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O gueto: espaço para o trabalho e para a roda de capoeira angola

O Terminal Municipal de Ônibus Urbano de Campinas, mais conhecido como “Terminal Central”, foi construído durante o processo de transformação do Centro de Campinas, iniciando em 1962, com o Plano Prestes Maia. Na década de 80, foram construídos quatro terminais de ônibus urbanos ao longo do centro. Um deles ocupou a parte central do anel viário Miguel Vicente Cury, onde existia uma praça chamada Lago dos Cisnes.

No espaço localizado entre o Terminal Central (administrado pelas empresas de transporte) e as ruas do entorno (vias públicas), existe uma área “entre”, abandonada pelo poder público, que foi organizada nos interstícios dos viadutos pelos próprios cidadãos, excluídos pela privatização dos espaços públicos urbanos. Assim, nesse lugar “entre”, há uma organização de pessoas que administram o seu uso, montando as bancas, cobrando pelo uso das mesmas, pela luz e pela segurança.

Imagem 24: Local onde era a Praça Lago dos Cisnes, hoje o Terminal Central. (Google Maps)

Imagem 23: Jardim dos Cisnes, localizado no centro do Viaduto Vicente Cury, na década de 70. Fonte: Blog Pro-memória de Campinas-SP.

Segundo Igor Guatelli, “em suma, seria no espaço, não no espaço pré-determinado, mas nos 'entres', nos espaços livres de pré- configurações, que vivenciaríamos estes 'momentos de invenção' e criaríamos condição para o devenir autre [tornar-se outro], indo além dos limites impostos pelo natural (...), pela história construída por discursos dominantes” (2008, s/p). Assim caracterizam-se, portanto, os espaços do entorno do terminal Miguel Vicente Cury, no centro de Campinas, como um lócus de manifestações da economia e da cultura popular informal.

Nas redondezas do Terminal, além das bancas de camelôs com produtos eletrônicos, roupas, CDs, frutas, bares e lanchonetes, encontramos rodas de samba, lojas de produtos do norte e do nordeste, tapioca, caldo de cana e outros produtos referentes à circulação de imigrantes de outras regiões do país .

“Esse é o nosso habitat. Eu adoro o gueto, adoro estar no meio de todo mundo”, disse um dia o Contra-mestre Topete, apresentando o lugar para um visitante da Roda do Gueto, sobre a qual falaremos a seguir. Nessa afeição pelo lugar, encontramos uma coerência na valorização e na identificação da capoeira em um lugar frequentado por pessoas em situação de rua, imigrantes e trabalhadores da classe popular. Porém, o potencial dessa diversidade é desvalorizado pelo discurso hegemônico, uma vez que, nas reportagens veiculadas pelas grandes emissoras de comunicação, são enfatizados somente os aspectos negativos que também convivem no local, tais como a prostituição, o tráfico e o uso de drogas.

Visando fazer uma roda na rua que trouxesse capoeiristas de diversos lugares para um ritual que remetesse às rodas de rua dos grandes mestres do passado e divulgasse a capoeira para a população campineira, no dia 18 de fevereiro de 2003, Topete e seus alunos começaram a realizar uma roda de capoeira angola, toda sexta-feira, a poucos metros de onde era localizada a sua banca. Essa roda acontece em uma das vielas que dá acesso ao terminal, bem próxima à sede da Escola, rodeada de camelôs, cabeleireiros, bares e vendedores ambulantes. É uma das passagens para entrar no terminal, e isso faz com que passem por lá milhares de pessoas por dia (ABREU E SILVA, 2006).

Imagem 25: Roda do Gueto, com a ECAR ao fundo. Arquivo ECAR, 2011.

Desde o início, nosso objetivo era a criação de uma roda de capoeira onde não houvesse discriminação de forma alguma: de cor, religião, idade, sexo, estilo de jogo; enfim, uma roda onde todos pudessem jogar capoeira, em igualdade, mas respeitando as características próprias de cada um... Decidimos também que essa roda aconteceria toda sexta-feira, sem falhas. (Contra-mestre Topete in Capoeiracada: revista de capoeira, 2006, p. 26)

No início, a roda recebeu diversos nomes, como “Roda do Gengibirra” (em referência à roda realizada em Salvador na época de Mestre Pastinha), “Roda do Topete”, “Roda do Terminal”, mas o nome que permaneceu foi “Roda do Gueto”.

