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Capa: o primeiro contato com o gênero graphic novel

UM CONTRATO COM DEUS E OUTRAS HISTÓRIAS DE CORTIÇO: QUE GÊNERO DISCURSIVO É ESSE?

3.1 Objeto livro: o suporte da graphic novel

3.1.1 Capa: o primeiro contato com o gênero graphic novel

A constituição das capas já nos direciona a um entendimento da preocupação do autor em manter seu contrato com o leitor, apresentando algo que prenda a atenção deste e que o instigue ao processo de leitura.

Parece-nos, a princípio, que a escolha do autor pelas imagens em sépia - que segundo ele tinha o tom de lembranças e sonhos46 - se manteve na

primeira capa americana (Figura 1), já que ela foi produzida utilizando

45 No Brasil há duas edições de Um Contrato com Deus: a primeira da Editora Brasiliense (1988), e a segunda da Editora Devir (2007).

basicamente três cores: o sépia, o preto e o dourado. A alteração para mais cores na segunda capa americana (Figura 2) e, por conseguinte, na capa brasileira (Figura 3), pode ter ocorrido para dar mais destaques aos elementos que a compõem.

É importante notar que as três capas mantêm o mesmo padrão quanto à disposição dos elementos, pois em dois terços delas há letras tipo caixa alta distribuídas em quatro linhas (uma para cada palavra), indicando o título, enquanto que o subtítulo, também em caixa alta, porém em tamanho menor, aparece distribuído em três linhas. O espaço destinado ao destaque do título e subtítulo toma metade dos dois terços da capa. Outra observação interessante sobre o destaque dado ao título e ao subtítulo é o uso das cores: na primeira capa (Figura 1) temos título e subtítulo em dourado, já na segunda (Figura 2), estes elementos aparecem em tom prateado. Sabe-se que o uso dessas duas cores na edição de um livro é fator de diferenciação, uma vez que implica na elevação dos custos de impressão47. A opção por essas cores

confere ao título um ar mais nobre, afinal estamos falando sobre uma divindade - Deus - e em um gênero que se diferencia de um romance tradicional e também das histórias em quadrinhos de entretenimento. Isso se torna ainda mais evidente na primeira capa (Figura 1), pois a imagem é em sépia, mas o título foi impresso todo em dourado. Parece haver a intenção de enobrecer a obra, de dar a ela um ar de realeza, tornando o livro que os leitores têm em mãos digno de ser lido.

Antes de nos atermos à imagem que se encontra junto aos títulos e subtítulos, voltemos nossa atenção para a tarja que recobre 1/3 da capa. Na primeira edição americana (Figura 1) trata-se de uma tarja preta; já na segunda edição americana (Figura 2) e na brasileira (Figura 3), vemos uma tarja mais alaranjada, quase em um tom de marrom. Contudo, o que torna essa tarja especial são os dizeres que ela apresenta: da metade para o final, em seis linhas (uma para cada palavra) aparecem em destaque o gênero discursivo da obra e seu autor48.

47 Segundo o departamento de edição da Editora Adonis, a publicação segue o padrão de quatro cores: sépia, magenta, ciano e preto. Cores como ouro ou prata são consideradas “nobres” e, portanto, uma quinta cor, encarecendo a impressão da obra.

48 “A Graphic Novel by Will Eisner” (Figura 1 e 2) e, “Um Romance Gráfico de Will Eisner” (Figura 3).

Trata-se de uma maneira de informar o leitor sobre esse novo gênero, mostrando que não se trata apenas de uma história em quadrinhos em forma de livro. Eisner fez questão de apresentar a denominação do “novo” gênero discursivo e também de alertar seu leitor para o fato de que está com algo diferente em mãos.

Contudo, é interessante notar que, como não se tratava de um gênero conhecido no Brasil, já que nunca haviam sido publicadas graphic

novels por aqui, quando do lançamento da 1ª edição de Um Contrato com Deus, o tradutor da Editora Brasiliense fez uma adaptação e traduziu todas as

palavras, inclusive a nomenclatura do gênero como “Um Romance Gráfico”. Voltemos à imagem da capa, mas para tanto devemos recordar que, anteriormente, no Capítulo 2, já foi apresentado o enredo da obra Um contrato

com Deus49. Já sabemos, portanto, que a personagem central é Frimme Hersh,

um judeu imigrante nos EUA na época da Grande Depressão, cuja dor pela morte prematura de sua filha, Rachele, provoca sua ira contra Deus e, assim, a quebra de um contrato que mantivera desde criança com a divindade.

