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Estado(s) de palhaço: a ludicidade como uma condição

O palhaço é pessoal e único e, portanto, amplo demais para ser fixado em um tipo ou em uma maneira única de se comportar. (PUCCETTI, 2006, p. 22)

Além da produção acadêmica brasileira sobre a arte de palhaço ainda não ser tão ampla, não é tarefa simples encontrar estudos desenvolvidos especificamente sobre o denominado ―estado de palhaço‖. Encontram-se nas teses ou dissertações trechos de capítulos dedicados ao tema, ou discussões que perpassam o assunto sem que este seja de fato o centro da questão. Entretanto, o que vem a ser estado de palhaço torna-se importante neste contexto, na medida em que se elegeram os estados de ludicidade do palhaço como um tema de pesquisa para a dança.

Considera-se que no corpo humano a corrente sanguínea, as células, correntes elétricas e as sensações produzidas pelos sensores proprioceptores, entre outras, são também aspectos físicos do corpo. Pode-se compreender da mesma forma, que as condições emocionais e afetivas componentes de estados do corpo são físicas, pois são reconhecidamente parte deoperações biológicas e cognitivas. Portanto, a compreensão de estado se dá a partir do tratamento de algumas questões como processos do corpo, em contraposição aos argumentos que consistem em afirmar aspectos emocionais e psicológicos como fatores de outra ordem, para além do corpo, reforçando dicotomias conceituais.

Segundo o neurocientista Antônio Damásio (2000) os estados do corpo em seu nível de organização mais simples, correspondem ao

(...) conjunto de mecanismos cerebrais que de modo contínuo e

inconsciente mantém o estado corporal dentro dos limites estreitos e

na relativa estabilidade requeridos para a sobrevivência. Esses mecanismos representam continuamente, de modo inconsciente, o estado do corpo vivo, em suas numerosas dimensões (DAMÁSIO, 2000, p. 53).

O estado do corpo vivo é mapeado no cérebro como mecanismo básico de regulação da vida do organismo e desta maneira, são mecanismos ditos inconscientes porque não é necessário direcionar atenção para realizá-los. São ações do corpo que acontecem pelo instinto de manter-se vivo, como por exemplo, o mecanismo do medo que faz com que um ser vivo se afaste de qualquer situação ameaçadora em busca de

garantir sua sobrevivência. Como já vimos, esse conhecimento do próprio corpo corresponde aos processos da consciência em sua forma mais simples, a consciência central.

Definimos que a experiência de ludicidade ocorre quando há estados de alta intensidade da consciência, que requer muita atenção para os detalhes da situação vivida, e abrangência mínima, que proporcionará com ênfase à pessoa, a própria noção sentida de si.

No artigo ―No caminho do palhaço‖, Puccetti (2006), discute os princípios que do seu ponto de vista orientam o treinamento e a atuação no ofício de fazer rir. Desta maneira, ao descrever aspectos do que compreende como parte do estado de palhaço faz alusão a dois estados de corpo que considera componentes sem os quais o estado de palhaço propriamente, não acontece. São os estados de revelação e os estados de presença que funcionam, para o ator, como uma espécie de pressuposto para a ação do clown e abrangem assim, capacidades que devem ser desenvolvidas no treinamento. Entretanto, argumenta-se que esses estados que conferem capacidades que podem ser treinadas e desenvolvidas correspondem a processos do corpo mais elaborados, níveis mais complexos de estruturas.

Uma das condições ao estado de revelação do palhaçoé a experiência de sentir- se exposto, de ser visto pelo outro e se revelar em sua humanidade, ou seja, com suas fraquezas e inseguranças (PUCCETTI, 2006, p. 23). É a experiência de se permitir revelar tudo aquilo que é próprio - íntimo - da pessoa, mas que no cotidiano é mascarado de forma a corresponder aos padrões socialmente aceitos. Não poderá, entretanto, ser desvinculado do estado de presença que traz como palavras-chave os verbos ―ser‖ e ―estar‖, pois revelar-se implica assumir com integridade o próprio ser. Novamente com referência em Damásio (2011), reforçamos o entendimento de que os estados do corpo não ocorrem em ideais de estabilidade que permitem definir com precisão os componentes de um estado em distinção a outro, mas pelo contrário, reafirma a coexistência de estados.

