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2. DO PALHAÇO PARA A DANÇA 1 Palhaços – possibilidades de aprender

2.3 A capacidade de jogar, dança?

E aí o aprendiz de palhaço percebe que ele não tem outra escolha a não ser continuar caminhando.

(PUCCETTI, 2006, p. 25)

Como esclarecido ao longo deste capítulo, compreendemos a importância dos jogos na formação do palhaço contemporâneo. Todavia, uma das características desta pesquisa é a convergência de autores que deslocam o foco de suas reflexões da atividade para a pessoa que a vivencia, ou mais especificamente para os processos do corpo em determinadas situações.

Pesquisadora em dança, Pinho (2009) se interessou nas especificidades da improvisação e motivada por certo desconforto com a observação de que as questões de envolvimento coletivo demandam em geral, soluções coreográficas convencionais que muitas vezes acabam por imprimir na improvisação características de outros modos de criação em dança. A interação coletiva e a busca de soluções mais apropriadas para a improvisação são seus focos de pesquisa. A estruturação de jogos-cena é o que propõe como solução coreográfica para improvisação, pois argumenta que ao mesmo tempo em que orienta o desempenho dos interpretes, os mantêm integrados a ―uma ação conjunta dentro de um campo aberto de escolhas‖ (PINHO, 2009, p. 11). Embora ludicidade não

seja um conceito utilizado e nem mesmo um tema de interesse da pesquisadora, as situações elaboradas são, à luz desta pesquisa, reconhecidas como propulsoras de estados de ludicidade para os intérpretes, a partir das qualidades de presença e prontidão que possibilitam. É um exemplo de utilização de estruturas de jogo como organização coreográfica para a cena improvisada de dança.

Dois autores ocupam lugar nuclear na compreensão conceitual dos estados de ludicidade: Luckesi (2005) e Damásio (2011). O primeiro valoriza o modo como as experiências são vividas por cada um e, sobretudo, as sensações que provocam no corpo. Desta forma, permite delinear um campo amplo de possibilidades de experimentação da ludicidade e redefini-la tendo em vista os processos corporais que resultam do envolvimento da pessoa com as atividades que lhes são propostas. A partir da associação das questões de Luckesi (2005) com os estudos de Damásio, que facilitaram o entendimento sobre estados corporais e os processos da consciência, chegamos à indicação do que denominamos de estados de ludicidade, como um dos eixos de pesquisa do palhaço para a dança. A partir desta rede conceitual, do reconhecimento sobre o papel da integração de jogos e brincadeiras no treinamento do palhaço contemporâneo e mais ainda, do desejo de transgredir o jogo como possibilidade de organização de cena, chegou-se à definição do segundo eixo de pesquisa: a capacidade de jogar.

Da área teatral, Ryngaert (2009) se preocupa especialmente com a relação das pessoas com o jogo e com o mundo, provocando também para uma mudança de perspectiva nas discussões sobre o jogo. A leitura deste autor permite esclarecer modos de fazer teatro em que as preocupações convergem com os dizeres de Pinho (2009). Assim, são como um fio condutor nos processos de criação e estruturação da cena: o não enrijecimento em estruturas pré-organizadas e o não esvaziamento em decorrência da falta de propósitos claros. Ryngaert (2009) também apresenta preocupações muito próximas às da arte de palhaço do ponto de vista pela qual ela é compreendida nesta pesquisa em dança, esclarecendo aspectos que podem estar presentes também em proposições para o trabalho do artistaem geral, e não somente para o palhaço.

O Lume Teatro é também um exemplo, no qual os princípios éticos e técnicos são desenvolvidos tendo em vista o trabalho de corpo em sua mais ampla compreensão, a partir dos fundamentos da não interpretação. As especificidades do palhaço caracterizam apenas uma entre as vertentes de pesquisa do grupo.

Deste modo, para desenvolver a capacidade de jogar como eixo de pesquisa do palhaço para a dança, serão abordadas primeiramente as distinções entre técnica de treinamento e técnica de representação discutidas por Burnier (2009). Entretanto, sem nos dedicar à nomenclatura e suas origens, nos interessa especificamente o entendimento de treinamento e a relação que descreve como inevitável entre estas duas. O autor afirma que estão entrelaçadas, pois o treinamento deve preparar o artista na técnica dentro das opções artísticas e estéticas da obra em construção. ―Ou seja, as técnicas estão vinculadas às suas expressões artísticas‖ (BURNIER, 2009, p. 171) e no caso do teatro, tanto a técnica de representação como a de treinamento, está vinculada a sua forma de expressão. Como o exemplo citado pelo autor, para uma representação teatral de um texto expressionista não faria muito sentido utilizar de técnicas realistas. E na expressão artística da dança, de que modo podemos pensar essa relação? Certamente será muito diferente se a referência for dança contemporânea. Existem muitos grupos que em cena trazem a dança contemporânea, mas em seu treinamento utilizam de técnicas como o ballet clássico, dança moderna de Graham, entre outros. Mas se for o caso de uma encenação de um ballet de repertório, o treinamento deverá ser o próprio ballet. A relação entre o que se treina e o que se dança em cena pode ser explicada de diversas maneiras. Uma vez que não foi definida anteriormente a estética de dança a ser apresentada, mas sim o que se quer no treinamento para criação dessa dança, o desafio aqui está na reflexão de quais elementos da formação do palhaço podem se constituir como componentes para um treinamento em dança, tendo em vista a (co)geração de estados de ludicidade. Para isso no dedicaremos agora, a compreensão do que vem a ser a capacidade de jogar, bem como aos elementos que a integram.

