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Os Capitães da Guarda e a Guarda Real

3. Os cargos-mores da Casa Real Portuguesa no século XVII

3.11 Os Capitães da Guarda e a Guarda Real

Não podemos falar na guarda sem fazer referência ao momento em que a guarda de um rei alcançou grande relevância. Foi, pois, no reinado de D. João II que a segurança da pessoa régia passou a merecer um destaque específico, no contexto conhecido dos problemas do monarca com a nobreza, em particular com o duque de Bragança e com o duque de Viseu, D. Diogo, seu cunhado. É sabido que o «Príncipe Perfeito» passou a ser sempre acompanhado do Capitão dos Ginetes e dos Cavaleiros da Guarda, tornando-se, a partir de então, uma prática comum.

Numa memória sobre a origem das preeminências dos Capitães da Guarda, é feito um apanhado da história da Guarda Real nas mais importantes cortes da Europa324 e na do reino. Nesta atribuía-se a origem da guarda dos príncipes à tirania, nascendo daqui o receio.

Em Portugal, o Capitão dos Ginetes era um cargo muito antigo que pertencera à guarda do rei D. Duarte. Este era o capitão da guarda do rei, sendo por alguns associado a general da cavalaria do reino. De acordo com este manuscrito, ao tempo de D. João II e D. Manuel o posto de Capitão dos Ginetes entrou na família Mascarenhas e o corpo era constituído por 200 elementos, de qualidade de «moços da câmara». Acompanhavam o monarca não só em tempo de guerra, mas também em períodos de paz.

De acordo com o mesmo texto, a Guarda dos Archeiros foi introduzida pelo rei D. Sebastião «não só para segurança, e respeito da pessoa real, mas para evitar a indecência dos Hereges que havia em Lisboa».

Composta por portugueses, o seu primeiro capitão foi D. Francisco de Sá, conde de Matosinhos, futuro camareiro-mor do cardeal-rei D. Henrique. Com Filipe II, esta deixou de existir, deixando ao arquiduque Alberto uma guarda alemã, ou tudesca, cujo primeiro capitão da Guarda Alemã foi D. Francisco de Sousa.

324 BNP, cód. 749, fls. 102-110. Sem data. O teor do texto leva-nos a pensar que este foi escrito por volta de

1704 quando a Corte e o rei saíram em campanha no contexto da participação portuguesa na Guerra de Sucessão de Espanha. Como veremos, nesta ocasião levantaram-se várias questões de precedência entre estes postos.

D. João IV manteve a Guarda Alemã em funcionamento, a qual estava unida à dos Alabardeiros portugueses. Separou-as, porém, dando uma companhia a D. Pedro de Castelo Branco, futuro 1º conde de Pombeiro, e outra a Luís de Melo, porteiro-mor da Casa Real.

Podemos, pois, identificar uma inspiração castelhano-borgonhesa (e Habsburga) nos usos portugueses. No palácio da Ribeira passou a haver a Sala dos Tudescos, denominação que manteve mesmo após a aclamação de D. João IV. Aliás, note-se que a Guarda Alemã continuou a existir com D. Pedro, ainda que sem soldados alemães, conservando apenas o nome.

Pelo disposto no Regimento da Casa Real, os capitães da guarda davam preferência de lugar apenas ao guarda-mor, conservando, contudo, o estribeiro-mor o melhor lugar «que sempre nas funções públicas lhe pertence».

Avançando cronologicamente para o tempo de que nos ocupamos, é de assinalar que no regimento de 1641 apenas se faz uma referência sucinta para dizer que o capitão da guarda seguia entre os soldados dela, todas as vezes que o rei saía e levava a guarda e ainda que tinha as mesmas entradas que os mais oficiais da casa.

Ora, como sabemos, havia 3 capitães da guarda, ordenando-se que entre eles não houvesse precedência quando nos acompanhamentos públicos. Contudo, caso tal não fosse possível, precedia a guarda portuguesa à alemã325.

Chegando a 1684, a descrição francesa do reino de Portugal atribuída a Colbert de Torcy, refere-se aos 3 capitães da Guarda Real: o 1º conde de Pombeiro – D. Pedro de Castelo Branco –, D. Francisco de Sousa e Manuel de Melo, respetivamente, tal como aparecem identificados no Registo Geral de Mercês, capitão da Guarda Real Portuguesa, capitão da Guarda Real Alemã e capitão da Guarda Real. Aliás, já com D. João IV existiam 3, o mesmo conde de Pombeiro, D. Lourenço de Sousa e Luís de Melo, estes últimos familiares dos que serviam com D. Pedro II.

De acordo ainda com este testemunho estrangeiro, as guardas usavam manto com galão verde «et une pertuissance»326.

