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Como vimos no primeiro capítulo, Topete e Seu Nico arrumaram uma banca nas mediações do Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas (Viaduto Cury), local rodeado de camelôs, onde passaram a vender os artigos de capoeira. Próximo de onde estava localizada essa banca, e de onde acontece a Roda do Gueto, havia um salão utilizado como posto de atendimento da Sanasa (Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A.). Esse salão foi abandonado no ano de 2003.

Imagem 28: Vista aérea do Terminal Central e do Viaduto Cury: 1- Salão abandonado pela Sanasa (hoje a sede da ECAR); 2- Local onde se realiza a Roda do Gueto; 3- Local onde se localizava a banca de capoeira. Fotografia extraída do Google Maps. 2013.

No ano de 2004, visando ocupar o salão para levar os treinos de capoeira para o centro de Campinas, próximo à banca e à Roda do Gueto, Topete e Seu Nico se reuniram com João Carlos da Mata, o Paraná, presidente da ACCAMP (Associação Comunitária e Cultural de Apoio aos Meninos de Campinas), buscando apoio para a ocupação do espaço.

Nessa época, Seu Nico realizava um trabalho voluntário no projeto de alfabetização de jovens e adultos chamado “Letra Viva”28. Assim, com o intuito de continuar o projeto de alfabetização e inserir a capoeira angola no espaço, criaram o Projeto Cultural Assistencial “Vivência e Saber”, que passaria a atender, além do projeto de alfabetização de jovens e adultos, a instituição “Casa da Criança Luz do Amanhecer”, que levaria cerca de 90 crianças por dia ao espaço. Esse número de crianças era dividido em três períodos, para terem aulas de capoeira angola, com Trenel Topete e música, hip-hop e dança de rua, com outros professores.

Cabe aqui destacar que a capoeira tem se constituído historicamente também como promotora de reinserção social, em projetos educativos não-formais voltados às classes populares e a crianças e adolescentes em situação de risco. Outras pesquisas relacionadas à capoeira também evidenciam esta relação. Na pesquisa de Pedro Abib (2005a), por exemplo, ele descreve

28 O projeto Letra Viva do qual Seu Nico participava, baseado no método Paulo Freire, acontecia no Palácio dos Azulejos, também no Centro de Campinas. Sobre o projeto, ver o Diário Oficial de Campinas, do dia

como a capoeira angola pode fazer parte de um projeto político-pedagógico para a valorização da identidade étnica de crianças e adolescentes em situação de risco, a partir da relação mais próxima da história de seu povo e de sua cultura.

Segundo Abib (idem), a capoeira como atividade em que se inverte, “de pernas para o ar”, e subverte o olhar, com seu caráter de contestação do estabelecido, pode articular essas práticas da roda com a vida cotidiana em sociedade, contribuindo para o enfrentamento das dificuldades e obstáculos da vida e para a construção da própria cidadania e da autonomia de indivíduos. Em sua pesquisa, o autor verificou que, através da consciência crítica e reflexiva sobre a realidade, instaurada e ressignificada a partir da memória das tradições populares, a capoeira, caracterizada enquanto luta de libertação e resistência do povo oprimido, também contribui para a valorização da auto-estima e da autonomia entre seus praticantes.

Mestre Pastinha, logo nas primeiras páginas de seus manuscritos, também identificou essa possibilidade de conscientização e ampliação dos olhares sobre a sociedade e sobre o ser-humano nesta sociedade a partir da capoeira: “amigos, o corpo é um grande sistema de razão, por detrás de nossos pensamentos acha-se um Sr. Poderoso, um sábio desconhecido. Corrijo-me as realidades, pela inversão natural da ordem lógica, transformando passado em futuro” (Mestre Pastinha, 1960, p. 1b). Vemos, então, a chamada de Mestre Pastinha para a forma como a capoeira permite inverter essa lógica e buscar a correção das realidades, “transformando passado em futuro”, ou seja, a partir da memória ancestral transcrita e movimentada pelo “sábio desconhecido” corpo.

Durante a entrevista com a capoeirista Mariana e com Trenel Fernando, também foi possível identificar a capoeira como forma de ver o mundo “de cabeça para baixo”, contribuindo como ato de resistência e contestação do estabelecido:

Eu compreendo hoje que ficar de cabeça pra baixo é você resistir contra o mundo uniformizado que a gente vive, contra as imposições da linha reta, do militarismo de viver, da postura, do comportamento exigido, dos papéis sociais exigidos. (Mariana. Entrevista, 2013)

Mariana também pesquisa sobre a capoeira, na sua vida e na graduação em Pedagogia, buscando compreender como a capoeira pode contribuir na formação da identidade e autonomia das pessoas. Ela e Trenel Fernando têm um filho, Yukai, que atualmente tem três anos, o que os faz pensar e falar com propriedade sobre suas experiências com a capoeira na infância:

Imagem 29: Yukai, com 2 anos, brincando a capoeira "de cabeça para baixo". Fotografia de Trenel Fernando e Mariana. 2012.

