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PARTE I: GLAMOUR

2. De Atores e Redes: Os Caminhos da Teoria

2.1. Quem são os Não Humanos?

2.1.3. Caixas-Pretas

Atores e redes, portanto, hão de se combinar, de movimentar uns aos outros: atores que encerram redes, e que são redes, como vimos anteriormente. A ação é mais importante do que um ator ou uma rede – e se nos prendemos aos termos, ou à dicotomia entre agência e estrutura por eles sugerida, como assume Latour (1998), deixamos de observar o que realmente importa. A grande questão que ainda paira diz respeito ao modo pelo qual estes atores podem encerrar, dentro de si, redes. Bruno Latour (1994, p. 35) é direto a respeito do problema: “B-52s não voam, a Força Aérea Americana voa”138.

A afirmativa acima se refere ao fato de que se pararmos para observar as várias pessoas e tecnologias envolvidas no uso de um bilhete aéreo qualquer, chegaremos à conclusão de que um avião, por si só, não sai do chão. Perceba-se: este não é um raciocínio voltado para a ideia humanista de um indivíduo é necessário enquanto piloto. Este é necessário sim, mas também são necessários os serviços administrativos, a gasolina, as hélices, rotores e até o óleo que lubrifica as partes internas da turbina. É ainda necessário perceber que um dos momentos em que esta rede culmina é na ação de levantar voo: os esforços são completamente orientados para um objetivo.

Na rede ilustrativa – e grosseiramente descrita – acima, os atores são, perceptivelmente, de natureza heterogênea. Humanos (piloto, comissários de bordo) se conectam a outros humanos e instrumentos (controladores de voo e radares, torres de controle e manches), que por sua vez se conectam não apenas a ainda mais humanos (atendentes, gerentes de venda, marketing, relacionamento com o cliente) e

137 Livre tradução: “Essence is the consequence and not the cause of duration”. 138 Livre tradução: “B-52s do not fly, the U. S. Air Force flies”.

outros instrumentos (rotores, turbinas, hélices), mas também a organizações (companhias de seguro, fornecedores de gasolina e de serviços de limpeza, a fábrica que produz o parafuso que sela a fuselagem). Cada um destes elementos é posto em ação para que um avião possa deixar o solo. Neste sentido, um avião é uma rede estabilizada: quando nele adentramos, não nos preocupamos (muito) se os parafusos estão bem apertados ou se as turbinas estão funcionando, apenas depositamos nossa necessidade de transporte na tecnologia. O difícil ato de se locomover a pé de Salvador até Recife é delegado a uma rede estável o suficiente para que possamos dela depender.

Um avião é, nesse sentido, uma caixa-preta.

“Uma caixa-preta contém aquilo que não precisa ser considerado, coisas cujos conteúdos tornaram-se indiferentes”139, explicam Callon e Latour (1981, p. 285). Caixas-pretas, na teoria latouriana, são, como pode ser inferido do texto acima, redes tão estabilizadas que simplesmente desaparecem de nossa vista. As redes continuam lá, elas estão presentes enquanto dobra (LATOUR, 2002), mas não são visíveis internamente, transformam-se em algo pontual – daí o motivo pelo qual o processo através do qual caixas-pretas são produzidas ser chamado de pontualização. Lemos (2013, p. 56) aponta para a necessidade de estabilização que as redes possuem: “toda associação tende a virar uma caixa-preta, a se estabilizar e cessar a controvérsia”.

Computadores, telefones celular, operadoras de cartão de crédito e o departamento de polícia são caixas-pretas: limitamos a interação para com estes – e com tantos outros actantes espalhados mundo afora – por sua dinâmica de entrada e saída, tal qual uma função de programação, uma caixa-preta recebe uma informação (“eu gostaria de solicitar meu diploma”), transporta (media, traduz) para as redes nela contida (secretaria de um programa de pós-graduação, secretaria geral de cursos, pró- reitoria de pós-graduação, reitoria, outras caixas pretas em si), e devolve, depois de certo tempo, o resultado (o diploma). Não sabemos o que acontece em seu interior, e não nos importa desde que elas continuem estabilizadas o suficiente para contribuir com a rede sem que se deem percalços.

Stalder (1997) aponta para os custos de abertura de uma caixa-preta: quanto mais estável a rede, mais difícil é de abri-la. Esta estabilidade não é apenas

139 Livre tradução: “A black box contains that which no longer needs to be considered, those things whose contents have become a matter of indifference”.

determinada pelos grupos e procedimentos selados dentro da caixa-preta: os materiais incluídos também possuem um importante papel na organização do conceito.

Quando transformado em uma caixa-preta, o hardware tende a ser muito fechado (...). O software, por sua vez, é constantemente reaberto e selado de novo, por causa da sua fluidez e dos seus custos de produção. Este é o processo de questionar continuamente alguns elementos internos à caixa (procurando bugs) e tentar fechá-la

novamente em um novo upgrade (STALDER, 1997, online)140.

Se aparecem obstáculos (o sistema de computadores da universidade não funciona, o funcionário responsável entrou de licença ou Deus quis que chovesse e a secretaria alagou completamente), aí sim a caixa-preta se abre, pois a rede a ela interna para de funcionar. Estes exemplos não só ilustram o modo através do qual uma caixa-preta se estabelece (ou se estabiliza), mas também podem ser considerados em si testes de força como os citados no tópico anterior.

Um detalhe interessante é que se entendemos o modo como as caixas-pretas surgem – através da estabilização e pontualização de uma rede – podemos empreender uma engenharia reversa nelas, abrindo-as para que possamos entender que decisões, que testes de força e que resistência levou a rede a tomar a forma específica que ela assume quando estabilizada. Ao empreender um movimento como este, questionamos novamente as controvérsias, observamos que tipos de dinâmicas podem levar a novas estabilizações, ou à dissolução da rede.

Dito isto, existem alguns outros conceitos importantes para este trabalho na TAR, mas estes serão endereçados em seu devido tempo. No próximo tópico, nos aproximaremos das ideias de mediador e intermediário e, como pontuado anteriormente, os problemas referentes à ação e à agência serão considerados apenas no capítulo 3. Por ora, retornemos, enfim, ao domínio dos meios de comunicação, agora cientes das motivações e nuances da ontologia latouriana, possuindo o domínio de sua infralinguagem.