325 Regimento dos Ofícios da Casa Real d’el rei Dom João IV. In SOUSA, António Caetano de – Provas da

História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Tomo IV, p. 739.

A 10 de dezembro de 1640, uma das primeiras iniciativas do reinado de D. João IV foi aumentar o número de soldados da Guarda Real para 200, incluindo soldados alabardeiros, sendo 100 portugueses e 100 alemães, cada nação com o seu tenente próprio. Quanto ao provimento, acrescentava-se «que o soldo das praças acrescidas seja consignado onde poderem haver bom pagamento»327.

Seis anos depois, a 5 de fevereiro, deu-se regimento à Guarda Real portuguesa e à alemã, «considerando com particular atenção e cuidado o muito, que convém ter grande vigilância na guarda da nossa pessoa Real, e da Rainha […], Príncipe e Infantes»328.

Não só o tempo de guerra com um inimigo tão próximo a isso obrigava, como também a necessidade de acompanhamento quando a família real saía do paço. Havia falta de soldados nas guardas, por isso, havia que dar «remédio» a esta situação.

Assim, estipulava-se novamente, como já em 1640 se fizera, que a Guarda Real seria composta por 200 soldados, 100 para a Guarda portuguesa, com sargento, e 100 para a Guarda alemã, número que incluía sargento, pífaro e tambor.

Os ordenados, vestiarias, soldos e rações costumadas a que tinham direito os capitães, oficiais e soldados das guardas estavam estabelecidos nas adições das folhas do pagamento das ditas guardas – infelizmente não são mencionados os valores – e os soldados e oficiais viveriam no Quartel, «que pelo seu Capitão lhes está quartado».

Os pagamentos eram feitos pelo Tesoureiro da Guarda, «na sala Real onde os ditos Soldados nos fazem guarda, em mesa pública, patente a todos», onde o Escrivão das Guardas registava nas folhas do pagamento o quanto se pagava a cada oficial e soldado, que depois as assinavam.

Os soldados tinham que ser naturais do reino, católicos e cristãos velhos, «sem raça alguma das proibidas, como são judeu, mouro ou mulato» e não podiam ter incorrido em algum castigo infame. Acrescentava-se que «não serão pobres miseráveis, antes serão homens de bem, e oficiais de ofícios limpos, que tenham de comer, e que não sejam, nem hajam sido lacaios».

327 SILVA, José Justino de Andrade e (compilação e anotação) – Coleção Cronológica da Legislação

Portuguesa, 1640-1647, p. 9, disponível para consulta em http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt .

Quanto à idade, a ideal seria entre os 20 e os 30 anos por motivos óbvios relacionados com a força, já que garantiam a segurança da pessoa régia. Para ingressarem na Guarda Real inscreviam-se com o Escrivão das Guardas que fazia o levantamento de todo o processo do soldado, nomeadamente inquirir sobre achaques e doenças. Quando aceite, era passada uma Portaria para que, a partir de então, se pudesse lançar nas folhas de pagamento da Guarda, bem como assentar no Livro de registo, onde eram passadas ainda as ordens necessárias para conhecimento do Apontador.

Os tenentes da Guarda portuguesa e alemã entregavam a cada um dos soldados, as armas e vestido da libré – que devolviam aos sargentos caso fossem despedidos ou se despedissem –, e davam-lhes o juramento do cargo. Na ausência do tenente, era o Escrivão da Guarda quem fazia tal diligência.

Os soldados eram obrigados a usar a libré somente nos dias em que estivessem destacados para a guarda no Paço, nos acompanhamentos régios pela cidade ou na Capela Real, para que fossem conhecidos e identificados mais facilmente. Estavam, inclusive, proibidos de usarem as librés em casa «porque de assim se não fazer nasce em poucos dias ficarem os tais vestidos em estado, que não ficam capazes de nos poderem servir com eles».

Os dez Cabos de Esquadra das ditas Guardas juntavam os soldados da sua Esquadra no posto para que juntos entrassem de guarda no Paço, rendendo a esquadra anterior. No Verão faziam-no às 7 horas e no Inverno, uma hora mais tarde. A pontualidade era averiguada pelo Apontador que à hora de entrada e saída dos soldados, assistia no Paço. Em seguida, repartiam-se os soldados para o quarto da rainha e do príncipe «e para os mais lugares que for estilo ou ordenado», e não saíam dos seus lugares sem ordem expressa dos Capitães e Tenentes.

Era dever dos soldados não dar ocasião a revoltas, dúvidas, brigas, antes tendo muita vigilância para as atalhar. Estavam proibidos de puxar de espada, adaga, faca ou outra arma qualquer, uns contra os outros, e de se desafiarem na sala e paço real, sob pena de serem despedidos e castigados.