Essa coisa de ver as coisas de cabeça pra baixo é uma coisa bem legal, porque é uma forma que existe da resistência na capoeira. Mas por que, só ficar de cabeça para baixo? Não. Pelo seguinte: desde pequeno a gente começa a ser castrado, começam a cortar as nossas asinhas. Se você vê uma criança, uma criança adora andar com a mão no chão, adora correr no meio da rua, adora fazer um monte de coisas que depois, com o passar do tempo, vai ficando feio, já não vai mais servir pra ela, já fica inadequado. Não devia estar correndo, deveria estar estudando, fazendo outra coisa. Então, a capoeira resgata isso e é interessante, porque a gente fica tanto tempo podado que depois a gente começa do zero, tem que reaprender as coisas. Um equilíbrio com a parada de mão, as macaquices aí que a gente faz na roda, coisas que, se a gente não é castrado, podado quando a gente é pequeno, a gente estaria muito melhor. Por isso, quem nasce no meio da capoeira, tem muita chance de ser uma boa capoeirista, um bom capoeirista, porque com certeza o pai, a mãe, não vão dar esse tipo de poda para a criança. (Trenel Fernando. Entrevista, 2013)

A partir deste relato, podemos identificar que a movimentação da capoeira pode contribuir para a construção de outras formas de relação com o corpo e com o olhar do praticante, que vão além da “cabeça para baixo”. Rosa Simões (2006), em sua tese29, ressalta que os movimentos corporais do jogo de capoeira no ritual da roda mantêm um processo contínuo e dinâmico que vai da inversão à re-inversão do olhar. Assim, esse movimento fluente da capoeira, partindo de diversos pontos de vista, de um olhar multiperspectival, possibilita a formulação e constituição de

“novas ordens”, de “novos olhares” (p. 160).

O trabalho com a capoeira em projetos de educação não-formal voltados para as populações de baixa renda, para os sujeitos das camadas excluídas e marginalizadas da população, podem ter efeitos positivos, pois propiciam sua própria identificação com a história e a abordagem educativa desenvolvida por essa manifestação, o que permite uma “sedução pedagógica” e a sensibilização desses jovens, que identificam em seu cotidiano os elementos do universo cultural e simbólico da capoeira (Abib, 2005). Entretanto, os projetos que envolvem esse tipo de trabalho pedagógico, para serem voltados para o atendimento de um número maior de pessoas, dependem de investimentos e de políticas públicas que garantam o apoio financeiro e estrutural para os educadores, educandos e demais profissionais envolvidos nas atividades, valorizando-os e dando-lhes condições para o seu desenvolvimento e continuidade.

Após o período de um ano, o projeto “Casa da Criança Luz do Amanhecer” perdeu seus apoios institucionais e encerrou seus trabalhos no local. Mesmo com o fim desse projeto educativo, Topete e Seu Nico assumiram o espaço para que as aulas de capoeira angola fossem mantidas, sendo agora a sede do CECA-Campinas. Entretanto, para isso, teriam que arcar com os custos do salão. Essa verba viria da mensalidade cobrada dos alunos e das alunas, e assim acontece até hoje.

A Roda do Gueto também se manteve ininterruptamente durante esse tempo, recebendo diversos capoeiristas e se estabelecendo no seu local de realização. Abaixo está o seu primeiro panfleto, que teve a intenção de divulgá-la para a população campineira que quisesse conhecer e participar da mesma, assim como marcar e comunicar seus dois anos de existência:

Imagem 30: Cartaz/folheto da comemoração de dois anos da Roda do Gueto. Acervo ECAR, março de 2005.

Os cartazes e os trabalhos gráficos para divulgação são feitos por alunos e alunas do grupo. Nessa época, eram feitas pelo Fredy Colombini (designer) e, a partir de 2007, também passariam a serem feitos pela Gabriela Pardim, a Gabi (Programadora Web), além de outros alunos e alunas que também vão contribuindo da forma como podem, dependendo do momento e das especialidades de cada um. A divulgação dessa roda sempre foi muito importante para trazer mais capoeiristas para participar e contribuir para que ela continue a existir, a ser realizada todas as semanas, além de divulgar a importância dessa manifestação específica desse local, com suas singularidades e problemas, já retratados no nosso primeiro capítulo.