Enquanto o estado de revelação evidencia-se nos processos de formação pelos exercícios de exposição diante do olhar do outro, o treino do estado de presença busca a investigação de movimentos não automatizados libertando-se das respostas prontas que caracterizam o repertório de movimento habitual de cada pessoa. Para Puccetti (2006), presença é levar ao extremo as consequências de viver cada ação no tempo em que ela

acontece, buscando ―liberar seus impulsos físicos e manter-se em um estado de prontidão e concentração que o conecta interna e externamente, dilatando sua presença física‖ (PUCCETTI, 2006, p. 23). Implica sentir, viver e fazer; elementos referentes ao universo subjetivo que segundo Burnier (2009), compõem aspectos da dimensão interior em distinção a outra dimensão que denomina de física do trabalho do ator.

Kásper (2004) argumenta sobre a lógica do palhaço e contribui para esclarecer o que está de fato em questão com o uso das expressões dimensão interna e dimensão física:

O palhaço trabalha com a exterioridade. Seus processos de subjetivação podem ser acompanhados de fora. No palhaço tudo se passa em seu corpo e de modo visível ao público. Tudo é exteriorizado, ele precisa mostrar sua lógica, conquistando o público, trazendo-o para jogar com ele(KÁSPER, 2004, p. 33).

Inebriado do estado de presença, o palhaço tem de mostrar ao público com suas ações o que está pensando, qual a lógica de ação no mundo que define o que virá a acontecer. Lógica, por conseguinte, não é um sinônimo de raciocínio, mas de produção de sentidos que justificam suas atitudes. Essa produção de sentidos que se dá por aspectos subjetivos – o modo de cada corpopessoa formular suas questões – e por isso considerada interna, como própria da pessoa assim como a ludicidade. Entende-se que os aspectos subjetivos são parte dos processos de construção do conhecimento no corpo e diferem de pessoa a pessoa, de acordo com o lugar em que vive, as informações a que tem acesso, as atividades que exerce ou não, e assim por diante. Exteriorizar e tornar física a lógica de ação do palhaço significa então, evidenciar no corpo de modo visível ao público a forma como articula o momento presente com o conhecimento adquirido na experiência de vida. Entretanto, para alcançar esta habilidade é necessário o desenvolvimento da capacidade de obter conhecimento sobre o próprio corpo, envolvendo necessariamente seus estados. Para Puccetti (1998, p. 5) ―a técnica vem depois para dar forma e corporeidade a esta presença cênica, construída pela busca da plenitude‖.

O estado interno é codependente dos fatores externos, a mente constitui o corpo e seus mecanismos cognitivos, e a consciência não diz respeito à percepção de si mesmo, como geralmente se refere. Para Damásio (2011, p. 197) a consciência corresponde ao conhecimento do próprio corpo (consciêcnia central) e o conhecimento do contexto com o qual o corpo se relaciona (consciência autobiográfica). O processo da

consciência que permite a articulação dos conteúdos da consciência central e autobiográfica é o self. Na prática, é o que compreendemos como o contexto, que por sua vez, nos fazem reconhecer ou determinar um propósito às nossas ações.

Na prática da palhaçaria de Puccetti (1998), a base conceitual de que o palhaço não interpreta, mas ao contrário, ele vive a cena a cada vez como se fosse a primeira, tem como parâmetro o conceito teatral de representação que perpassa toda a experiência teórico-prática do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - LUME5. Segundo Burnier (2009), representar implica uma coisa no lugar de outra no sentido de encontrar um equivalente que possa representá-la. De modo contrário, quando o ator interpreta, faz uma tradução da linguagem literária para a cênica, na qual atua como sendo outra pessoa. Na perspectiva da representação, entretanto, ele não se coloca como outra pessoa, ele apenas a representa em um possível equivalente. O desenvolvimento prático deste conceito é um começo para o trabalho do estado de presença, pois pressupõe que o ator vive a cena desenvolvida a partir de suas qualidades pessoais, em busca da não automatização, e desta maneira, a técnica se distancia das noções de reprodução e repetição mecanizadas (BURNIER, 2009, p. 24). No caso da dança, a utilização das qualidades pessoais do dançarino na construção da cena, é mais comum no contexto da dança contemporânea, mas nem sempre o uso de técnicas de dança se distancia da reprodução e repetição esvaziadas.