Caso alguma briga ocorresse dentro do Paço e alguém puxasse de uma espada ou arma de ferro ou fogo, os soldados que estivessem de guarda ou os que ali se achassem – cuidando que o Corpo da Guarda nunca ficasse sem soldados –, acudiam de imediato e agarravam a pessoa em questão, ou pessoas, independentemente da qualidade e condição, tomando-lhes as armas e prendendo-os em custódia no Corpo da Guarda, ou noutro lugar

seguro do Paço, até que se desse conta do sucedido ao rei. Em ocasiões destas tinham autorização para usarem as suas armas.

Nas saídas públicas da Família Real com a Corte, fosse à cidade ou à Capela Real, tocava-se a caixa e pífaro como era estilo, avisando a hora em que as Guardas tinham de acudir ao paço. Juntavam-se então os soldados, cabos e sargentos e marchavam em ordem até à casa do Tenente que lhes competia e com ele cada uma das Guardas ia buscar o seu Capitão.

Marchavam em seguida para o Paço, onde os soldados se organizavam por cabos de esquadra por ordem de antiguidade.

Quando o rei descia da sua câmara, todos se punham em ordem, mais especificamente a Guarda portuguesa à mão direita e a Alemã à esquerda, cerrando fileiras «nas costas» do monarca. A partir de então requeria-se completa vigilância à pessoa régia «como são obrigados os bons e leais soldados no serviço do seu Rei»329, apenas deixando passar para

junto do monarca os oficiais da casa e os cortesãos que costumavam assistir e acompanhar em tais atos.

Nas ocasiões em que o monarca se deslocava à Capela Real ou a uma igreja da cidade, um dos capitães da guarda ia com o seu tenente e com uma esquadra até ao local antes da visita régia, mandavam tirar todos os bancos e punham em cada mesa um soldado que não deixaria que ninguém lá se sentasse. Depois, deixavam entrar apenas as pessoas suficientes para que o espaço não ficasse «embaraçado nem pejado» de gente, para que o monarca não entrasse «com aperto». Quando este ali chegava, o capitão e o tenente estavam à porta, onde permaneciam impedindo a entrada de mais pessoas além daquelas que compunham o acompanhamento e as pessoas de respeito, até que o rei se recolhesse330.

Os capitães da Guarda tinham também indicações para prevenirem oficiais suficientes para «apaziguarem alguma desinquietação» que por vezes ocorria na chegada dos coches, fazendo ainda afastá-los para que os que fossem chegando tivessem o trânsito desimpedido331.

329 Ibidem, pp. 300-306.

330 Regimento dos Ofícios da Casa Real d’el rei Dom João IV. In SOUSA, António Caetano de – Provas da

História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Tomo IV, p. 744, parágrafo 34.

Na Capela Real, a Guarda tinha ordem para entrar até ao sítio da cortina ou sitial onde o monarca se sentasse. Os restantes ficariam dispostos «em rua pela Igreja abaixo». Para verificar se tudo corria como suposto, estava presente o Apontador que tinha obrigação, nestes dias, de assistir tanto no Paço como no local para onde o rei se deslocasse, com exceção da Tribuna Régia, para onde o rei era apenas acompanhado dos títulos, oficiais e fidalgos332.

Recolhendo-se o monarca, os soldados que tinham ficado junto à pessoa régia cerravam as fileiras de uma parte e outra, até entestarem uns com os outros. Os de diante, virando, marchavam da mesma maneira em que tinham vindo, ficando, desta vez, a Guarda portuguesa à mão esquerda e a alemã à direita, «por assim ser de mais quietação, e não haver rebuliço na mudança, de uma e outra parte».

Os soldados eram ainda obrigados a assistir com as suas armas no Paço, na Corte, na cidade, ou onde o rei estivesse, em casos de motins, rebuliços, fogo, etc.

Caindo a noite, era ao Cabo e aos soldados que competia fechar o Paço e a Capela Real. Após verificar que ninguém ficava escondido «em algum canto», o Cabo fechava as portas e punha as chaves no Corpo da Guarda, entregues ao soldado que estivesse de sentinela. Em seguida, os soldados recolhiam-se para dentro, não deixando entrar pessoa alguma. Caso o rei mandasse chamar alguém, o Cabo de Esquadra com 6 soldados abriam as portas, com as armas na mão, tornando-as a fechar de imediato.

O tambor e o pífano tinham a responsabilidade de, alternadamente, acudir de noite ao Paço para estenderem e prepararem os enxergões – camas/sacos de palha – onde os soldados dormiam, voltando de novo de manhã para os arrumar. Esta tarefa era antes desempenhada pelo Moço da Tocha, mas morrendo o Apresentador da Tocha, Diogo de Carrilho, extinguiu-se este ofício, pelo que deixou de ser provido.

