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O “nascimento” da graphic novel: Um Contrato com Deus e

O “NASCIMENTO” DA GRAPHIC NOVEL : AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO COMO AUTOR

2.3 O “nascimento” da graphic novel: Um Contrato com Deus e

outras histórias de cortiço

Will Eisner – produzindo graphic novels40

“Tentei nesse livro construir uma narrativa em cima de temas íntimos meus. Em quatro histórias, situadas em um prédio de aluguel, selecionei de minha própria experiência e daquela de meus contemporâneos memórias que mostrassem um pedaço da América ainda não de todo conhecido.”41

39 Fragmento do Prefácio de The Contract with God Trilogy, publicado em 2006.

40 Will Eisner ‘Espionage’. Disponível em <http: www.beathethink.tripod.com>. Acesso em 13/06/2016.

41 Trecho do Prefácio de EISNER, W. Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço,

A primeira graphic novel de Eisner é composta por quatro contos entrelaçados que ocorrem em um mesmo espaço físico: o cortiço nº 55 da Avenida Dropsie. São eles: Um Contrato com Deus, O Cantor de Rua, O

Zelador e Cookalein – seguindo um tema central: a sobrevivência na cidade

grande.

Um empreendimento que, segundo Schumacher (2013), teve tentativas e erros, escritas e reescritas, desenhos e redesenhos e que, desde o esboço inicial até o álbum pronto, consumiu dois anos de muito trabalho.

Cada uma das quatro histórias teve liberdade de ter a dimensão que necessitasse – na quantidade de páginas, na disposição de texto verbal e das imagens nas folhas – apontando para o surgimento de um gênero discursivo diferente:

O texto e os balões estão interligados à arte. Eu os considero como fios de um mesmo tecido e faço uso deles enquanto linguagem. Caso eu tenha atingido meu propósito, não haverá interrupções no fluxo da narrativa, porque figura e texto serão interdependentes a ponto de ser

inseparáveis.42 (SCHUMACHER, 2013, p. 234.)

Ao editar a obra, Eisner optou pela cor sépia, talvez assumindo o tom de memória e sonho que caracterizam o seu conteúdo temático.

Finalizada a obra, no entanto, nenhuma grande editora de Nova York se interessou pela sua publicação, talvez porque ela não se enquadrasse em nada que essas editoras já houvessem publicado. Eisner negou-se publicá- la pela editora de Kitchen – especialista em gibis e revistas em quadrinhos. Sua compreensão era de que Um Contrato com Deus e outras histórias de cortiço se distanciava do comic ou comix e, provavelmente, representava um novo gênero dentro do nicho editorial. Nesse sentido, ele cunhou a nova produção como graphic novel, oferecendo-a a Oscar Dystel, presidente da Bantam Books, que se interessou em conhecê-la, mas, naquele momento, não viu potencial em publicá-la.

Foi a Baronet Books, uma pequena editora nova iorquina, que enxergou o que os editores das grandes empresas não haviam conseguido ver até então: antever seu diferencial no mercado editorial.

Durante o processo de edição da obra, a editora Baronet Books passava por problemas financeiros, o que levou Eisner a emprestar-lhe

dinheiro para finalizar a operação. Segundo Shumacher (2013), a única mudança sugerida pela editora e atendida por Will Eisner foi a alteração do título da obra. A princípio, ela se chamaria The Tenement (O Cortiço), contudo o editor sugeriu A Contract with God and Other Tenement Stories (Um Contrato

com Deus e outras Histórias de cortiço), título este talvez de mais fácil

compreensão e mais atrativo para os leitores. A obra, além do título, teve acrescentada em sua capa a informação “uma graphic novel de Will Eisner”, oferecendo aos leitores um produto novo de um autor já (re)conhecido.

Na primeira história – Um Contrato com Deus – Eisner cria a personagem Frimme Hersh, um imigrante russo-judeu nos EUA, morador do cortiço nº 55 na Dropsie Avenida, no Bronx, Nova York, no período da Depressão43.

Quando criança e antes de chegar à América, Hersh vivia na Rússia, em extrema pobreza, tendo sobrevivido a um massacre instaurado pelos cristãos russos contra os judeus.

Por ser generoso e ajudar os que precisavam com suas boas ações, foi incumbido de acompanhar um rabino em sua fuga para os EUA, a fim de salvá-lo das perseguições.

