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PARTE I: GLAMOUR

2. De Atores e Redes: Os Caminhos da Teoria

2.1. Quem são os Não Humanos?

2.1.2. Redes

A noção de rede é uma das mais complexas da Teoria Ator-Rede. Não porque seu entendimento é dificultado, mas pela simples alusão à ideia de redes sociais, em

126 Livre tradução: “Action is overtaken”.

127 Livre tradução: “Action should remain a surprise, a mediation, an event”. 128 Livre tradução: “‘something social’ that carries out the acting”.

um contexto midiático no qual tudo parece girar em torno destas. Não porque é complexo chegar a ela, mas porque é tão fácil confundi-la. Latour (1998) justifica: “este é o grande perigo de usar uma metáfora técnica antes do uso comum de todo mundo. Agora, com a Web, todo mundo acredita que entende o que uma rede é” (1998, online)129. O antropólogo francês chega a sugerir que a palavra seja erradicada

de seu uso, uma vez que seu conceito foi tão transformado.

Para Latour (1998), a ideia de rede significava, anteriormente, uma série de transformações. Toda vez que um actante se engaja em uma rede, ele ganha propósito, é “imbuído de personalidade” (LATOUR e AKRICH, 1992, p. 259) – torna-se ator. Todo movimento da rede passa a partir daí a depender, a dialogar com as devidas competências que são a surpresa, a mediação, o evento citados acima. As redes necessariamente traduzem. É sua função: carregar a mediação, mobilizar os atores. Agora, afirma Latour (1998, online), “claramente significa transportar sem deformação, um acesso instantâneo e não mediado a cada pedaço de informação”130.

A rede é mais que seus atores: ela consiste em um conceito que se subscreve à esfera do correlacionismo (MEILLASSOUX, 2008) no sentido em que os relacionamentos são mais importantes do que a existência imanente de cada um dos atores nela mobilizados. Uma rede é, para Michel Callon, “um grupo de relacionamentos não especificados entre entidades cuja própria natureza é indeterminada” (1993, p. 263)131.

Stalder (1997, online) estabelece uma comparação que sela a confusão entre rede sociotécnica, termo utilizado por Michel Callon (2008, p. 308), e redes sociais apontando que em uma rede social, é possível identificarmos “um conjunto finito de atores e as relações definidas neles”132, enquanto, na TAR, uma rede não faz

restrições a atores qualitativamente sociais – um erro de adjetivação, como pudemos contemplar acima. Para figurar em uma rede da TAR – em uma actor-network – não é necessário sequer ser um ator, no sentido amplo oferecido pela teoria ao termo (STALDER, 1997). Neste mesmo sentido, Michel Callon afirma que

[u]m problema é que usamos durante muito tempo o termo rede sociotécnica apesar de ser este confundido com o de rede social. As

129 Livre tradução: “This is the great danger of using a technical metaphor slightly ahead of everyone's common use. Now with the Web everyone believes they understand what a network is”.

130 Livre tradução: “now, on the contrary, it clearly means a transport without deformation, an instantaneous, unmediated access to every piece of information”.

131 Livre tradução: “group of unspecified relationships among entities of which the nature itself is undetermined”. 132 Livre tradução: “a finite set or sets of actors and the relation or relations defined on them”.

redes sociais são configuradas por pontos e relações identificáveis; diferentemente, nas redes sociotécnicas, desejamos conhecer as traduções e as coisas que se deslocam entre os pontos (CALLON, 2008, p. 308).

Stalder (1997) sugere que o tamanho e a heterogeneidade de uma rede estão relacionados: quanto maior a rede, maior o número de atores heterogêneos que esta vai mobilizar, uma vez que alguns destes elementos vão funcionar como mantenedores do contexto. É necessário lembrar que os atores apenas existem em rede, o que significa que uma vez associados, estes são mobilizados para que a rede subsista. Não é uma questão de determinismo ou estrutura, como veremos logo à frente, esta dinâmica diz respeito, apenas, ao modo como uma rede subsiste.

A rede remete, segundo Lemos (2013, p. 53), “às formas de associação entre os actantes e intermediários”, no sentido em que através delas é possível observar a relação entre estes; e sua trajetória caminha invariavelmente para a estabilização, um estado no qual pode ser encontrada uma promessa de dependência. Uma rede estabilizada se torna opaca, “vai para o fundo, e funciona taken for granted” (LEMOS, 2013, p. 54). A estabilização é uma dinâmica necessária às redes porque é através deste processo que uma rede subsiste. Como Latour (2011, p. 169) explica, algo que é durável conquista tal qualidade herdando de outras ocasiões – o que explica a necessidade de estabilização, ainda que a TAR busque visualizar a formação do social em seu estado não cristalizado.

