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Capoeira angola e educação não-formal: o passado repassado

Observamos que, muitas vezes, as trocas de conhecimentos da capoeira acontecem em espaços informais (casa, quintal, rua) e de educação não-formal (Ongs, espaços culturais, associações, clubes) e tem caráter de entretenimento e lazer, porém, com um plano de fundo de sociabilidade e educação. Tal como descrevem Simson, Park & Fernandes, ao falarem das trocas de conhecimentos presente na educação não-formal, “a transmissão de conhecimento acontece de forma não obrigatória e sem a existência de mecanismos de repreensão em caso de não-aprendizado, pois as pessoas estão envolvidas no e pelo processo ensino-aprendizagem e têm uma relação prazerosa com o aprender” (2005, p.10).

Segundo as autoras, em uma atividade não-formal, para a qual a pessoa se dedica por vontade e interesses próprios, os temas tendem a lhe agradar, criando e fortalecendo laços de afetividade entre os sujeitos envolvidos no processo educativo. Essas características diferem, muitas vezes, do aprendizado da educação formal escolar, em que o conteúdo obrigatório nem sempre é agradável ao educando, por não estar contextualizado com sua realidade ou pelo educando não compreendê-lo como algo de seu interesse.

No caso da capoeira, existe um aprendizado/conteúdo necessário para o seu desenvolvimento que ocorre perpassados pelas bases da educação não formal, tendo uma

organização e uma estrutura (distintas da escola) que pode levar a graduação e certificação. Possui também uma flexibilidade de tempo e de adaptação das formas de ensino, abordagem e contextualização de acordo com o grupo adotado, características da educação não-formal, segundo Afonso (1989).

Porém, a capoeira também está presente em escolas formais, seja como componente de projetos integrantes do currículo da escola, de caráter interdisciplinar (Abib, 2005b); no cumprimento da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas; ou, ainda, nas faculdades, em disciplinas de Graduação em Dança (danças populares, afro-brasileiras), Educação Física (luta, artes marciais) etc.

Além desses aspectos que perpassam a educação formal e a educação não-formal, a capoeira angola, como veremos, é apreendida a partir da vivência do dia-a-dia, do cotidiano e dos locais em que as pessoas vivem e frequentam, na forma de educação definida como informal, como aprendemos nesse depoimento do Professor Nico, refletindo sobre como se aprende a capoeira:

É a vivência da capoeira. Se você não viver... A capoeira angola é uma coisa engraçado porque se você não viver a capoeira angola o dia-a-dia, não tem como você aprender só no olhar. Você tem uma visão, mas aprender a malandragem, a vida, o que é a capoeira... É aquele negócio: não tem como você chegar, pegar um abacaxi e chupar o abacaxi. Você tem que descascar o abacaxi, tem que retalhar e ver o sabor que ele tem. Aí naquele sabor é que você vai saborear "que delícia!" Aí você pega uma uva. Poxa, o sabor da uva!

Mesma coisa é a capoeira angola, você vai pegando conhecimento do dia-a-dia. É muito bom. A oralidade é uma delícia, porque o que você pega na oralidade, você não esquece.(...) Então esse trabalho é como se fosse uma didática mesmo. É uma coisa engraçada você aprender a capoeira, [porque] se você não passa no dia-a-dia, você não consegue pegar a essência. Você aprende, mas você tem que estar sempre junto com alguém daquele meio, você tem que estar sempre envolvido (Professor Nico. Entrevista, 2013).

O aprendizado do dia-a-dia se transpõe a partir da informalidade da oralidade, que permite essa “delícia” do aprendizado e das metáforas e poesias geradas nas palavras, nas músicas e nos movimentos corporais dos capoeiras. Essa forma poética de ver e expressar o mundo atravessam, trans-passam pelos su-postos limites entre vida-escola-trabalho, entre sonho-realidade, enfim, entre jogo-luta-dança-brincadeira da roda da vida, o que faz o capoeirista (praticante de capoeira) se torne Capoeira, com todos os valores, “sabores” e aprendizados introjetados na sua vida, nas suas ações cotidianas, na sua relação com o mundo e com os outros, estando “sempre envolvido” com sua arte.

perpassa entre todos esses âmbitos educacionais (formal, informal e não-formal), possibilitando a transformação social dos sujeitos que participam do processo. Consequentemente, essa trans-formação interfere na história e no próprio processo educativo, por meio de reflexão e de conscientização social, atuando no seu meio de maneira coerente com os valores e ideais de libertação e emancipação, imanentes à capoeira.