Durante a fuga, Hersh ouvia do rabino sobre a bondade e justiça de Deus e de como este recompensava a quem lhe fosse fiel. Imbuído de crença e amor por Deus, Hersh redigiu em uma pedra um Contrato com Deus, no qual se comprometia a seguir Seus ensinamentos em troca de Sua proteção. Esse Contrato estava sempre com Hersh, em seu bolso, para lembrá-lo de seu compromisso.

Já nos EUA, estabeleceu-se em um cortiço no Bronx, Nova York, morando em um quarto cedido pela própria sinagoga. Foi neste lugar que cresceu e, mesmo solteiro, adotou um bebê que fora abandonado à sua porta, batizando-a com o nome de Rachele, em homenagem a sua própria mãe. Embora a tenha criado com todo amor e dedicação, a garota sucumbiu a uma doença fatal, morrendo em plena adolescência.

A perda de Rachele faz Hersh revoltar-se contra Deus, pois Ele não fora justo, não cumprira sua parte no contrato. Inicia-se aí uma discussão entre

Hersh e Deus, até que o primeiro resolve que o contrato firmado anos atrás não tem mais valor, cuspindo na pedra e a atirando para fora da janela.

A partir desse momento, uma chuva torrencial cai sobre o Bronx durante todo o período de luto. Após esse período, nasce um novo Hersh: “morre” o bom judeu, de aspecto desleixado e ar caridoso, para “nascer” um homem de negócios sem escrúpulos, que utiliza os títulos da sinagoga que estavam aos seus cuidados para iniciar um império.

Após algum tempo, Hersh se arrepende de suas atitudes e busca uma forma de voltar a ser bom. Para isso, solicita aos rabinos da sinagoga, em troca de dinheiro, um novo contrato com Deus, com cláusulas mais específicas e sólidas.

De posse do novo contrato, Hersh volta ao mesmo quarto do cortiço e novamente intima Deus, dizendo que Ele agora não poderia mais quebrar o contrato, pois afinal havia testemunhas e as palavras estavam corretas e adequadas. Contudo, ele não teve tempo de terminar sua fala, pois sentiu uma forte dor no peito e, em pouco tempo, morreu, quebrando de vez seu contrato com Deus.

Já no segundo conto – O Cantor de Rua – o autor conta a história de Eddie, contador desempregado como muitos na época da Grande Depressão, que em troca de algumas moedas se dedica a ser um cantor de rua, exercendo sua “arte” nos becos entre os cortiços do Bronx, como um “menestrel andarilho”.

Os problemas financeiros, sociais, profissionais e emocionais enfrentados por Eddie materializavam-se em abuso de álcool, causando agressões à sua esposa grávida e seu pequeno filho. Contudo, após a embriaguez, vinham o arrependimento e os pedidos de desculpas, que comoviam sua mulher, a qual sempre o perdoava.

Em um dia de trabalho que parecia normal, Eddie recebe por suas cantorias, ao invés de moedas, um bilhete dizendo para subir a um apartamento de um dos cortiços. Intrigado, Eddie chega à porta de Diva Marta Maria. Esta personagem, uma cantora outrora famosa, encontrava-se tão decadente quanto Eddie.

Diva Marta Maria oferece a chance de Eddie trocar os becos do Bronx por um possível estrelato, em troca de transformar-se em seu amante. A

todo momento, os planos e sonhos de Diva Marta Maria são apresentados a Eddie em um entusiasmado monólogo. Em nenhum momento ela pergunta o nome de seu futuro pupilo, inclusive já sugere para ele vários nomes artísticos (assim como o dela, que na realidade era Sylvia Speegel), resolvendo-se finalmente por Ronald Barry.

Tudo decidido, a personagem deu até dinheiro para que Eddie comprasse roupas melhores. Aparentemente, a vida de Eddie estava resolvida. Ele pensou em aproveitar-se da oferta de Diva Marta Maria até atingir o sucesso, quando a abandonaria. No entanto, havia apenas um único problema: o “menestrel andarilho” que cantava sua “arte” nos becos anônimos dos cortiços todos iguais do Bronx, não tinha nenhum contato de Diva Marta Maria, ou seja, não sabia como retornar à casa da sua futura protetora. Conclusão: sonhos desfeitos, só restou-lhe retornar ao miserável ofício de alegrar um pouco a vida dos anônimos inquilinos dos muitos cortiços, continuando a cantar suas óperas pelos becos.