Com o foco na compreensão das relações que as pessoas criam com o jogo, Ryngaert (2009) o define como uma zona intermediária que funciona como campo de experimentação criativa. Para alcançar esta reflexão propõe como parâmetro de compreensão, os modos de experiência da criança com o jogo e deste ponto de vista, podemos perceber que há também uma mudança de perspectiva sobre o espaço-tempo.

Assim como autores mais tradicionais sobre o assunto, Ryngaert (2009) considera que um jogo tem entre suas características marcantes, o espaço-tempo definidos, onde e quando começa e termina. E se refletirmos sobre a atitude da criança, o espaço-tempo em que ocorre continua sendo definido, mas quem o define é a própria

criança. Muitas vezes, um jogo acaba quando ela se desinteressa por ele ou quando surge outra brincadeira, que pode ser uma transformação da primeira. Aí o jogo não terá finalizado, mas haverá se transformado em outro. Da mesma maneira ocorre com o jogador que, ao conquistar o aumento da sua capacidade de jogo, vive cada vez mais intensamente a imersão nesta zona intermediária de experimentação. Denomina de intermediária porque considera que o jogo não é nem aquilo que ocorre no corpo do jogador, e nem é a situação ou a própria atividade, mas é um espaço potencial, o que está no ―entre‖, nas relações e tensões que se constroem. Assim, transita entre o real e o imaginário, constitui-se como uma possibilidade de experimentação do real com a diminuição de seus riscos, como acontece com a criança que permite que uma brincadeira se transforme em outra, pela fluência criativa. Para Puccetti (2006, p. 25) o tempo de sustentação do jogo é o tempo que o artista consegue se manter disponível, no estado de palhaço, de jogar na lógica do palhaço.

Ricardo Puccetti (1999) em um de seus artigos faz menção a uma concepção de palhaço cuja metodologia de criação abrange a uso de máscaras e que muito se assemelha a esse espaço potencial de experimentação. Afirma então que ―o clown, para Sue Morrison13, não é um estilo, é o espaço de onde você atua, espaço onde tudo é possível, onde nada é fixo. O clown existe na relação entre as máscaras e a platéia, ele está "entre".‖ (PUCCETTI, 1999, p. 92). É como o entendimento do espaço mágico14 proposto por Michael Kennard, que conduz ao entendimento deste espaço do entre, como uma espécie de vínculo que se cria entre artista e público, como uma zona de sobreposição de fluxos, uma zona de encontro.

Uma vez considerado o jogo como a zona intermediária, o que está no entre, está afirmando também o espaço do coletivo, o ambiente que se cria e configura o espaço- tempo chamado jogo. Por esse motivo o engajamento e concentração de cada jogador atuam como aspectos favoráveis à criação deste campo de experimentação.

Vejamos novamente um exemplo citado no capítulo um sobre o jogo da bola imaginária. Praticá-lo em grupo, fora do contexto da sala, exigiu um engajamento e concentração muito maior e observou-se que isto possibilitou de fato o aumento da

13 Sue Morrison é internacionalmente reconhecida como professora orientadora de trabalhos de clown e bufão, performer experiente, diretora The Theatre Resource Centre, na cidade de Montreal – CA, coordena o curso conhecido com O Clown através da Máscara, em continuidade a metodologia de Richard Pochinko. 14 Capítulo 2, p. 55.

capacidade de jogo que, como uma via não apenas de mão dupla, mas de muitas mãos, potencializou o próprio jogo. De tal modo que diferentes formas de brincar com a bola foram surgindo espontaneamente no decorrer da atividade. O campo de experimentação criativa estava instalado e uma vez que bola (imaginária) foi lançada para o alto no centro da roda, sem ser direcionada a nenhum outro jogador, todos compreenderam de imediato que a bola seria então, de domínio daquele que a alcançasse primeiro. Mas como saber quem alcançou primeiro uma bola imaginária? É uma negociação decorrente do fluxo criativo em curso. É o jogo sendo reinventado mais uma vez. Muito embora esta não seja uma experiência de dança especificamente, é imprescindível que ela ocorra, com a ―bola imaginária‖ ou qualquer outro jogo em grupo, para gerar o conhecimento no corpopessoa tanto dos estados como da capacidade a ser desenvolvida para a dança, enquanto modo de agir.