Como diz Contra-mestre Topete: “quando você acha que atinge um saber que pode mostrar, você quer mostrar para o seu irmão, para o seu amigo, para a sua amiga, para as pessoas do seu bairro, para a sua cidade” (Entrevista, 2013). Dessa forma, com uma pequena experiência, o capoeirista já consegue ensinar e difundir seu conhecimento. Essa difusão acontece de maneira particular para cada capoeirista e para cada contexto que ele ou ela encontram para transmitir seu conhecimento. Seja pelo canto, pelo toque de instrumento, pela ginga ou pela oralidade, a capoeira é multiplicada, pelos próprios capoeiristas, de diferentes formas.

Eu penso assim: se você sabe alguma coisa, você consegue passar, porque ninguém é dono do conhecimento. Ele aprendeu com alguém. E o conhecimento é para ser passado. Conhecimento significa saberes e estudo. E dentro do estudo, é pra se passar de geração para

geração. Você passando, você vai aprendendo mais. Então eu acho que isso entra na parte da

filosofia da capoeira angola. Você tem que passar. Vem da ancestralidade: tataravô, bisavô, avô, de pai pra filho. Se o tataravô passou pro meu avô, meu avô passou para o meu pai, então já é uma divulgação de saberes e conhecimentos. (Idem. Grifo nosso)

Encontramos nessa fala do Contra-mestre Topete, de maneira muito clara, a ligação da capoeira com o passado, nos diversos sentidos que essa palavra pode tomar. Ao gingar com as palavras dos Mestres, o conhecimento nos liga ao passado (enquanto pretérito) de nossos ancestrais e esse “conhecimento é para ser passado” (enquanto ensinamento) entre as gerações. Daí a intenção do título dessa dissertação (“repassando o passado”): o passado, desde o passado, é e sempre foi repassado.

Daí, então, a importância do compartilhamento de saberes na capoeira. Afinal, “ninguém é dono do conhecimento. Ele aprendeu com alguém”. Segundo Contra-mestre Topete, ao comunicar nosso conhecimento para outras pessoas, também estamos aprendendo: “A pessoa vai aprendendo, você está ensinando e, ao mesmo tempo essa pessoa vem com uma cultura, um outro conhecimento, talvez na mesma arte. Você também aprende” (Idem). Outro ponto importante é a afirmação de que esse compartilhamento faz “parte da filosofia da capoeira angola” pois, ligada à ancestralidade, a capoeira já traz consigo a transmissão dos seus saberes “de geração para

geração”. Com essa questão também concorda o Professor Nico:

O gostoso é você aprender a crescer. Você não pode dizer que o que você sabe é lei. Ninguém é dono da sabedoria. A sabedoria está pra todos e você não pode guardar. Você não pode ir numa faculdade, aprender e guardar pra você, falar "não, eu não posso falar isso". Como? Como alguém vai saber se você aprendeu? O que você sabe? É só divulgando. E a divulgação na oralidade, na escrita, na fotografia, em tudo. Isso é muito interessante. (Professor Nico. Entrevista, 2013)

Essa ideia hoje é muito discutida nas questões ligadas à cultura digital, com relação aos direitos autorais e à propriedade intelectual, que é a de compartilhamento de arquivos e de conhecimentos. Essa preocupação se dá no âmbito das artes e também das ciências. Apontamos, então, para uma forma mais livre de compartilhamento de saberes na capoeira angola, levantada tanto pelo Contra-mestre Topete quanto pelo Professor Nico: “ninguém é dono da sabedoria. A sabedoria está para todos”. Assim, ele também nos ensina que, para o aprendizado ser prazeroso, ele deve ser compartilhado, divulgado, e não reservado, patenteado.