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3. A PROFANAÇÃO COOPERATIVA

3.2 Profanação no palhaço e na dança

Uma solução estratégica no corpo-a-corpo com os dispositivos para liberar o que foi capturado e separado, é a profanação (Agamben, 2005). O conceito de profanação se configura na continuidade dos estudos relacionados à origem do termo dispositivo e, portanto, são compreensões indissociáveis.

A partir da consideração de que profano ―em sentido próprio denomina-se àquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens‖ (Agamben, 2007, p. 65) podemos avançar na concepção do que vem a ser a profanação ou do que implica o ato de profanar. Primeiramente, perceber a relação que se propõe

entre ―usar‖ e profanar chamando a atenção de que não está em questão a noção utilitarista de uso que aplicamos a todas as coisas, mas uma forma especial de uso à qual o que era sagrado pôde ser submetido. Um segundo aspecto é a observação de que o profano decorre de uma separação social e historicamente instituída e que se legitima em nossas concepções e práticas cotidianas: a separação entre duas esferas, o divino e o profano; os deuses e o humano. Assim, em oposição ao profano ―sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses‖ (Agamben, 2007, p. 65) e, portanto, na perspectiva da separação estavam indisponíveis ao homem. A profanação é a restituição daquilo que lhe foi separado ao uso comum do homem, ou seja, se o mecanismo de separação e captura nas sociedades modernas é um dispositivo, o ato de profanar implica politicamente a desativação do mesmo.

Como vimos, a subjetivação decorrente das relações entre viventes e dispositivos infere no corpo e age na orientação de comportamentos. Na medida em que novas orientações são geradas os viventes desvinculam-se das anteriores e neste sentido, podemos refletir sobre as necessidades criadas pela sociedade capitalista, incessantemente lançadas no mercado e induzidas como objeto de desejo. Ao absorver as necessidades de mercado, é como se fossemos nos distanciando da noção do que é de fato necessário à criação e à manutenção de nossas vidas, o que então parece ser denominado por Agamben (2005) como separação de si mesmo. Este fenômeno é agravado pelo fato de que os dispositivos capitalistas atuam mais incisivamente pela homogeneização e desta maneira, desativá-los torna-se uma tarefa um tanto difícil. É como uma espécie de vínculo que se forma e, ao mesmo tempo, legitima a captura, que é o próprio mecanismo de separação das esferas. Por exemplo, o uso dos chamados ―dispositivos móveis‖ para o acesso de dados disponibilizados nas redes. Quando não estamos em posse de um, nos produz a sensação de estar desatualizados, de uma comunicação não eficiente ou até de falta de mobilidade. Por outro lado, o fato de a maioria das pessoas possuir um desses, diante daquele que não possui, evidencia a presença de resíduos do sagrado especialmente quando o uso é um desejo. Entretanto, na esfera capitalista o uso é substituído pelo consumo, que destrói a coisa, traçando assim, a impossibilidade de usá-lo e, portanto, profaná-lo.

Um espetáculo de dança. Em seu formato mais comum, independente do tipo de espaço em que se realiza, o modo de se colocar do dançarino gera delimitações entre cena e público. Ambos convivem no mesmo espaço-tempo, porém, há uma sacralização

da cena que, operando como uma esfera separada do público, não pode ser interrompida, modificada ou acessada em ato por um cidadão comum. Com exceção do performer, e de espetáculos interativos, o dançarino ocupa na cena, um lugar intocável, que ao final será devolvido para o convívio no profano. Totalmente oposto, o palhaço tem como um dos efeitos dos estados de presença a restituição da própria cena, do espaço mágico do sagrado, ao uso livre dos homens.

Quando Agamben (2007) propõe o jogo como (re)uso menciona especialmente a possibilidade de restituir aquilo que já havia sido de livre uso, mas em algum momento foi subtraído à esfera da sagrado. Quando expande esta reflexão ao sistema capitalista mantém como parâmetro a ―usabilidade‖ da coisa. As relações que disponibilizam ou subtraem as coisas do mundo dos homens, não dizem respeito somente a aspectos religiosos ou sagrados no sentido etimológico do termo. Mas implica primeiramente uma separação. Desta forma, se o jogo tinha a restituição do uso como uma finalidade, e o uso na sociedade capitalista está em vias da inexistência ―fazer com que o jogo volte à sua vocação puramente profana é uma tarefa política‖ (Agamben, 2007, p. 68).

Manter vivo o movimento de ser afetado e reagir é uma filosofia política. O clown não pode parar esse movimento, não pode deixar de se afetar pelo que vem do mundo, pelo que acontece ao seu redor e isso também deve sempre ser demonstrado ao público, diferentemente do dançarino. O que não significa que as outras pessoas não sejam afetadas pelos acontecimentos ao seu redor, mas evidencia que o clown traz uma maneira específica de elaborar e demonstrar o que lhe afeta. Faz parte do aprendizado de clown aprender a lhe dar com que nos afeta de maneira a exteriorizar a reação e não mais escondê-la ou disfarça-la em prol de uma ética socialmente instituída, que nos traz medo de ofender o outro, nos faz guardar ressentimentos de situações mal resolvidas, etc. Ou ainda, em prol de um roteiro ou da estética de cena. Neste sentido, o que mais se aproxima no contexto da dança é o dançarino improvisador.

Portanto, a potência política está na sua capacidade de jogar, restituindo ao uso comum tudo aquilo que é socialmente compreendido como indisponível, reforçado em nossos hábitos, etiquetas, normas de convivência, ou seja, por dispositivos. Potência na compreensão elaborada por Kásper (2004, p. 29) é a capacidade de agir, de afetar e ser afetado pelo outro.

Deixemos um pouco de lado a figura do clown, apreendendo apenas com seu modo de existir, pensando na potência crítica desta política

específica do exercício da alteridade, exercida por ele – consistindo, como vimos, na capacidade de agir sem guardar ressentimentos, sem culpas, sem se deixar contagiar pelas paixões tristes, sem se vitimizar, mantendo-se ligado à sua potência. (Kásper, 2004, p. 38).

Deste modo, a potência política do palhaço está sendo relacionada ao exercício de alteridade que implica sua prática, visto em sua disponibilidade de brincar com aquilo que, em geral, optamos por manter escondido em função do medo do julgamento do outro, medo de ser feio, incorreto, antiquado. Este é o ponto de partida para considerar a alegria, ou as paixões alegres, como base da potência de agir, afetar e ser afetado, desvinculando-a completamente do fazer graça, do ser divertido ou engraçado. Segundo Kásper (2004), a alegria é ação e está ligada à liberdade que o palhaço vive, experimenta, conectando-se novamente com sua potência, entendida como poder de agir. São as paixões alegres um caminho para a atividade, a ação. E por isso relaciona a alegria, ou o estado de alegria, à potência política nesta arte. Ao criar novos modos de existência, sua lógica de agir pela alegria, questiona valores estabelecidos atuando num plano político sutil; denuncia, por exemplo, o potencial autoritário que há em todos nós quando evidencia em suas ações, o jogo de disputas pelo exercício do poder cotidianamente vivido nas relações com o outro (Kásper, 2004, p. 38).

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