Ryngaert (2009) ao defender que não devemos nos enrijecer em regras de funcionamento nem do processo, nem do produto, argumenta que a capacidade de jogo implica especialmente outras formas de relação entre processo e produto.

Consideremos, portanto, a abertura para um público como uma possibilidade, não como um objetivo final que deve ser atingido a qualquer preço, sobretudo em detrimento dos indivíduos. O acabamento de um trabalho (sempre provisório) é uma eventualidade, não uma exigência que impõe a ditadura de resultados visíveis. (RYNGAERT, 2009, p. 32).

Desta maneira, nos interessa as relações que constrói entre improvisação como técnica de treinamento, desenvolvimento da capacidade de jogo e as possibilidades de interação com o público que podem ou não gerar modificações na cena. Porém, em divergência

O clown se alimenta dos estímulos que vêm de seus espectadores, interagindo com eles, numa dinâmica de ação e reação. Essa interação com os espectadores e também com outros clowns significa uma possibilidade de alteração da sequência das ações do clown. (BURNIER, 2001, p. 219).

A afirmação esclarece a abertura e disponibilidade ao outro, aos estímulos que vem da plateia como uma condição na atuação do clown, mas assume a alteração de seu roteiro ou sequência de ações como uma possibilidade decorrente dessa abertura. Mesmo quando o palhaço apresenta uma cena cuja partitura é toda codificada

sequencialmente, ele deve manter-se neste estado de abertura, no estado de presença capaz de reagir a qualquer estímulo do ambiente. A partir da interação dessas duas perspectivas, o treino que resulta no aumento da capacidade de jogo é considerado como uma forma de conquistar habilidades de interação, ou desenvolver uma atitude de disponibilidade com o público.

A imersão no espaço potencial de criação é referida também por Ryngaert (2009) como um ―estado de jogo‖ ao qual o artista permite abandonar-se na medida em que alcança hábitos de concentração. Assim, discute mecanismos pessoais que influenciam tanto no aumento da capacidade de jogo quanto podem frear a possibilidade de se empenhar nele. Esses mecanismos serão apresentados a partir de um recorte em função das convergências com aspectos encontrados nas Iniciações em palhaço, bem como para direcionar o debate para a dança.

A discussão que se apresenta no primeiro capítulo através da pesquisa de Pinho (2009) evidencia a dificuldade dos dançarinos de sustentar o jogo proposto em função de uma preocupação exagerada com a forma e a estética do movimento. Preocupação esta, muito comum no bailarino de formação técnica convencional. Para Ryngaert (2009) seria uma forma de negação do jogo em consequência da própria dificuldade de jogar, que pode ser escondida em seu ―saber-fazer‖. Na dança, além do exemplo de Pinho (2009), podemos relatar que, em geral, dançarinos que têm essa dificuldade de jogar, quando convidados ao espaço potencial de experimentação, utilizam-se de ―cartas nas mangas‖, de ações e movimento que já dominam, mantendo-se numa zona de bem- estar que ilusoriamente os protege de qualquer constrangimento, ou do sentimento de ridículo.

A capacidade de jogo de um indivíduo se define por sua prontidão de levar em conta o movimento em curso, de assumir totalmente sua presença real a cada instante da representação, sem memória aparente daquilo que se passou e sem antecipação visível do que irá ocorrer no instante seguinte. (Ryngaert, 2009, p. 54-55).

Essa compreensão parece muito próxima à descrição de Puccetti (2006) sobre o estado de presença do palhaço, bem como se aproxima de Damásio (2011), em relação ao fluxo de consciência. Neste sentido, quando nos mantemos atentos ao aqui agora, o

self central está mais atuante na ação, sem exigir habilidades de memória e raciocínio elaborado sobre o mundo o cerca.

Uma qualidade comumente atribuída ao palhaço é a ingenuidade, que aparece em Ryngaert (2009) como um dos mecanismos que contribui para o aumento da capacidade de jogo e, portanto, é mais um argumento para considera-la um eixo de pesquisa. O autor entende como ―ingenuidade a capacidade do jogador de não antecipar o comportamento do outro mediante suas próprias reações. Ainda aqui, trata-se de estar presente no instante, portanto, de fingir ignorar o que vai se passar, a ponto de toda vez dar a impressão de uma descoberta‖ (RYNGAERT, 2009, p. 57). Embora pareça contraditório quando utiliza o termo ―fingir‖, referencia aspectos que vimos discutindo como ―dar a impressão de uma nova descoberta a cada vez que realizada uma mesma ação‖ e assim, argumentamos que trata exatamente da atitude de se dispor a esperar que as reações aconteçam, mesmo quando seus resultados já são conhecidos. Coloca a ingenuidade como uma qualidade necessária quando se vive o jogo como campo de experimentação, para gerar a possibilidade de se surpreender e surpreender ao outro.

