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O estilo de linguagem de Will Eisner no gênero discursivo

UM CONTRATO COM DEUS E OUTRAS HISTÓRIAS DE CORTIÇO: QUE GÊNERO DISCURSIVO É ESSE?

estilo 67 deste gênero, o qual tem mais liberdade de enquadramento (ou não)

3.4 O estilo de linguagem de Will Eisner no gênero discursivo

graphic novel.

Todo enunciado – oral e escrito, primário e secundário e também em qualquer campo da comunicação discursiva – é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve) [...] Os gêneros mais favoráveis da literatura de ficção: aqui o estilo individual integra diretamente o próprio edifício do enunciado, é um de seus objetivos principais (contudo, no âmbito da literatura de ficção os diferentes gêneros são diferentes possibilidades para a expressão da

66 Conforme aparece no Índice da obra – Figura 8.

67 Para Bakhtin (2003), estilo de linguagem, estrutura composicional e gênero discursivo são indissociáveis.

individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da individualidade). (BAKHTIN, 2003, p. 265)

A partir da análise da capa da graphic novel Um Contrato com Deus

e outras histórias de cortiço foi possível perceber uma mudança na produção

de Will Eisner; segundo Bakhtin (2003), “as mudanças históricas dos estilos de linguagem estão indissoluvelmente ligadas às mudanças dos gêneros discursivos” (p. 267).

Apesar de optar por utilizar a linguagem híbrida – com a presença do verbal e do não verbal - Eisner enfatizou a finalidade da leitura para além do divertimento e entretenimento, buscando um leitor que fosse provocado a refletir, conforme ele mesmo salientou em seu prefácio. Assim, o estilo e a composição de suas graphic novels inovavam em uma proposta mais provocativa e menos “comportada” do que geralmente pode ser encontrado nas histórias em quadrinhos tradicionais.

A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilo de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. (BAKHTIN, 2003, p. 266).

O estilo das graphic novels é intensamente trabalhado por Eisner como forma de reafirmar ao leitor que a linguagem com as palavras e imagens – igualmente importantes e indissociáveis – compõe o realismo de suas memórias na criação de uma obra de ficção. O realismo dos traços visuais combina com o realismo do conteúdo temático desenvolvido nos enredos pela linguagem verbal, completando-o.

Para iniciar a primeira história, Eisner apresenta uma nova perspectiva do Cortiço nº 55 da Avenida Dropsie:

Figura 40 – A abertura da primeira história – Um Contrato com

Deus

Não se trata apenas de um desenho, mas do que poderia ser definido como uma “foto desenhada”, tamanha a perfeição dos traços. É como um cineasta ou um fotógrafo que, pela sua objetiva, fotografasse o bairro, mostrando sua enormidade dentro da cidade que parece esmagar seus moradores, em um contraste com a impotência dos protagonistas.

Neste cenário, observamos muitas construções parecidas, os cortiços. Supomos ser o central o Cortiço nº 55 (o único que se mostra por inteiro). Ao fundo, vemos o contraste com o restante da cidade. Mesmo altos, os cortiços são muito mais baixos que os arranha-céus de Nova York do início do século passado.

Os detalhes mostrados dos cortiços, suas escadas de incêndio, cada janela, o hidrante, os becos com suas latas de lixo, são primorosos, contudo algo nos chama a atenção: não há nenhum personagem nesta abertura de

capítulo, o que comprova nossa hipótese de que esse cortiço da avenida Dropsie, no Bronx, não é um simples pano de fundo, um cenário convencional. Este é o lugar por onde perpassam as quatro histórias que se entrelaçam em

Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, sobrevivendo

(sucumbindo)a todos as personagens que transitam por ele.

Essa imagem (Figura 40) é um convite ao leitor para que adentre a narrativa, utilizando um recurso comum na linguagem cinematográfica, em que o espectador tem diante de si, logo no início, uma tomada panorâmica que vai se aproximando de um local específico. Como carrega em sua constituição artística o movimento do cinema e a facilidade de desenhar, Eisner emprega esse recurso em suas graphic novels, como ele próprio nos indicou no prefácio (Figura 11):

Cada história foi escrita sem preocupação com o espaço que iria ocupar, e seu formato surgiu da própria narrativa. Aos quadrinhos normais associados à arte sequencial (HQ) foi dada a liberdade de tomar suas próprias dimensões. Por exemplo, em muitos casos uma página inteira é usada para uma única cena. (EISNER, 1988, p. 7)

O mesmo recurso visual está presente também nas outras três narrativas que compõem a primeira graphic novel.