Na penúltima narrativa – O Zelador – Eisner produz uma história sobre uma figura temida nos cortiços, o zelador, o espião do dono e inimigo dos inquilinos. Scuggs, um homem grande e misterioso, sempre acompanhado de perto pelo seu cão, aparentava ser agressivo e todos os inquilinos mais temiam-no do que o respeitavam.

Um dia, devido ao desligamento da caldeira, o Sr. Scuggs foi até o apartamento da Sra. Farfel, que reclamara da água fria, uma vez que sua sobrinha, uma garota de 10 anos, poderia adoecer por ter que tomar banho gelado.

Scuggs surpreendeu-se ao ver a garota sair do banheiro, com cara de má, nua e enrolada em uma toalha. Atordoado, ele volta ao seu alojamento no porão do cortiço, com paredes cobertas de fotos de mulheres nuas, para alimentar seu cão Hugo e para saciar seus instintos observando essas fotos, quando é surpreendido pela visita da “inocente garotinha”.

Rindo das fotos expostas, a “inocente” ofereceu-se, deixando-o ver suas partes íntimas em troca de um níquel. Aceitando o oferecimento, o zelador fui buscar o dinheiro, revelando onde guardava suas economias. Neste momento, a garotinha deu um petisco a Hugo e, enquanto Scuggs foi à porta para verificar se não havia ninguém que pudesse vê-la sair de seu alojamento,

a “inocente” roubou as economias do zelador e fugiu, deixando-o muito irado e o seu próprio cão morto por envenenamento.

Ao tentar recuperar seu dinheiro, Scuggs foi hostilizado pelos inquilinos, que chamaram a polícia, sendo acusado de agressão sexual. Sem saída, o zelador ligou a caldeira, voltou a seu apartamento, despediu-se, aos prantos, do cão Hugo, seu único amigo e, quando a polícia o intimou a sair do alojamento para prendê-lo, tirou a própria vida.

Os inquilinos, sem nunca o terem realmente conhecido, continuaram acusando-o mesmo após sua morte. Quanto à “inocente garotinha”, saiu como vítima, mas contando as notas do dinheiro conseguido.

Já a última história – Cookalein – talvez seja a narrativa mais autobiográfica da fase jovem de Will Eisner nesta graphic novel. Com personagens batizados com os nomes reais de seus familiares – Willie (o próprio Will Eisner), Petey (seu irmão mais novo), Sam (seu pai) e Fannie (sua mãe) – conta a história de uma viagem de verão, quando a personagem Willie contava com seus 15 anos.

Por serem de família pobre, no início do verão os filhos e a mãe seguiam viagem para uma fazenda, onde se hospedavam em troca do trabalho da mãe em cozinhar para seus filhos e talvez para outros hóspedes –

Cookalein é uma palavra mista composta pelos idiomas inglês e iídiche,

significando “cozinhar por conta própria” – barateando os gastos com a viagem. Com a viagem como pano de fundo, muitas revelações são feitas: Fannie abre o jogo com Sam, mostrando saber de sua relação extraconjungal e intimando-o a continuar com a amante, mas exigindo que isso não fosse um fator a desunir a família, tudo pela educação dos filhos. Já Willie teve sua primeira relação sexual, justamente com uma mulher casada. Petey conheceu as diferenças existentes entre meninos e meninas, e outras personagens pobres que tentaram encontrar casamentos de conveniência fingindo ser ricos – Benny, o cortador de peles; Goldie, a secretária da loja onde Sam trabalha – antes de atingirem seus objetivos acabaram enganando um ao outro, numa farsa que culmina em uma tentativa de estupro de Benny contra Goldie.

Ao término do verão, depois de todas as descobertas e acontecimentos, a família de Willie retorna ao cortiço para continuar a vida, mas desta vez Fannie avisa ao filho mais velho que, devido ao afastamento do

pai por “viagens de negócios”, será Willie que assumirá a responsabilidade de homem da casa.

As quatro histórias entrelaçadas pelo ambiente – todas as personagens são moradores no cortiço 55 da Avenida Dropsie no Bronx – constitui a primeira graphic novel e, a partir dessa, outras foram publicadas e levadas a várias partes do mundo, inclusive para dentro das escolas públicas brasileiras, como já afirmamos.

CAPÍTULO 3

UM CONTRATO COM DEUS E OUTRAS HISTÓRIAS DE