Contra-mestre Topete, em seu depoimento, diz que “o gueto é um beco. É um lugar assim que tem várias classes sociais, passando, vivendo junto. Uma... não sei a palavra certa, uma periferia”. Segundo Souza (1999), nas grandes cidades, as pequenas comunidades são recriadas dentro de um contexto de desagregação do espaço urbano e formam os guetos, que conseguem manter sua unidade cultural, preservando a intimidade e a solidariedade do social.

A Roda do Gueto é uma roda de rua, aberta, que acontece em um espaço de livre circulação. Assim, adquire características diferentes de algumas rodas que acontecem em academias, ginásios, escolas ou associações, em que há um público conhecido e seleto. Por lá passam muitas pessoas, com diferentes interesses e gostos. Outra diferença é que, por ser uma roda semanal, sua repetição faz com que os seus frequentadores (capoeiristas ou não) passem a incorporá-la à rotina semanal de suas vidas, com a lembrança de que existe a roda, naquele

mesmo lugar, toda sexta-feira à noite (e, ainda, com aquelas pessoas).

A diferença dela é que ela é uma roda aberta pra qualquer um, simpatizante da capoeira angola ou capoeirista que respeita os rituais da capoeira angola e que queira jogar capoeira. E ela é voltada aos nossos antepassados, nossos mestres, nossos ancestrais, que antigamente as rodas que existia na beira do cais da Bahia, nas praças, na praia, que todo mundo chegava, do trabalho, do estudo pra vadiar, brincar capoeira. (Contra-mestre Topete, entrevista, 2006)

Na Roda do Gueto, não utilizamos o uniforme da ECAR. Vamos para a roda “à paisana” - como brinca o CM Topete -, com a roupa do trabalho, da escola, da festa, enfim, a que quisermos usar, mas desde que seja adequada para uma roda de capoeira angola. Nós angoleiros buscamos vestir calça, camisa ou camiseta (com manga, curta ou longa) e pés calçados (tênis, sapato ou sandália que se prenda ao pé).

Dessa maneira, toda sexta-feira ocorre a Roda do Gueto, que nesse ano de 2013 completou 10 anos de existência. Em dias de chuva, a roda também acontece. Porém, é realizada na frente do espaço da Escola, onde há uma cobertura.

Imagem 26: Comemoração de 10 anos da Roda do Gueto. Roda realizada na "varanda" da Escola. Acervo ECAR, 2013

Essa é uma roda de capoeira angola e não apenas uma roda de angoleiros. Todos os que quiserem jogar, que respeitem os fundamentos da Angola e também aqueles que querem descobrir esses fundamentos, podem participar da roda. Agora, quanto à bateria, para participar dela, é preciso que o capoeirista tenha domínio dos instrumentos e ritmo (...) (Contra-mestre Topete in Capoeiracada: revista de capoeira, 2006, p. 27)

berimbaus: o Gunga (com o som mais grave), o Médio e o Viola (o mais agudo); dois pandeiros; um agogô; um reco-reco e um atabaque, dispostos nessa sequência, se observados de frente.

O berimbau Gunga (o mais grave) é sempre o principal instrumento das rodas de capoeira, hierarquicamente superior aos demais, geralmente tocado pelo mestre (guardião) ou alguém mais próximo do mestre: Contra-mestre, Professor, Trenel ou o aluno mais experiente, seguindo a hierarquia do grupo. Assim, é o berimbau Gunga quem comanda o ritmo da roda. Com base nele é que o Médio e o Viola farão seus toques, assim como os outros instrumentos. É função do Gunga, também, iniciar a roda, chamar a atenção dos jogadores, encerrar o jogo, parar a bateria, aumentar ou diminuir o ritmo, parar ou mudar o jogo.