Imagem 31: Roda do Gueto em 2004. Fotografia cedida por Fredy Colombini.

Em julho de 2005, Trenel Topete conquistou o título de Professor de capoeira angola, no II Encontro Internacional de Capoeira Angola promovido pela Academia de João Pequeno de Pastinha no Forte Santo Antônio (Forte da Capoeira), em Salvador-BA, tendo como padrinhos30 Mestre Boca Rica, Mestre Bigodinho, Mestre Brandão e Mestre Mala, importantes mestres da Velha Guarda da capoeira da Bahia.

O título de Professor de capoeira angola, como já dito, é conquistado segundo os critérios de cada grupo e mestre. Porém, um capoeirista só atinge esse patamar após passar pelas graduações anteriores com dedicação, estudo, prática e ensino da capoeira. No caso da ECAR, o Professor deve ter passado pelo 1º ao 5º estágio, assim como pelo estágio de Trenel, quando pode treinar alunos sob supervisão de seu Mestre. Ainda assim, o Mestre (ou Contra-mestre) responsável convida outros Mestres, mais velhos e considerados, para atestar e confirmar a graduação do Professor ou da Professora31. Nesse ritual de passagem, normalmente realizado em um evento promovido pelo grupo, o candidato a receber o título passa por algumas avaliações em presença dos mestres convidados, conduzindo a roda de capoeira e jogando com os Mestres anciãos, por exemplo. No caso do Professor Topete, foi emitido um diploma do CECA com as assinaturas dos Mestres, formalizando a sua graduação.

30 Vemos aqui que a capoeira angola, assim como a citada capoeira regional, também adota algumas características de rituais religiosos e acadêmicos, como padrinhos e formaturas.

31 Na maioria dos casos, o mesmo ocorre para a titulação das outras graduações, com o “graduando” sendo avaliado por capoeiristas mais velhos e experientes. Porém, ressaltamos que essas fomas de avaliação também podem mudar de grupo para grupo, de Mestre para Mestre.

Imagem 32: Roda do Gueto em 2005. Detalhe na loja de calçados Dallas, à direita. Essa loja existiu até 2007, quando foi fechada. Em 2008, seu salão foi demolido, deixando um grande vão embaixo do viaduto. Fotografia de Fredy Colombini. Novembro de 2005.

Em 2006, agora como Professor, Topete continuou desenvolvendo seu trabalho, dando aulas e estabelecendo-se no espaço do Terminal, vendendo seus artigos na banca alugada no “camelódromo” informal do Terminal Central, com a companhia de Seu Nico, assim como em eventos de Campinas e região.

Imagem 33: Banca onde Topete e Seu Nico vendiam seus artigos de capoeira, roupas, instrumentos, CDs, DVDs, colares e outros adereços. Fotografia de Fredy Colombini. 2006.

Com o grupo mais estruturado na sede própria no Terminal Central, seus integrantes passaram a ter uma agenda de treinos e eventos, para movimentar culturalmente e dar visibilidade ao espaço. Algumas das datas que desde essa época são comemoradas pelo grupo em eventos anuais e rodas especiais são: aniversário da Roda do Gueto e o Dia Internacional das Mulheres, em março; aniversário do Mestre Pastinha, em abril; e a semana da consciência negra, em novembro.

Imagem 34: Cartaz/folheto da comemoração de três anos de divulgação da Roda do Gueto. Acervo ECAR, março de 2006.

No ano de 2006, realizei a pesquisa sobre a Roda do Gueto32 e, no final do ano, após

concluir a graduação em Bauru, voltei a morar em Campinas e passei a treinar com o Professor Topete, sendo seu aluno a partir de então. Com a pesquisa utilizando imagens fotográficas e audiovisuais, Professor Topete observou a importância desse trabalho para o registro e o arquivo da história do grupo, assim como para rever os materiais para recordar e para a auto-avaliação pelos próprios sujeitos dessa história sobre suas atividades, movimentações e características das manifestações. A partir dessa constatação, também me deixou como responsável pela produção desses materiais, que já era feita com as fotografias. Assim, passaríamos a registrar, arquivar e divulgar, também em vídeo, os momentos do grupo.

32 ABREU E SILVA, Danilo de. A Roda do Gueto: uma etnografia sobre a capoeira no Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas. Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social com habilitação em Radialismo. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Unesp, Bauru, 2006.