada pelo professor há também um CEL e no, ano passado, para duas turmas pequenas de Inglês (tarde e noite), havia seis de Espanhol40. Ele aponta o ―novo‖ como fator de demanda e o ―já conhecido‖ como de rejeição para a escolha das línguas. Ele deixa implícito no seu discurso que os motivos para a falta de demanda para as aulas de inglês estão relacionados ao descrédito a que o ensino dessa língua chegou no contexto da escola pública: os alunos temem o eterno retorno do ―nada‖ num curso extra- classe‖, ou seja, não querem vivenciar novamente a repetição do mesmo estilo de aula.

Embora ache que a questão dos CEL‘s ora abordada deve ser avaliada por meio de pesquisa, a repetição de conteúdos sem significados, durante o ensino fundamental e médio, mencionado por Paulo, por si só, autorizam-me a afirmar que os alunos não se importam com o aprendizado de inglês, porque a PMT da escola pública tem ensinado muito pouco essa língua.

Para finalizar, enfatizo que, enfatizo que todas as mudanças promovidas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e todo seu investimento para subsidiar o professor pedagogicamente remetem-me a Prabhu (2000, 2001) segundo o qual novas metodologias acabam gerando ―novas rotinas‖ em sala de aula, o que, muitas vezes, acaba

40 Notas de orientação: O professor Ademar da Silva possui alunos fazendo estágio no CEL o que possibilitou a

sendo improdutivo pedagogicamente. Em SP, a cada mudança, o professor adaptava sua rotina e criava uma nova, o que parecia piorar ao invés de melhorar, o ensino.

Prabhu (2001, 2001) deva estar correto em suas afirmações. Por sua vez, ele sugere que, em vez de se investir apenas na dimensão pedagógica da sala de aula, os especialistas deveriam investir na dimensão social e pessoal e isso não foi feito pelos especialistas do estado de São Paulo. Em sequência, passo a discorrer sobre tal dimensão.