Em Cantor de Rua, a cena retratada mostra a personagem, de costas para o leitor, com os braços abertos e chapéu ao chão. Vendo-o, já sabemos se tratar da personagem principal, que seria o “cantor”. Entretanto, o que chama a atenção é o local onde a personagem se encontra. Parece um beco entre vários prédios iguais (os cortiços), em que há varais cheios de roupas. O local é sujo, haja vista os latões de lixo e papéis espalhados, o que sugere a força do ambiente a esmagar o homem.

Figura 41 – A abertura da segunda narrativa – Cantor de Rua

Essa é a cena de apresentação da narrativa e, a partir da página seguinte (Figura 19)68, o leitor, já dentro do ambiente, inicia sua interpretação,

pois a perspectiva se abre e temos a abertura da história.

Em O Zelador, temos a cena que retrata o perder de vista de cortiços iguais, sendo que um está em destaque, aparecendo sua escadaria de entrada. Novamente a sujeira é destacada através dos latões de lixo e papéis que parecem ter movimento de “voo” pelo chão. Há uma personagem solitária evidenciada no canto inferior direito da cena, logo abaixo do 1º nível do cortiço, onde se encontra o porão. Debruçado sobre uma grade a personagem solitária parece olhar para o nada, fumando um cachimbo e trajando roupas simples. É

68 Figura 19 encontra-se na página 84.

um homem grande, forte e careca, levando o leitor a interpretar se seria esse a personagem “zelador”.

Figura 42 – A abertura da terceira história – O Zelador

Essa possibilidade de interpretação será confirmada na página seguinte, quando “entramos”, juntamente com a personagem – que agora notamos está em companhia de um cão – no subsolo do cortiço, onde é possível observar ainda mais sujeira, restos de tijolos, canos e uma enorme caldeira a carvão. Neste ambiente, há uma porta com uma tabuleta, na qual se lê a palavra “Zelador”. Atrás dessa porta encontra-se o aposento ocupado por essa personagem (Figura 24)69, alguém também pobre e impotente diante da

miséria que rodeia seu ambiente: um fracassado.

Na última narrativa, temos a cena de um local diferente. Estamos à entrada de uma Estação de Trem, onde pode-se ver uma grande ponte como pano de fundo e, pela fumaça, é possível interpretar que há um trem em movimento. Vários caminhões estão estacionados, provavelmente para transportar seus produtos via trem, havendo ainda algumas pessoas que transitam por este espaço.

Pode-se dizer que, nos anos 30, esse era um dos importantes locais para escoamento de produtos, logo muito importante para a vida econômica da cidade de Nova York. Uma ideia de contraste entre a imobilidade marcada pelo acúmulo das sujeiras, misérias nos becos e o movimento frenético de uma cidade que cresce com seu comércio e indústria.

Entretanto, é nas páginas seguintes (Figura 43) que entendemos a cena que acabamos de descrever. Na página que apresenta a história

Cookalein temos a imagem do cortiço do Bronx, que já conhecemos desde o

início da graphic novel, por uma perspectiva mais aberta, como se fosse uma câmera do alto. É possível notar vários cortiços, todos iguais, algumas pessoas nas janelas, nas calçadas e, para mostrar o fim do inverno como afirmado na apresentação da narrativa, podemos observar pássaros que pousam no teto de um dos cortiços, sugerindo que com o fim do frio pessoas e animais saem do espaço fechado e ocupam as ruas.

Somente com o início da história contada em palavras é que somos levados a uma melhor compreensão dessas duas cenas. Com o início do verão, os inquilinos dos cortiços - mulheres e crianças - saem de casa e têm o trem como meio de transporte para suas viagens de férias. A estação de trem possibilita uma “mudança”, mesmo que temporária, na vida dessas personagens, assim como os produtos que são transportados/despachados de um lugar para outro.