A subsistência de uma rede não é nunca garantida, ela é fruto de testes de força. Os testes de força são, explica Harman (2009), a forma através da qual Bruno Latour sublinha que nenhum actante possui poder algum a priori sobre o outro: “todos os objetos precisam se acotovelar na arena do mundo, e nenhum deles jamais goza de uma vitória final” (HARMAN, 2009, p. 25)133. Para Latour (1988, p. 158), “o

que quer que resista a testes é real”134, e daí advém a noção de que a realidade é

reconhecida através da resistência (LATOUR, 1988; HARMAN, 2009). Os testes de força, por sua vez, triviais, acontecem a todo momento e garantem que a rede seja sempre questionada a respeito de si mesma. Qualquer percalço, qualquer dissidência e mesmo a ação do tempo podem ser testes de força. A resiliência de uma rede depende de sua desenvoltura ao vencer estes testes.

133 Livre tradução: “all objects must jostle in the arena of the world, and none ever enjoys final victory”. 134 Livre tradução: “Whatever resists trial is real”.

Redes que não se estabilizam deixam de existir. A afirmação possui um tom sombrio que parece remeter necessariamente à formação de estruturas e grandes arranjos resistentes ao tempo. Naturalmente, redes estabilizadas estão mais capacitadas a lidar com testes de força – elas possuem scripts para isso – todavia, nada resiste ao tempo. Não existe rede eterna, e se uma rede – uma organização de actantes específica: uma fábrica, uma organização, uma subcultura, um movimento social – subsiste, ela o faz através de trabalho. Latour (2011) dá a esta subsistência o nome de trajetória, enquanto os espaços que demandam reencenações recorrentes para que se possa observar a trajetória enquanto completude espaço-temporal atendem pela alcunha de hiatos. Toda e qualquer rede experimenta movimentos de construção e desconstrução, inclusive a sociedade, que não passa de uma grande rede “se fazendo e se desfazendo a todo momento” (LEMOS, 2013, p. 54).

Todos os organismos estão no mesmo barco; para subsistir, nenhum deles deve depender de uma substância, programa, estrutura ou planta já existente. Literalmente, todo corpo135 precisa vencer este

hiato entre dois momentos de tempo (LATOUR, 2011, p. 169)136.

O prefixo re- indica, precisamente, este hiato: ele está ali para lembrar que existe um teste entre o que Latour (2011) chama de tempo t e tempo t+1, dois momentos específicos na existência, e que se a rede não atingir um nível de estabilização que a permita superar este teste, ela simplesmente se desfaz. Como atores só fazem sentido se estiverem em redes, como pudemos perceber através do tópico anterior, é natural que estes almejem esta conquista. Se os atores que fazem parte da rede param de carregá-la, ela simplesmente cessa de existir – desaparece. A conquista, Bruno Latour (2011, p. 166) explica, ao se apropriar de uma expressão de Garfinkel, é levar a rede até “a próxima primeira vez” – que é sempre a primeira vez! Latour (2011) sugere que, se observarmos o movimento das redes desta forma, o repetitivo nunca se torna realmente repetitivo, uma vez que a cada t+1 se dão novas

135 A expressão utilizada no original figura como um trocadilho, encerrando o sentido de “todas as pessoas” mas,

concomitantemente à proposta de que humanos e não-humanos são iguais perante o parlamento das coisas, estendendo-a para os últimos, no sentido de todos os corpos. É curioso perceber que a linguagem é uma ferramenta de imprecisão, neste caso, pois na gramática da língua inglesa o termo everything, que poderia ser utilizado, não endereça sujeitos – apenas objetos.

136 Livre tradução: “All organisms are in the same boat; to subsist, none of them may rely on an already existing substance, program, structure, or blueprint. Literally, every body has to overcome this hiatos between two moments of time”.

associações, novos testes de resistência, novas atribuições de papéis. “A essência é a consequência e não a causa da duração” (LATOUR, 2011, p. 169)137.

Para onde nos leva, então, esta duração? Para a temporária, ainda que eficaz, resolução de um problema: uma rede estabilizada desaparece gradualmente, criando cascatas de dependência factíveis para os outros actantes e para outras redes. Este movimento, como havemos de ver no próximo tópico, é conhecido como pontualização – ou formação de caixas-pretas.