Utilizando o termo pureza aparentemente como um sinônimo de ingenuidade, um dos dançarinos da Paraboléu Cia Cênica relata sobre sua experiência com jogos, relacionando-a com mudanças de estado: ―Estando neste estágio de pureza, meu corpo começa a perceber as vibrações do ambiente e começa a reagir às pequenas coisas que vem ao meu encontro‖. A relação que cria entre ―pureza‖ e a capacidade de reação é muito clara.

Quando Ryngaert (2009) apresenta suas reflexões sobre a ingenuidade como propulsora da capacidade de jogo, associada a não antecipação, deixa transparecer similaridades com outro elemento que integra a investigação para o corpopalhaço: o impulso. Quando afirma que ―o engajamento no jogo exige uma mobilização rápida de todos os sentidos, sem antecipação‖ (RYNGAERT, 2009, p. 57) se aproxima das exigências de reagir com prontidão sem permitir o espaço-tempo da reflexão para depois colocar-se em movimento no espaço.

Ferracini (2003, p. 103) utiliza-se das compreensões de Grotowski para definir o impulso como aquilo que precede imediatamente a ação. Mas, a partir do entendimento de corponectivo, estamos então, afirmando que o impulso e a ação são

concomitantes, exceto quando há uma pausa reflexiva para a tomada de decisão. Todavia o mais importante é que se refere ao impulso para demonstrar e explorar o ―enraizamento‖ do movimento no corpopessoa. Puccetti (2006, p. 23) quando aborda o uso da exaustão em sua metodologia, explica que o faz em busca de ―diminuir o lapso de tempo entre o impulso físico e a concretização da ação no espaço‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Assim, podemos compreender pela indicação de ―seguir o impulso do movimento‖ durante os exercícios, como uma indicação de permitir-se exercitar a ―capacidade de ―não-pensar‖ como uma condição para a ação, e somente ‗agir com o corpo‘‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Citação que embora dualista em sua estrutura linguística, nos auxilia a tornar mais claro a intencionalidade das orientações dada aos aprendizes, sabendo-se, no entanto, que agir e pensar constituem conjuntamente ações cognitivas. Deste modo, a antecipação assim como o ―saber-fazer‖ é considerada como um fator de intimidação da capacidade de jogo.

Por fim, para exemplificar outras qualidades que favorecem o jogo, denominadas por Ryngaert (2009) como engajamento e mobilização, e relacioná-las como co-geradoras de estados de ludicicidade do palhaço trazemos uma observação de outro dançarino da Paraboléu Cia Cênica: ―É preciso acreditar no jogo para poder acessar qualquer outro estágio que não seja cotidiano. Deixar-se inebriar pela ‗atmosfera‘‖. Quando se refere a acreditar no jogo, está tratando de estratégias para alcançar o engajamento necessário para sustentar o jogo e manter-se em estados de presença.

Revendo o entendimento de técnica de treinamento apresentado logo no início deste subtítulo, e buscando deslocá-lo para a dança, seria necessário elencar os componentes da dança que se deseja treinar para então elaborar um treinamento adequado. Neste caso, com o objetivo de encontrar elementos do palhaço, a partir de seus processos de formação e treinamento, que possam contribuir para a abordagem dos estados de ludicidade do palhaço em dança, a capacidade de jogar se configura como o segundo eixo de pesquisa. Diferentemente de Ryngaert (2009) denominamos aqui como capacidade de jogar, no infinitivo, porque conduz ao entendimento da capacidade de uma ação, que é jogar.

Consideramos, ao observar o campo conceitual elaborado neste capítulo, que o aumento da capacidade de jogar pode resultar no aumento da capacidade de imaginação

e criação também nas práticas de dança. A exemplo das práticas da Paraboléu Cia Cênica pôde-se perceber que alguns dançarinos, quando engajados no espaço-tempo do campo de experimentação, demonstram sentir-se livres para a criação sem preocupar-se com a qualidade dos resultados no juízo de bom ou mau, ou mesmo para uma continuidade improvisada das sequências codificadas para treinamento. Estas atitudes de criação começam a aparecer espontaneamente, no sentido de não ser solicitados, mas são evidentemente resultantes do treinamento que vem sendo desenvolvido.

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