No entanto, como afirmamos anteriormente, essa característica de expor a seu leitor o local onde ocorrerão as ações não acontece somente em

Um Contrato com Deus e outras histórias de cortiços; há outras graphic novels

de Will Eisner que apresentam esse recurso linguístico.

O Contrato com Deus e outras histórias de cortiço é exemplar do

estilo utilizado por Eisner na produção de suas graphic novels quanto à abertura do enredo pela apresentação visual – imagem – do ambiente em que se desenrolará a história. Mais do que isto, o ambiente onde ocorrem os fatos atua sobre as personagens, sendo praticamente uma dessas personagens, pela força que exerce sobre o enredo, as ações e o comportamento delas, oprimidas pela impotência em superá-lo e ultrapassá-lo.

No estilo que caracteriza as graphic novels, a hibridez da linguagem é uma presença importante. Nela, as linguagens verbal e não verbal são indissolúveis uma da outra, gerando sentidos e possibilidades de efeitos estéticos possíveis a partir dessa intrincada relação.

A hibridez dessas linguagens, construída pelo desenho visual do verbal (das palavras), produz um efeito estético, literário. Eisner é um artesão dessas construções como forma de diferenciar graphic novel dos modos usuais de apresentação das histórias em quadrinhos, em que a linguagem verbal vem delimitada em balões ou na parte superior de cada cena dividida nos quadros.

Depois de apresentar o ambiente, o Cortiço nº 55, Eisner traz novamente para o leitor a personagem estampada na capa (Figura 3) – Frimme Hersh – de uma perspectiva diferente, mas ainda não muito aproximada:

A cena encontra-se estampada em uma página toda na cor sépia, mas de tom sombrio, que se ilumina/clareia apenas com o título Um Contrato

com Deus, como se grafado em um pedaço de concreto ou pedra, e que como

todo o resto também se encontra encharcado pela chuva que não cessa. Acima da cabeça do homem, a pedra ocupa no espaço da folha o lugar de uma nuvem, da qual a chuva despenca. Sugere ainda a imagem de algo muito pesado que cai sobre o protagonista. Em tamanho bem grande e iluminado, esse título se sobressai das sombras dos cortiços e de Hersh, que caminha sob forte chuva, mais impiedosa do que a que vimos na capa, pois os traços dos cortiços, que na capa eram como sombra, agora nem aparecem. A nossa personagem, curvada, parece caminhar lentamente, com os pés e sapatos molhando-se nas grandes poças, até mesmo na calçada. Supomos que Frimme Hersh já aparecera em uma cena anterior, aquela da capa, quando se pode levantar a hipótese de que retrata o momento em que ele retorna do funeral de sua filha, já entrando em sua casa no Cortiço nº 55, enquanto que aqui (Figura 45) está caminhando pela rua.

Não é pela descrição ou com a expressão em palavras, com ênfase em determinados termos carregados de sentidos que remetem à força da chuva e da dor vividos pela personagem, que Eisner quer convencer seu leitor. O leitor poder inferir que “Um Contrato de Deus” é o mote de todo o enredo, não só pelo lugar que ocupa na pedra acima da cabeça do protagonista, que poderá despencar e amassá-lo a qualquer momento, assim como a chuva o encharca, mas porque é apenas esta expressão que se encontra crivada em palavra no cenário todo visual.

Este recurso estilístico adotado por Eisner – em que a imagem ocupa a mesma importância que o verbal na narrativa - e que, em pequenas variações, sob diferentes perspectivas, reforça a imagem da imensa dor de um sujeito que caminha até sua casa, está presente em outras páginas que se seguem (da 16 a 19 – Figura 46) desta obra.