As experiências vividas inspiram na reflexão de que parte do treinamento do palhaço se concentra na dinamização de estados de ludicidade, utilizando-se de jogos e brincadeiras, da ativação do imaginário e da criança interior como uma das formas de compreensão do prazer de ser. São atividades que exigem concentração e prontidão no momento presente, evocam sensações de prazer, além de provocar certo grau de exaustão, facilitando a percepção do estado de presença e a disponibilidade corporal.

O estado de clown seria o despir-se de seus próprios estereótipos na maneira como o ator age e reage às coisas que acontecem a ele, buscando uma vulnerabilidade que revela a pessoa do ator livre de suas armaduras. É a redescoberta do prazer de fazer as coisas, do prazer de brincar, do prazer de se permitir, do prazer de simplesmente ser (PUCCETTI, 1998, p.5).

5 É um coletivo de sete atores, com sede no Distrito de Campinas (SP), referência internacional no redimensionamento do trabalho técnico e ético do ofício do ator. Fundado em 1985 por Luis Otávio Burnier ao lado dos atores Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, é também referência nacional e internacional na metodologia de formação de palhaços.

O estado de presença que segundo Puccetti (1998, p. 5) é construído na busca pela plenitude, parece corresponder ao ―estado de ludicidade‖ definido por Luckesi (2005), pois além da plenitude busca a redescoberta do prazer de ser e fazer. Rememorando a capacidade da criança de ser e se transformar em qualquer coisa. De tal modo, estados de ludicidade são considerados como uma condição para o estado de palhaço.

Do ponto de vista da evolução dos processos cognitivos, o ―sentimento de que meu corpo existe e está presente‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 230) é o mais profundo, podendo ser classificado como um sentimento primordial que ocorre independente dos objetos de interação. É o sentimento fundamental ao processo do self, constituindo a base para que outros sentimentos relacionados à interação com os objetos aconteçam. É preciso ter o sentimento da própria existência para então ter o sentimento de algo relacionado a ela, que vem a ser o ―sentimento do que acontece‖ (DAMÁSIO, 2011, p. 230). Evolutivamente, são processos que aparecem distintamente, mas que são complementares em suas funções e operam juntos. Domenici (2008) esclarece a questão quando expõe que ―a percepção de um objeto gera mudanças no estado corporal, que são percebidas pelo cérebro junto com o objeto e essa informação se associa àquela imagem, como um qualificador‖ (DOMENICI, 2008, p. 3).

Se como visto até aqui, os estados corporais são instáveis, o desafio na ação do palhaço é a sustentação de estados de ludicidade e esta é uma proposição de contribuição para a dança e o dançarino: sustentar estados de ludicidade. O treinamento deve proporcionar ao artista o desenvolvimento refinado da percepção dos estados de corpo, a fim de alcançar a consciência das suas modificações na complexidade da função do self. Este mecanismo de trabalho viabiliza a investigação das qualidades e possibilidades de movimento a partir dos estados corporais para a futura codificação de um repertório de ação, que será fundamental na tarefa de conquistar o público. O tempo de sustentação é o tempo que o artista consegue manter-se disponível, no estado de palhaço, agindo na sua lógica. Sucintamente, o estado de palhaço no entendimento do Lume ―é um estado de afetividade, de vulnerabilidade, é levar ao extremo a conexão consigo mesmo, é o saber se ouvir‖ (PUCCETTI, 2006, p. 24).

2. DO PALHAÇO PARA A DANÇA

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