Na imagem, sobressai a figura de um homem, arqueado sobre si mesmo, subindo vagarosamente os degraus de uma escada, possivelmente de sua casa, encharcado por uma chuva torrencial. Em contraste com a impressão causada pelo “pobre” homem molhado e curvado que sobe as escadas, podemos notar prédios ao fundo. Nas duas edições americanas (Figuras 1 e 2) os elementos que compõem a imagem praticamente são os mesmos, contudo mudam-se os ângulos e perspectivas, além ter sido ampliada a paleta de cores na 2ª edição.

Considerando-se os comentários de Eisner sobre os motivos da escolha da cor sépia quando da produção das imagens da graphic novel, talvez uma possibilidade de interpretação da imagem que recobre a capa da 1ª edição (Figura 1) seria sugerir a lembrança, a imagem esmaecida de um fato passado que será retratado na obra. Ao saber mais sobre o enredo escolhido para esse livro, entendemos que a imagem embaçada pela chuva apresenta o retorno de Frimme Hersh para casa após o funeral de sua jovem filha. Essa

49 Páginas 54 e 55.

imagem reforça - pela cor, pela presença da chuva forte e da lentidão sugerida pela cena - a enorme dor da personagem central.

A 2ª edição americana e 1ª brasileira (Figuras 2 e 3) abandonam o sépia e dão lugar às cores em tom de azul (do claro ao escuro), amarelo, marrom e verde. O aumento no leque de cores não descontrói a dor apresentada na imagem da personagem, ao contrário, dá ainda mais ênfase a esta personagem, que se mostra mais destacada em amarelo e marrom (o tom mais escuro brinca com as sombras das águas da chuva e com a luz embaçada de um poste na rua), já que o ângulo posiciona um close maior na personagem, em relação à 1ª edição. Os tons de azul vão do claro, que seria o céu tomado pelas águas, ao escuro das sombras dos prédios – possivelmente os cortiços ao longo da rua. Diferentemente da 1ª edição (Figura 1) em que a imagem dos prédios se perde, já que a perspectiva é mais geral, na 2ª edição americana e na 1ª brasileira (Figuras 2 e 3) vemos poucos prédios, que parecem ser apenas um cenário para destacar a personagem.

Outra alteração interessante proporcionada pelo uso dessas cores é a diferenciação entre a casa na qual a personagem está entrando e os demais prédios, pois os degraus da escada que são galgados por Frimme estão em verde, contrastando com as pequenas iluminações amarelas no corrimão, possivelmente vindas da luz do poste.

É possível perceber um trabalho minucioso de Eisner em conquistar o seu novo público leitor a partir da preparação da capa desde a 1ª edição de

Um Contrato com Deus. Sua assinatura, por exemplo, está em todas as suas

obras, desde a publicação de The Spirit, e o leitor que cresceu com suas produções, agora adulto, pode identificá-lo e desejar ler a obra por sua autoria. Já o uso das cores nobres para o título e a declaração na tarja em destaque da nomenclatura do gênero, além do formato livro, auxiliam os leitores a entenderem que essa obra difere das histórias em quadrinhos de entretenimento, preparando-os para uma nova prática leitora.

Figura 4 – Exemplos de capas The Spirit

As capas das revistas The Spirit – como as dos exemplos na Figura 4 – apesar de conterem a assinatura de Eisner, assim como nas graphic

novels, se diferenciam na escolha de cores mais vibrantes e o cenário aparece

somente como pano de fundo, tendo destaque a grande personagem desta coleção. Já nas capas das graphic novels, o cenário e sua personagem são intrincados e as cores não tão vibrantes. As cores também se relacionam às próprias temáticas, diferentes em um gênero e em outro. Nas comics, que é o caso de The Spirit, os temas são aventura, entretenimento, heroísmo, etc. Aqui, temos um herói que vive diferentes aventuras para acabar com os crimes da cidade, portanto o destaque dado a sua figura e as cores vibrantes são primordiais ao sentido de leitura a ser construído pelos leitores.

Assim, não é somente o material da capa que distingue o gênero

graphic novel de outros que se utilizam da linguagem das histórias em

quadrinhos; a própria produção da capa, a disposição dos elementos e suas cores são diferenciais a serem destacados.

Além da capa, há outros elementos que compõem o suporte/objeto livro e que devem ser analisados. Para tanto, optamos pela análise da 1ª

edição brasileira50, veiculada pela editora Brasiliense, feita a partir da 2ª edição

americana51 de Um Contrato com Deus, publicada em 1988.