Com essas cenas, o narrador descreve a Av. Dropsie - o ambiente em que elas se desenrolam – sendo “inundado” pela abundância das águas que se avolumam, página a página, de forma gradual. Palavras como “transbordavam”, “erguer”, “flutuar”, “maré turbulenta” e “Arca de Noé”,

reforçam a imagem do aumento do volume das águas. A posição das palavras, uma abaixo da outra (o dia/inteiro/a chuva/caiu sem/piedade/sobre o/Bronx), sugere a chuva que cai, sem parar e que é pesada porque ocupa metade da página. A divisão da frase, separando aleatoriamente substantivo de adjetivo (dia/ inteiro), artigo de substantivo (o/Bronx), sujeito de predicado (a chuva/caiu sem/) parece desenhar um movimento da chuva que acompanha a caminhada da protagonista.

Figura 46 – Sequência narrativa da volta de Frimme à sua casa após o funeral da filha (p. 16 a 19).

Toda a obra é, portanto, apresentada ao leitor primeiramente pelo cenário (sob a ação de uma chuva) e a personagem que caminha, abatida, sob ela, trabalhados verbal e imageticamente pelo autor, de forma a criar um estilo próprio do gênero graphic novel (Figuras 45 e 46). O jogo de tipos de letras - reconhecidas pela forma tradicional das impressas ou matizada pelo desenho do conteúdo que as palavras buscam expressar – também é um recurso estilístico de Eisner.

Na página 18, (Figura 46), o desenho das letras “choram”, assim como choram os “dez mil anjos” que causam o dilúvio, enquanto que abaixo a fala de um narrador onisciente completa em letras impressas tradicionais: “e, pensando bem, talvez, fosse isto que estivesse acontecendo...”. Palavras compostas por letras que são respingos que caem além de seus contornos, remetendo à poesia concreta70.

70 Bosi (1982) afirma sobre a poesia concreta: “Na medida em que o material significante assume o primeiro plano, verbal e visual, o poeta concreto inova em vários campos que se podem assim enumerar: a) no campo semântico: ideogramas (‘apelo à comunicação não- verbal’, segundo o Plano-Piloto cit.) ; polissemia, trocadilho, nonsense...; b) no campo sintático: ilhamento ou atomização das partes do discurso; justaposição; redistribuição de elementos; ruptura com a sintaxe da proposição; c) no campo léxico: substantivos concretos, neologismos, tecnicismos, estrangeirismos, siglas, termos plurilíngues; d ) no campo morfológico: desintegração do sintagma nos seus morfemas; separação dos prefixos, dos radicais, dos sufixos; uso intensivo de certos morfemas; e ) no campo fonético: figuras de repetição sonora (aliterações, assonâncias, rimas internas, homoteleutons); preferência dada às consoantes e

A remissão a um objeto ligado à mitologia religiosa na forma de metáfora na página 17 da obra (Figura 46), quando o Cortiço nº 55 na Av. Dropsie é comparado à arca construída por Noé para abrigar a própria família e um casal de cada espécie animal, salvando-os assim de um dilúvio anunciado por Deus como castigo à humanidade, também se constitui em uma imagem que aciona um sentido bastante familiar na cultura letrada. Sugere que somente os escolhidos (alguns animais e parte da família de Noé) seriam os responsáveis por repovoar a Terra – apesar de, no caso da personagem, sabermos que há nesse “dilúvio” mais castigo que salvação, pois afinal Hersh havia perdido seu bem mais precioso: a própria filha.

Em contrapartida, entre cenários, textos “molhados” e letras e enunciados que “choram”, o narrador evoca, semanticamente, ainda o campo religioso para buscar mais uma explicação para “tanta água”: “Somente as lágrimas de dez mil anjos chorando poderiam causar tamanho dilúvio!” (EISNER, 1988, p. 18, Figura 46). Uma possiblidade de interpretação desses deslocamentos de sentido para o entendimento da quantidade excessiva de chuva como dilúvio (castigo) e volumoso pranto dos anjos (tristeza), é que eles funcionariam como recurso para caracterizar metaforicamente toda a imensa dor sentida por Hersh.