Os soldados tinham de ter condutas exemplares. Estavam proibidos, sob pena de despedimento, de jogarem jogos enquanto estivessem de Guarda no Paço, não só pela desatenção que isso criava, como também pelos gritos e «descomposturas» que acabavam sempre por ocorrer «o que não pode ser no Paço Real». Não podiam recolher em sua casa

332 Regimento dos Ofícios da Casa Real d’el rei Dom João IV. In SOUSA, António Caetano de – Provas da

nenhum estrangeiro sem dar conta disso ao seu Capitão. Além disso, não podiam vender vinho, carne, ou outro produto qualquer, sem licença da Câmara.

A 2 de setembro de 1646, procedeu-se ao Traslado em pública forma do Regimento da

Guarda Alemã de 1586, traduzido do alemão para português333. De acordo com este texto, o

Capitão, ou, em sua ausência, o Tenente, era obrigado a ter 65 soldados tudescos, entre os quais 4 Cabos de Esquadra, um Escrivão, um Aposentador e um Tambor.

Os soldados, incluindo o Tambor, recebiam mensalmente 8 florins de ouro acrescentados de dinheiro de vestiaria. Os Cabos de Esquadra, o Escrivão e o Aposentador recebiam 10 florins e vestiaria. Precisava-se que o florim de ouro era pago conforme a valia que tivesse no lugar onde era feito o pagamento dos ordenados. Estes eram pagos em terços, ou seja, de 4 em 4 meses, pelo Pagador.

Tanto de dia como de noite – estando de sentinela no paço –, eram obrigados a trazer consigo sempre a alabarda e a conservá-la limpa.

O Cabo de Esquadra dividia os seus soldados em duas partes para que se pudessem render. Para comer não dispunham de mais de uma hora e nos dias de acompanhamento público ao rei e à Corte não podiam fazê-lo, exceto os que fossem entrar de guarda.

Nas Capelas, quando o monarca se ajoelhava para rezar, também os soldados o fariam «segundo o manda a Santa Madre Igreja Católica». Eram, de igual modo, obrigados a confessar e a comungar todos os anos. Aliás, à semelhança do que já referimos para os soldados da Guarda portuguesa, esperava-se dos soldados da Guarda alemã uma conduta exemplar: não blasfemar Deus, Nossa Senhora ou os Santos; bebendo demasiadamente não

333 SILVA, José Justino de Andrade e (compilação e anotação) – Coleção Cronológica da Legislação

Portuguesa, 1640-1647, pp. 306-311.

Logo em seguida aparecem Capítulos adicionais para a Guarda Real, não datados e com indicação de terem sido compilados de um exemplar impresso em Lisboa em 1831. Contudo, não nos parece que seja contemporâneo do regimento da guarda de 1646, pois, ao referir-se às Guardas nos Paços Reais, diz que este serviço era feito por destacamentos de 8 dias em Lisboa e Belém e 15 dias para Queluz. Tal parece-nos sugerir que os Capítulos são posteriores a D. João V, pela referência ao paço real de Belém.

Mais ainda, ao mencionar que a Guarda Real era composta por 3 companhias, a alemã, a portuguesa e a do príncipe, numa primeira leitura, pouco aprofundada, remete-nos para o período da regência de D. João VI em nome da sua mãe, D. Maria I. SILVA, José Justino de Andrade e (compilação e anotação) – Coleção Cronológica

da Legislação Portuguesa, 1640-1647, pp. 311-312.

Veja-se ainda a transcrição de Institución y ordenanzas de la guardia alemana. In LABRADOR ARROYO, Félix – La Casa Real Portuguesa de Felipe II y Felipe III. Volume 2, pp. 453-460.

podia fazer a Guarda, teria que se contentar com a cama e pousada que lhe era dada, para lá do que já se aludiu para a outra Guarda.

Note-se, por fim, que os porteiros-mores Melos acumularam sempre esta função com a de Capitães da Guarda portuguesa334.

***

Os últimos dois oficiais-mores apresentados na lista do Regimento da Casa Real são o capelão-mor e os sumilheres da cortina. Por uma questão de organização prática, vamos incluímo-los na descrição da Capela Real, juntamente com o esmoler-mor que nesta lista não é contemplado, facto pelo qual se queixará ao rei. A ordem que escolhemos para apresentar os ministros ligados a este espaço é a que mais tarde encontramos em obras como nas versões posteriores da obra original de 1676, Nobiliarquia Portuguesa de António Vilas Boas e da Descrição corográfica do reino de 1755: capelão-mor, deão, esmoler-mor e sumilheres da cortina335.

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