A maioria das pessoas que participam da roda são os integrantes da ECAR e demais capoeiristas de Campinas e região. Amigos, familiares e capoeiristas de lugares mais distantes também vêm visitar a Roda do Gueto. Muitos Mestres importantes já passaram por ela.

Agora, quando algum mestre de capoeira Angola está presente, é ele que vai ter a prioridade no comando da roda. Sabe como é: a capoeira Angola tem seus princípios, seus valores, sua educação, sua hierarquia. Nela, o mestre mais velho, o mais experiente, possui seus direitos, seus privilégios. É um respeito, uma obrigação que os mais jovens devem aos mais velhos. (...) Se o professor ou mestre de Regional domina e respeita os toques, o ritmo, os cantos e o ritual da Angola, ele pode participar da bateria. (Professor Topete in Capoeiracada: revista de capoeira, 2006, p.28)

Para o Professor Leonardo Lopes (também membro da ECAR, formado pelo Contra-mestre Topete), a roda de rua é muito importante, porque a capoeira nasceu na rua, das classes menos favorecidas e, se hoje a capoeira “tem reconhecimento social, está dentro das universidades, está no teatro, está no cinema, está em várias esferas sociais, diferentes da sua origem, é pela luta de pessoas que vieram dessa origem, que é o pessoal do gueto mesmo, o pessoal pobre e, se a gente se esquecer disso, é aquela coisa: ‘planta sem raiz, morre’” (Professor Leonardo, entrevista, 2006). Para ele, a roda de rua retoma a essas origens, na “contra-mão” do que a capoeira e as culturas estão passando atualmente, sendo transformadas em mercadorias. Para Mestre Guanabara (José da Guanabara), que também frequentou a roda, vindo de Londrina:

Realmente esse é um trabalho de resistência de importância muito grande, porque isso é uma tradição da capoeira. E a roda de rua é um resgate de tudo aquilo da capoeira, da malandragem da capoeira, da mandinga, daquela capoeira teatral, daquela capoeira maliciosa, daquela capoeira que: “se cochilou, o cachimbo cai”. (Mestre Guanabara, entrevista, 2006)

A partir do ano de 2011, a ECAR passou a realizar eventos ocupando, também, o vão deixado ao lado do espaço da escola, onde antes era uma loja de calçados que no ano de 2010 foi

demolida. Nesse local, são realizadas aulas abertas de capoeira angola, além de apresentações culturais, como samba-de-roda, puxada-de-rede, dança do fogo e maculelê, manifestações afro-brasileiras estudadas pela Escola Resistência. Aos sábados, alguns moradores de rua e frequentadores da região improvisam, também, partidas de futebol ou outras atividades, fazendo de um espaço vazio, sem funcionalidade oficial, um local de convivência e atividades de integração social.

Imagem 27: Aula de capoeira sob o Viaduto Cury, durante evento da ECAR em setembro de 2011. Acervo ECAR.

Assim, observamos que essas ações de ocupação, transformação e ressignificação dos espaços públicos, realizadas através de iniciativas populares, nos entre-lugares da cidade, tratam de práticas cotidianas e formas locais autênticas de resistência cultural do povo frente aos padrões hegemônicos. Segundo Guatelli, “conceitua-se essa disposição do novo fazer à qualidade do 'entre', ruptura do restrito, formal, do programado e pragmático, 'cultura' do espaço imaginário, do espaço em transformação e do porvir, da escala de quem faz e não do que a função restrita programa” (2008, s/p).

Nesses espaços ocorrem a diferenciação e a negociação dos interesses e o intercâmbio de valores colaborativos da comunidade, em um ato de sobrevivência social, de reafirmação da identidade, através da memória, e de reconstituição de práticas e de tradições vindas do passado, como podemos observar na Roda do Gueto. Através da roda de capoeira, do lazer, da memória,

da festa e do encontro entre as diferenças, cria-se novas sociabilidades e atribui-se àquele espaço características distintas daquelas proclamadas pelas atividades que reafirmam a tendência predominante de modernização excludente, seletiva e incompleta, que são características do processo de globalização, como veremos a seguir.