O tamanho dessa dor (metaforizada pelo uso de palavras como “dilúvio” e pelo pranto angelical) é imageticamente sugerido pela apresentação de Frimme, sempre encharcado, curvado, a caminhar em passos vagarosos após o funeral – na capa (Figura 3) e nas páginas 15 a 19 (Figuras 45 e 46). Na página 19, por exemplo, a imagem da subida dos degraus da escada de sua casa (outra perspectiva da cena que observamos na capa) é bem representativa da intenção do autor em criar o clima pesado que acompanha o protagonista. Portanto, podemos asseverar que a nossa história não se inicia na página 13 como nos é apresentado no índice (Figura 8), mas sim na própria capa (Figura 3), quando ocorre o primeiro contato com Frimme Hersh. Afinal,

aos grupos consonantais; jogos sonoros; f) no campo topográfico: abolição do verso, não- linearidade; uso construtivo dos espaços brancos; ausência de sinais de pontuação; constelações; sintaxe gráfica. Se procurarmos um princípio linguístico geral subjacente a esses processos compositivos, ressaltará, sem dúvida, o da substituição da estrutura frásica, peculiar ao verso, por estruturas nominais; estas, por sua vez, relacionam-se espacialmente, tanto na direção horizontal como na vertical.” (p. 537).

desde a capa são apresentados ao leitor três personagens importantes nessa narrativa: o Cortiço nº 55 na Avenida Dropsie, o Sr. Frimme Hersh, e mesmo Deus, na forma de chuva, quase um dilúvio. Todas essas imagens e palavras já sugerem o clima da história: dor e sofrimento de um corpo curvado que se movimenta com lentidão, sem pressa de chegar a qualquer lugar, exposto a condições desfavoráveis: a vida em um cortiço e uma chuva torrencial que tudo encharca e tudo domina.

O desfecho da narrativa é ainda outro exemplo da força da imagem juntamente com o destaque que o autor quer oferecer ao leitor pelo uso de uma única palavra.

Figura 47 – O desfecho da narrativa (p. 67).

A cena, que toma toda a página, apresenta sobre as nuvens a palavra “epílogo”71, possibilitando a interpretação de que a última palavra, o

71 Segundo o dicionário Houaiss (p. 783) significa “remate de uma peça literária, em que se faz a recapitulação e o resumo da ação; desfecho; fecho; final.”

fim, só Deus determina. Isso fica ainda mais evidente quando notamos que a forma como foi grafada a palavra está como se esta houvesse sido escrita em um buraco negro, desenhada, lembrando-nos da mesma reverência conferida ao título da obra, na página 15, quando a história se inicia (Figura 40). Eisner desenha uma nuvem – trovões e um céu negro – a derramar-se torrencialmente por toda a página, dando ideia de que é nesta dimensão que o epílogo ocorre. O desfecho da história, inscrito no interior de um buraco negro, desaba com força total, como a chuva.

Segundo Ferreira (2012; 2014), o uso estético literário é reconhecido pelas instâncias legitimadoras como aquele que matiza, com singularidade e propriedade, a própria linguagem. É um uso da linguagem em que o autor potencializa a imaginação e a fantasia, com recursos que buscam promover sentidos polissêmicos, criativos, desviantes; é produto de um trabalho intencional (lavrar palavras) com a própria linguagem, realizado por um sujeito situado dentro de um sistema literário, que orienta suas regras de composição que inclui esse objeto como um bem simbólico de prestígio. Um uso da linguagem instalado – estético literário – constitutivo de um texto que é mobilizado pela prática cultural da leitura, que incita, provoca e obriga a sua inteligibilidade. O texto em si não garante a sua literariedade, quando desencarnado das práticas que lhe dão a significação: “isto é literatura”. (FERREIRA, 2012, p. 86). Uma prática de ler literatura que diferentemente de práticas de leituras de outros usos da linguagem, é bastante divulgada e legitimada socialmente como aquela que produz diferentes sentidos (não apenas uma única interpretação), que provoca surpresa no leitor, instaura um certo modo de interlocução, que aproxima e afasta diferentes sensibilidades, imaginários, subjetividades, ideários. E, como podemos perceber, na concretude das graphic novels Eisner explorou esse uso estético literário. Mas saber se a prática de leitura da graphic novel é capaz de mobilizar esse uso literário, tal como ele foi intencionalmente trabalhado, pode ser objeto de outras pesquisas futuras.

Saber como as graphic novels são e serão recebidas pelos leitores é um campo ainda a ser explorado.